Madiana Cachacou

Ávida ouvida

Mário Coelho
Mário Coelho
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10 min readJan 11, 2017

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Eu sofro só de pensar! Não, não é apenas modo de falar. Não como numa daquelas situações em que um sem-noção qualquer te lembra que a já temida prova de cálculo, não será no dia seguinte. Insight filosofal e utilíssimo que sentencia ao fitar seu Casio DataBank:

_Amanhã não… Hoje! Já passou da meia-noite.

Não obstante, à tosca hipótese segue-se um riso que implora aceitação e só se permite ser retrucado com um resignado, desinteressante e normativo:

_Putz… É real. Foda. Eu sofro só de pensar!

Não é a este fugaz sofrimento a que me refiro. Nem a pensamentos amenos — ainda que ansiogênicos — como aqueles que orbitam a mente em vésperas (!) de provas. E quando digo ‘só’, ultrapasso o sentido adverbial da palavra. É um ‘só’ plural, cosmopolita, globalizado, you know?. Um ‘só’ adjetivo em meio a uma multidão de sentidos. Até mesmo o ‘eu’ da oração soa abstrato e questionável. Que eu é esse? Quem sou eu? Eu sofro só de pensar. ‘Eu sofro só de pensar…’ Chavões, frases feitas, clichês. Péssimo modo de se começar uma estória. Ou de se viver. Quero dizer… Eu sofro de pensamentos! De todos os tamanhos, formas, tempos, cores, temas e matemas.

Quando um narrador-personagem começa a experimentar sintomas de: ceticismo agudo, dores na existência ou inflamação nas autocríticas, o autor costuma recomendar sua ida a um analista. Vivendo eu nestes lugares-comuns, não fugi ao que a mim fora designado pelo ser datilográfico. Agendei uma consulta o mais rápido que pude para o parágrafo subsequente.

Aqui chegando, estava eu nessa pequena sala de espera. Na fantasia da maioria das pessoas, habita uma imagem de que um consultório psicanalítico é sinônimo de requinte decorativo. Não era esta visão freudohollywoodiana que eu vivenciava. O ambiente fora composto como um mosaico mal pintado. Pairava entre a economia líquida do mobiliário em MDF comprado em um saldão pós-Natal e acessórios que pareciam saídos de um baú oitentista. Eu que transpiro até em maratona de séries televisivas, via o suor pingar no tapete de estampa tigrada sob meus pés naquele cubículo sem ventilação.

Dispensei as revistas e jornais ultrapassados e de cunho neoliberalesco para dar ouvidos às minhas próprias vozes. Claro que chegando muito antes do horário combinado, eu dispunha de tempo suficiente para me perder em uma profusão epilética de questões. Será que ela me chamou antes de eu chegar? Será que é muito velha? Muito nova? No telefone parecia a voz da minha professora de cálculo. Será? Quem sabe seja analista nas horas vagas… Vou embora? Fico? Eu tô encharcado. Volto num dia menos quente. Ah, mas é desfeita marcar, vir e sair sem dar nenhuma satisfação.

Vou ficar. Eu tenho que pagar hoje? Não cheguei a perguntar isso. Putz… Nem trouxe dinheiro suficiente. Vou embora. Não, não. Já sei! Espero ela abrir a porta, explico a situação e marco para a semana que vem. Pera. Aquilo ali é uma câmera escondida? Espelho falso? Será que essa espera toda não passa de um teste? Melhor eu sossegar. Se não gostar, acho que posso pedir o dinheiro de volta. Dinheiro? Não cheguei a perguntar isso. Putz… Nem trouxe dinheiro suficiente. Vou embora…

Fico. Embora. Fico. Fico. Embora. Bora. Emboraficoemboraficoemboraficoocifmeorbaocifarobme. Estava quase crente de que o motor do tratamento consistia em fazer os pensamentos esvaírem-se a partir da força cíclica do que apelidei de “mantra imperial”. Sim, porque ali estava o próprio Pedro I sucumbindo às exigências luso-tupis do meu inconsciente. Para felicidade geral da minha sanidade mental, meus impulsos reflexivos foram interrompidos. Cessaram quando percebi — com os sentidos quase felinos de quem sabe-se presa e predador — uma vibração que pulsava em direção a saleta.

Ecoante. Na frequência de passos ritmados. Um bem marcado. Forte. Seguido de dois outros mais leves e quase inaudíveis. Passos que revelavam a condição coxa da mulher que, tropeçando no sofá azul-manchado, despencava ao meu lado tagarelando.

_Ai, ai... Essa cidade é um forno à lenha, né?

Não bastasse o raciocínio gastrometeorológico, lançou sua próxima pergunta dando dois tapinhas sobre uma de minhas coxas flácidas.

_Eu acho que já te vi por aqui… Como é teu nome mesmo?

Percebendo que eu não dava a mínima para essas pequenas convenções sociais a que todos chamam de diálogo, ainda assim rompeu o silêncio constrangedor disparando.

_O meu é Vida.

Vida. Claro. Estava explicada a súbita sensação nauseante que tive apenas por ouvi-la aproximar-se. Naquele instante, ela era para mim a própria personificação do tempo. Ponteiros de relógio que arrastavam-se manquitolando. Presos a um mínimo espaço onde ideações crônicas circulavam helicoidalmente. Antes que a prolixa criatura suplicasse a mim por água — afinal andara “da Praça do Padroeiro até aqui porque o taxista mão-de-vaca não quis entrar no Centro da cidade para não perder as outras corridas” — a analista emitiu um chamado eficiente em sua direção.

_Vamos?

Meu espanto fora tamanho que até hoje não tenho certeza se meu sobressalto expressou-se fisicamente ou se era apenas mais uma das minhas ridículas imagineirices. Estupefação que eclodiu em diversas direções em meu mind map. Primeiro, porque percebi que não estava adiantado em apenas uma hora para a consulta. Eram duas! Minha pouca afeição à TV brasileira não permitiu que a confirmação das horas no canto da tela ocorre-se anteriormente. Ao firmar a acareação entre o meu nada smartphonè e a hora de Brasília — única verdade sobre a capital veiculada em rede nacional — dei-me conta de que era exceção entre a maioria dos brasileiros que levavam suas vidas em horário de verão.

Segundo, pois a imagem que eu havia construído sobre a analista desfez-se imediatamente ao mirar sua pele negra. Nós, brancos, nunca supomos de antemão que negros possam ocupar os mais altos postos no sujeito suposto saber inconsciente. A verdade é que os ouvidos deles estão mais acostumados a amparar os gritos de dor e súplica do que nossas alvas orelhas seletivas. Mesmo enfastiado por aguardar feito um celibatário, lá permaneci exercitando minha antifragilidade. Queria, mais ainda, endereçar minhas neuras à escuta acolhedora da Mãe-África representada por aquela imago feminina. Deve ser porque o meu atravessamento do Édipo fundou-se numa cessão profunda, na raiz. Só não mais dolorosa do que a diáspora africana. Um corte simbólico, mas ainda em carne viva. Benguela, monjolo, bantu, nagô. Expresso em iorubá.

_Ọdàbó.

A única palavra que a analista dirigiu a mim. Não que ali falássemos fluentemente outros dialetos. Mas uma espécie de tradução inconsciente ocorre àqueles que reconhecem verdadeiramente suas origens. Como irmão reconhece irmão, as línguas sabem-se. Saboreiam-se. O olhar fugidio antes de fechar a porta encerrava, num só gesto, séculos de outras despedidas forçadas e um apelo a minha beckettiana espera. Diferente da primeira hora, eu já não precisava de minhas paranoias como passatempo. Um zumbido crescente e nada rítmico atravessava a porta do pretenso espaço reservado do consultório: A voz de Vida. Minhas suspeitas a partir do seu modo de caminhar eram confirmadas. Vida era pura vibração. Agora, além do suor, do tédio, dos pensamentos, do amor pela analista, Vida me impunha uma questão ética. Ouvir ou vir a me retirar? O velho “mantra imperial”.

Se você leu até aqui com a devida atenção flutuante, já conhece os procedimentos rústicos com que o autor deu-me voz como persona narrante. É também patente que a estória não acaba por aqui. Há muita Vida e trocadilhos empobrecidos pela frente. Obviamente cedi a minha curiosidade, permanecendo de butuca apenas para poder satisfazer a sua.

Como todo vivente que encara psicóloga, analista, padre, político ou delegado, Vida desenrolava um solilóquio sobre sua semana numa voracidade importunante. Contou sobre suas mornas relações sexuais com o marido Divanilson. Que para ‘dar uma esquentada’ foram ao cinema ver ‘aquele filme com a Lília Cabral’. Mas que, na verdade, o convidou ‘só por causa do Cauã Reymond’ que, segundo ela, ‘é uma delícia’.

_Porque o Zé Mayer já tá muito velho e o Gianecchini acho que é bicha. Ah, lembrei do título: Divã!

Depois do cinema, disse que foram comer algo num bistrôzinho barato chamado “Divina Gula”. Aí toda minha herança católica de criança catequizada veio à tona. Fiquei pensando como que um sujeito pode imprimir um caráter divino à um dos sete pecados capitais no nome de um estabelecimento gastronômico. Refletindo sobre mais das minhas bobagens, perdi parte do relato. Quando recobrei os sentidos auditivos, Vida e Divanilson já tinham ido para casa.

Vida confidenciou que mais cedo naquele mesmo dia, havia entrado pela primeira vez num Sex Shop. Apesar de ter se interessado ‘por vários brinquedinhos’, comprara somente um corset grená para ‘divar’ após o filme. Enquanto a matrona falava sobre a faceta sexual do programa atípico do casal, percebi uma minúscula fresta na porta do consultório. Não bastasse ouvir à conversa alheia, saltei do sofá para espiar, na esperança de que algum detalhe sórdido fosse se repetir em análise.

Graças a meu voyeurismo desavergonhado, naquele momento presenciei uma cena que ultrapassava qualquer visão produzida por nosso estimado terror contemporâneo. Vida e a analista estavam sentadas frente a frente. Enquanto a primeira monologava, a segunda ouvia ativamente. Não reparava na fluidez cotidiana na fala da mulher, mas nos tropeços, imperfeições e furos de seu discurso. Há tempos perdemos o tino para escutar o diferente, o insólito, àquilo que escapa a qualquer normatividade. Interrompemo-nos uns aos outros numa grande guerra civil linguageira. Verborreia generalizada. Ensurdecida e ensurdecedora. Milhares de bocas, poucos ouvidos. Mas naquele quadro analítico, não era apenas este encontro humanamente anacrônico que me afetava. Vislumbrei uma bizarrice ainda maior.

É também verdade que despender atenção à Vida não era das tarefas mais difíceis. Sua voz era esganiçada. Como o trinar no fim do braço de uma viola. Um clamar agudo por escuta. Mas nas suspensões de seu relato, em suas pausas dramáticas, eu podia filmar la nera bellezza da analista. Estava arrebatado. A voz. A visão. Comecei a perceber que a cada novo olhar para a profissional algo inquietante ocorria. Suas orelhas cresciam. Sim, também supus que eu ou o tal que digita estávamos alucinando. Cheguei a considerar a desidratação, o calor, um transe psicodélico, minha imaginação fértil. Procurei neutralizar a imagem. Suspendi a curiosidade. Parei de espiar. Dei uma volta pela sala. Liguei e desliguei a TV. Sentei no sofá azul-manchado. Mas era incontrolável. Eu precisava saber se tinha perdido de vez a realidade. Estava enlouquecendo. Será? Era a única alternativa minimamente plausível.

Voltei a olhar pela maldita fresta. As orelhas da analista já ultrapassavam seu vasto e empoderado afro hair. Senti uma vontade tremenda de abrir a porta. Abrir não. Chutar, arrombar. Acabar com toda aquela merda. A espera, o suor, a fome, a voz, o olhar, o amor, o amor, o amor. Acabar comigo. Mas era impossível fugir. Daquela imagem e de mim. Sempre agi internamente, me mantendo imóvel por fora. Não foi diferente. Não promovi uma dantesca aparição em meio às duas mulheres. Continuei apenas olhando. Petrificado. Como que atingido por uma Medusa de duas cabeças. Numa, um resto de voz. N’outra, as sobras do olhar. Orelhas que cresciam abruptamente, em movimentos repentinos. Orelhasorelhasorelhasorelhasorelhasorelhas. Não um mero trava-língua. Era o entrave da linguagem.

Contudo, a cada pequeno latejar auricular eu comecei a perceber um padrão. As orelhas não cresciam inadvertidamente. Pareciam responder a determinados trechos da fala de Vida. Exemplos. Quando ela mencionou pela trilionésima vez que queria ‘divar’ na cama naquela noite do cinema, a orelhona excitou-se. A cada vez que Divanilson era citado, pimba! Disse que a conta no ‘Divina Gula’ fora dividida entre os dois. Divina. Orelhas pulsando. Dividida. Idem. Que a partir daquela noite todas as contas seriam compartilhadas entre os dois, pois não queria que as ‘dívidas sobrassem só para ela’. Sem dúvida, eriçaram-se. E assim continuou o jogo non sense.

Vida seguiu contando que o marido não quis ir para o quarto ao chegarem em casa, preferindo assistir o jogo do Vasco da Gama. Time onde, segundo ele, jogava ‘Odvan, o maior beque que este país já produziu!’. Arrasada com a falta de sensibilidade, pôs o CD ‘Forever Divas’ para esquecer o patético episódio. Distraiu-se com um vídeo viralizado na internet, onde um outrora famoso jornalista, comentava que uma certa presidente fora divulsionada cirurgicamente de seu cargo.

A pulsação das orelhas foi especialmente forte quando Vida confessou ‘que por uma série de divergências, ainda não queria divulgar muito, mas pediria o divórcio’. Afirmou, entre risonhas lágrimas, que no começo a relação era divertida, chegando a viver com Divanilson um casamento divicioso. Sim, usou esta palavra. Di-vi-ci-o-so. Disse que as memórias da relação a deixavam com o coração dividido. Mas que não abriria mão de ficar com a beagle Diva na divisão de bens. Também lembrou do ex-namorado — hoje oficial de alta divisa na Marinha — quando viu a barriga-tanquinho do Cauã ‘no tal filme Divã’. Depois de relatar a saga, temeu que a analista a dispensasse por ‘divagar em demasia’.

A mulher não percebia, mas selecionava palavras com sonoridades específicas em seu relato. As orelhas eram especialmente atraídas por três singelas letrinhas: D. I. V. Pareciam parasitas alimentando-se vorazmente por significantes. Hélices, anti-hélices, fossas triangulares, escafoides, conchas cimbas, conchas cavas, tragos, anti-tragos, incisuras supra ou inter-trágicas. Cada partezinha das orelhas da analista tomaram dimensões grotescas. Vida até então não havia se dado conta a respeito do que ocorria. Falava, falava, falava. Quanto mais tagarelava ‘Ds’, ‘Is’ e ‘Vs’, mais as cavernas auditivas aumentavam. Pretas. Brilhantes. Tragicamente lindas. diVviDivvidviDiIIIvvDivdiVIDvvVidddiv… Até que um sono inebriante lentamente apossou-se de Vida. Numa daquelas pausas reflexivas que só quem boceja com todo gosto conhece, finalmente pôs reparo no orelhão esquerdo da analista. Então questionou:

_Sabe, eu venho aqui há quase um ano. Um ano. Deus! Só agora eu notei essa chaise longuè cor de ébano na sala. Parece confortável… Quando eu vou poder me deitar?

A analista, toda ouvidos, respondeu com voz firme:

_Nísisíyí!

Agora. Novamente, Vida atendeu ao chamado. Ali pude testemunhar uma experiência tão singela, quanto potente. Dessas que geram a ilusão de que a humanidade é possível. Vida delicadamente despiu-se. Tirou os sapatos, o vestido, as roupas íntimas. Mancou harmoniosamente até aquela cartilagem hipertrofiada. Encaixou o quadril no trago. Protegeu os pés no tubérculo auricular. Recostou a cabeça no lóbulo. Descansou nua e em posição fetal na orelha esquerda. Nenhuma palavra mais se ouviu. Nem ‘Ds’, ‘Is’ ou ‘Vs’. Apenas uma melodia descompromissada. Música das entranhas. Voz profunda. Apenas voz. Depois, o nada. Um silêncio placentário.

Eu que nunca soube como agir, pratiquei o ato mais certeiro alcançado pela alma humana. Chorei. Não por tristeza. Nem por alegria. Um choro de contemplação. Depois de algumas horas, percebi que eu era um mero acessório no espaço. Naquele dia eu firmei certeza de que o “o inconsciente só existe no campo da análise”. No caminho para casa, assoviei a melodia que aprendi no ninar de Vida. Decidi que jamais contaria essa estória. Ninguém acreditaria. Optei por reservá-la um lugar em meus sonhos. A parte inconveniente é que eu nunca encontrei outra analista que me despertasse aquele amor. Meus sonhos eu só confio a gente assim. Que ama saber dos sonhos que a gente sonha. Que ama saber.

Quando eu penso que perdi a única mulher que poderia compreender ao menos uma parte da minha loucura, eu sofro só de pensar!

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