Socialismo ou capitalismo? Um comentário sobre a China

Pedro Ribeiro
Má  infinitude
Published in
6 min readApr 18, 2020

Com o avanço da sociedade chinesa nos últimos anos o país se colocou no centro dos debates geopolíticos e econômicos contemporâneos. Muito se diz sobre a China, principalmente sobre o seu sistema político, sua economia e mais recentemente — com a pandemia de coronavírus — ela se encontra no centro de grandes teorias da conspiração.

São poucas as pessoas que não têm alguma opinião sobre a China. As acusações partem de socialistas a capitalistas vorazes, e as opiniões são tantas que até mesmo o presidente do Brasil firmou uma posição ao chegar lá em 2019: “Estou num país capitalista.”

De início, é importante alertar que o objetivo desse texto não é de analisar em detalhes o relatório do último congresso do Partido Comunista Chinês (PCCh), tampouco analisar a situação da classe trabalhadora na China. O objetivo é de refletir sobre as formas que o próprio capitalismo produz.

Há aqueles que defendem o caráter socialista do país pelo planejamento econômico e pela detenção do poder político por parte do PCCh. É verdade que a China já está no seu 13º Plano Quinquenal, além de criar constantemente novos programas com foco em desenvolvimento econômico, tecnológico e militar. A assim chamada abertura econômica teve participação ativa do exército com a modernização do complexo industrial militar. Para além disso, o controle de empresas, investimento pesado em P&D, além de espaço privilegiado no poder político, são apenas alguns exemplos de como o exército atuou nesse período de transformação da sociedade chinesa.

Esse processo não se parece com uma dinâmica de liberalização nos moldes que muitos imaginam que tenha ocorrido. Até mesmo as privatizações que ocorreram são entendidas como um movimento de fortalecimento do estado, como privatizações “para dentro”. Pode parecer contraditório, mas entre estatais com pouca relevância internacional e empresas privadas com um vínculo forte com o PCCh e forte projeção internacional, é no segundo caso que o estado chinês detém mais poder.

A presença de empresas estrangeiras no país também não ocorreu sem muita disputa. Com um mercado consumidor gigantesco e mão de obra barata, os chineses detinham um poder de barganha tremendo. Puderam negociar patentes, criação de centros de treinamento, centros de pesquisa e até registro de marcas no país em troca da atuação dessas empresas estrangeiras na região.

O tamanho da mobilização política que ocorreu na China nas últimas décadas para que ela se desenvolvesse realmente é digna de nota. Não parece um processo que ocorreria sem um planejamento ostensivo e uma coordenação de forças que nos parece estranha no mundo liberal-ocidental contemporâneo. Porém, será que essa dinâmica descrita é suficiente para enquadrar o país como socialista?

Para destrinchar a questão, vale levantar um debate interessante conduzido por Marx no livro 3 d’O Capital onde ele discorre sobre o surgimento das sociedades por ações. Creio que ficará claro como essa passagem nos ajuda a pensar a questão chinesa.

O pensador alemão começa explicitando como a sociedade por ações gera uma mobilização de riquezas e recursos em uma escala muito superior à que um capitalista conseguiria mobilizar individualmente. Criar sistemas ferroviários cobrindo uma longa extensão de um país, por exemplo, se torna mais viável quando não se depende do dinheiro de apenas uma pessoa. Porém o capitalismo é o sistema da propriedade privada, da produção privada direcionada ao mercado. O que significaria, portanto, a associação de capitalistas em um empreendimento comum? Significa o surgimento de uma forma social do capital que não se parece com a sua forma privada original. Como Marx continua, a própria posição do capitalista se altera: de capitalista ativo, para gerente ou diretor. A posição dos capitalistas no sistema se explicita como em poucos momentos enquanto mera expressão do capital.

O capital, por mais que se apresente como propriedade privada, produz ele mesmo o capital social. Já se colocava naquela época que o capitalismo tendia a uma enorme concentração de riquezas e como já era possível perceber, a própria reprodução dessa riqueza pode ser feita de formas distintas. Marx afirma que essa forma se trata de uma “contradição que anula a si mesma”, porque não gera a superação da propriedade privada, por mais que seja uma contradição que surge em seu seio. Parece até mesmo contraditório que em tempos de desigualdade extrema como os atuais, não apenas o sistema de ações tenha se generalizado como a própria produção se apresente cada vez mais na forma de amplas redes de indústrias e serviços. A economia opera de forma cada vez mais descentralizada na mesma medida em que se concentra cada vez mais riqueza — esta que se torna cada vez mais abstrata. Os capitalistas se associam para acumular; têm amor pela individualidade, mas estão dispostos a cooperar para enriquecer.

A concorrência — a executora das leis do valor — não está suspensa na potência oriental e viabiliza a dinâmica de acumulação e desenvolvimento no país. É notório que o PCCh foi capaz de dar condições para as empresas chinesas enfrentarem o mercado global de forma inteligente. Há setores, como o de infraestrutura de telecomunicações, em que as empresas chineses já lideram mundialmente. Concomitantemente é observável que o planejamento econômico presente na China é feito com a concorrência global em vistas, porque se sabe que essa estratégia pode garantir uma posição importante para o país.

O capital não abole a associação e o planejamento: se pensarmos como empresas como a Amazon e o Walmart funcionam, é possível observar como a anarquia de mercado pressupõe também algum nível de organização racionalizada. São empresas que já trabalham em proporção parecida com a de muitos países (a receita do Walmart passou de 500 bilhões de dólares em 2018) em um modelo de planejamento econômico exemplar que coordena operações sem fronteiras geográficas. É curioso como o próprio Marx no primeiro livro d’O Capital já expunha como os capitalistas se empolgavam com a estrutura planejada e eficiente das fábricas na mesma medida que se revoltavam com qualquer tentativa de levar esse planejamento para o processo social de produção.

A existência da concorrência na China não se dá por uma mera tomada de decisões interna, mas pela própria relação do país com o resto do mundo. Todavia até mesmo essa separação entre economia interna e externa deve ser tomada com cuidado. A forma como o país organiza a sua economia não é fruto apenas de decisões internas, tampouco de uma determinação externa, mas é uma forma organizacional que se produz na medida em que os polos opostos — economia interna e externa — se colocam como uma unidade.

O empreendimento chinês pode aparecer como uma associação gigantesca de capital, conduzida pelo PCCh e seus atores, onde o capital assume uma forma social em uma proporção ainda maior do que a vista pela sociedade por ações. Os capitalistas, é verdade, não detém o controle absoluto da propriedade privada na China. Todavia essa caricatura do capitalista todo poderoso que dá ordens pode nos servir em palanques, mas quando refletimos profundamente é preciso ter em mente que os atores operam de forma muito mais complexa.

O surgimento do capital social significa a superação da propriedade privada? O que Marx nos responde é que se trata da “suprassunção do capital como propriedade privada dentro dos limites do próprio modo de produção capitalista.” Mais adiante nesse texto, é possível encontrar o seguinte: “É produção privada, sem o controle da propriedade privada.” A produção privada existe na China e por mais que a ausência do seu controle total pelos capitalistas pareça uma contradição insolúvel, ela “anula a si mesma” e se apresenta como uma nova forma da produção capitalista.

Para onde essa forma aponta, só o tempo nos dirá.

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