De quando a Dora chegou

Marcella Chartier
Mãezonas da Porra
Published in
9 min readApr 6, 2018

Era um dia de chuva e frio, o que me fez desistir do pilates. Fiquei em casa o dia todo descansando, de pijama e roupão quentinhos. Estava de 39 semanas e 5 dias e até hoje me lembro da sensação: aquela moleza gostosa de um corpo que sabe que está chegando a hora. A Karin, minha amiga-irmã, veio almoçar comigo e o menu foi morangos com chocolate — eu andava numa tara por doces e os morangos daquela temporada estavam maravilhosos. Ela ainda trouxe uma caixinha com mais doces, lindos, coloridos, pequenininhos. Ficamos batendo papo um tempão e a companhia dela era das poucas que, naquele dia, eu poderia querer. Enquanto conversávamos, aproveitei para bater um bolo de cenoura — eu queria ter bolo em casa quando chegasse a hora, pras parteiras e pra doula poderem comer. E claro, também queria fazer bolo, das minhas formas favoritas de descansar a cabeça. Quando ela foi embora, eu voltei pro meu casulo. Até que o Adriano chegou em casa no começo da noite. Fizemos bruschettas, batemos papo, até tomei um vinhozinho. Fiz um creme de ervilhas com linguiça que ficou uma delícia. Fomos pro quarto dormir às 21h50. Assim que eu me sentei na cama, senti um líquido escapando. Levantei na hora e já falei: “opa, acho que a bolsa estourou”. Fui pro banheiro e vi que era isso mesmo, o líquido continuava saindo e tinha um pouquinho de sangue. O Adriano avisou a equipe e elas pediram para irmos dando notícias, mas a Pri, parteira que me acompanhou mais de perto ao longo de toda a gestação, disse que já estava se organizando para vir. Eu achei curioso a coisa começar daquela forma, com água escorrendo. Imaginava que seriam contrações, como no meu primeiro parto.

Coloquei um absorvente e voltei pra cama com o Adriano, onde ficamos assistindo “Friends” no escurinho. Não me lembro em que momento começaram as contrações, mas foi um pouco antes de as meninas chegarem — acho que elas apareceram por volta das 23h30. Fui pra sala e, depois de alguns minutos batendo papo, percebi que as contrações tinham parado. Eu comecei a andar pela sala pra ver se voltavam, até que a Pri disse: “volta pro quarto com ele, a gente só atrapalha agora!”. Fiz o que ela disse. Ficamos juntos, de portas fechadas. Quase que imediatamente as contrações recomeçaram. Ocitocina correndo solta ❤

Enquanto elas dormiam um pouco na sala e no quarto do João, nós íamos contando o tempo entre cada contração. Depois paramos, o ritmo já tinha chegado a uma constância e estava claro que o processo não ia mais parar. As dores começaram a vir, mas devagar, suaves, e conforme iam apertando, eu me lembrava de relaxar, dos exercícios de meditação que tinha praticado ao longo de toda a gravidez, de receber a dor tentando não resistir. Por algumas horas, assim foi. Até que chegou o momento de chamar a Mari, minha doula. Ela veio com mãozinhas mágicas e seus óleos, minha salvação por mais algum tempo naquela noite, assim como um bolsinha de sementes que minha mãe tinha me dado para aquecer e usar quando sentisse dores nas costas. Eu ainda conseguia cochilar nos intervalos, ou ao menos relaxar bastante. Estava feliz, serena, pronta. O Adriano saiu do quarto e ficamos nós duas por um bom tempo. De vez em quando a Maíra, parteira, vinha ouvir o coração da Dora. Eu tinha conseguido passar o tempo todo recostada na cama, de lado, levantando para me sentar apenas quando a minha barriga contraía — e aí a bolsinha de sementes ficava no baixo ventre, enquanto a Mari massageava o sacro. Era um alívio impressionante.

Por volta das 4 da manhã, as dores começaram a ficar mais difíceis de administrar. A posição não era boa, mais. Eu quis sentar na bola de pilates, ir pro chuveiro, não sabia bem, mas queria testar outra. Quando cheguei no chuveiro, me aliviei um pouco novamente. Passei algum tempo lá e, mesmo que a dor já estivesse com uma intensidade maior, eu conseguia ao menos manter a calma quando ela passava. Cansei do chuveiro, quis estar seca, sair do bafo quente do banheiro (e era a noite mais fria do ano até ali, assim como foi quando o João, meu mais velho, nasceu, há quase 6 anos). Mas no quarto, em cima da bola, apoiada na cama, eu começava a ficar meio desesperada. A Pri, a essa altura, já tinha acordado.

Por volta das 6 da manhã, eu acho, a dor já era muito forte. Eu começava a achar que não daria conta de continuar em casa, que precisaria ir ao hospital tomar anestesia. Falei disso pela primeira vez e a Pri sugeriu que eu fosse para a banheira. Fui.

Enquanto a banheira enchia, eu me contorcia, me virava de um lado pra outro, tentando achar uma posição, mas já deixando de acreditar que aquilo funcionaria. A dor tinha piorado, o ritmo tinha acelerado. Comecei a pedir para ir pro hospital. Eu sentia meu corpo prestes a explodir, começava a perder mobilidade por conta do desespero. Dizia que queria sair da banheira, mas tinha medo de ficar ainda pior e, na verdade, eu não conseguia me mexer muito naquele momento. Falei pra Mari que não conseguia mais aceitar dor nenhuma, que estava desesperada, e ela disse que eu não precisava aceitar nada, que tudo bem seguir de outra forma. O Adriano tentou colocar um disco que ouvi a gravidez inteira até ele não aguentar mais, da Carminho cantando Tom Jobim. Nessa hora comecei a sentir raiva — não dele, mas uma raiva que vinha de um lugar muito selvagem em mim — e mandei ele tirar. Já não queria mais música, clima, massagem, nada. Quando eles se convenceram de que eu realmente queria ir pro hospital, foram avisar a Pri que era isso, e que eu estava muito brava. A Pri chegou no banheiro e disse: “Posso ao menos fazer um toque, antes, pra gente saber como está?”. Por mais contrariada que eu estivesse, nessa hora me veio um fio de raciocínio lógico e pensei: “bom, se já estiver muito quase, não vou pra hospital nenhum, porque vai nascer no caminho e não adianta nada”. Deixei.

Mas o toque doeu muito, a ponto de eu pedir pra ela tirar a mão. Isso me fez pensar que ainda faltava bastante — e a Pri disse que, por mais que não fosse possível prever a velocidade do processo, ainda tinha bastante pra dilatar. Eram 7 e pouco da manhã, fazia 9 horas que tudo tinha começado. Eu me imaginei ali naquela situação até 10 horas da noite, 24 horas de trabalho de parto sofrido, como foi quando o João nasceu. Disse que não ficaria mais ali, que não passaria por aquilo de novo, e que estava tudo bem quanto a isso — não ficaria frustrada por não parir naturalmente, pela Dora nascer no hospital.

Foi aí que todos entenderam que era mesmo meu limite. Saí da água, me sequei e me vesti sozinha e apressada, fui caminhando em direção à porta enquanto elas recolhiam tudo. Desci as escadas do prédio e deixei a porta aberta pra todo mundo andar logo (risos). Fiquei deitada de lado no hall de entrada, torcendo pra nenhum morador passar, porque eu só conseguiria responder um “bom dia” com um berro bem alto.

Entramos no carro e deitei no colo da Mari no banco de trás. O Adriano voou, chegamos muito rápido. E na entrada no PS eu quis sentar na cadeira de rodas (a imobilidade estava ali ainda). A dor estava insuportável, eu berrava e todos me olhavam como se eu fosse um ET. Até que me mandaram para uma triagem e a pobre da enfermeira que tentava medir minha pressão levou berros e mais berros no ouvido. “Que triagem, gente, eu quero anestesia!”

Mas ainda precisei passar por mais uma sala, com um médico que tinha que seguir o protocolo e fazer o cardiotoco. Eu não conseguia acreditar naquilo, mas quando percebi que precisava colaborar pra sair logo dali, me esforcei ao máximo pra ficar parada enquanto o aparelho media os batimentos da Dora e as contrações. Ali ouvi a Pri dizendo ao médico que não estava nascendo ainda, que eu tinha 5 dedos de dilatação, colo grosso — o que me livrou de mais um toque. Me lembro até de tirar os brincos da minha avó, que são difíceis de tirar, rosqueando com o maior cuidado pra não deixar cair.

Dali me levaram para a sala de parto, e eu berrava pelos corredores procurando o rosto do anestesista — àquela altura eu já sabia que seria o mesmo do parto do João. Cheguei na sala e só então tirei a roupa toda. Percebi que estava sem ninguém da equipe, nem o Adriano. Todos tinham ido se vestir e eu fiquei alerta. Mas durou pouco e logo ele apareceu, correndo, depois a Mari e um pouco depois a Pri. Então eu só procurava o rosto da Andrea, minha obstetra, e do Carlão, anestesista, e a Pri dizia que a Andrea estava estacionando. Até que senti um puxão, tum, bem forte. Senti vontade de fazer cocô e achei estranho, comentei com a Pri — sabia que essa vontade vinha bem no final, e não era o caso. Ela fez cara de surpresa e quando me olhou, disse baixinho: “tá nascendo, Má, a cabeça tá ali já!”. Fiquei assustada, mas antes de eu dizer qualquer coisa a Andrea apareceu na porta e já sorriu, pedindo pra eu fazer força. Falei que não, que precisava de anestesia, e ela: “Agora não vai mais doer, pode confiar” e fiz muita força uma, duas, acho que no máximo três vezes. Eu estava deitada de mal jeito em uma maca e não consegui olhar, só gritei de uma forma que eu não conseguiria reproduzir — o Adriano disse depois que nem parecia eu, que nessa hora ele achou que eu fosse desmaiar de dor — mas eu já não estava mais desesperada, eu era pura força. A Dora nasceu às 8h53 e veio direto pro meu colo, toda meladinha, cabeluda. A sensação, além de um amor sem tamanho, era de surpresa. A Mari dizia: “você pariu sem anestesia!” e eu não acreditava que tinha conseguido. Certamente por causa da descarga intensa de ocitocina, naquele momento eu me sentia anestesiada. O Adriano agachou ao lado da maca com as mãos no rosto, chorando, aliviado, e logo depois se levantou e me disse “Você é a mulher mais foda que existe”.

Eu me lembro de ficar abobada por alguns minutos, só conseguia olhar pra Dora e dizer: “não acredito filha, a gente conseguiu!”. Realmente eu não teria me sentido frustrada se tivesse que, novamente, recorrer à analgesia. Mas dar conta até o final sem ela foi especial, uma vitória pra mim.

Falei pra Andrea e pra Pri que elas eram doidas, que o trabalho delas era coisa de gente maluca (risos). E quando a Pri disse que pelo visto eu queria mesmo a presença da Andrea, me emocionei ao pensar no privilégio que tive de ter uma equipe como aquela. De poder ter mais um parto respeitoso, saudável, feliz, meu.

Liguei pra minha mãe e avisei que a Dora tinha nascido e estava em meus braços. Ela chorou e disse que logo viria conhecê-la com o João.

Fui pro quarto logo que a placenta saiu — e a Mari fez um carimbo lindo com ela numa folha. A Dora foi num bercinho em seguida e ficamos juntos, nós 3, no escurinho, muito emocionados. Adriano sentado na poltrona cantando pra ela, enrolada num cobertor no colo dele, e eu na cama só olhando. Ela já tinha mamado ainda na sala de parto, uma das minhas maiores preocupações era a mamada na primeira hora. Quando me lembro dessas primeiras horas, desses primeiros momentos sem interferência alguma, eu sinto uma alegria muito serena. É um lugar para onde eu gostaria muito de poder voltar de vez em quando, me acalma e me dá uma sensação de plenitude que nada mais me dá.

O João chegou mais tarde para conhecer a irmã, eufórico. Chorei quando vi os dois se tocando, meu pai ensinando ele a lidar com ela. Ficamos no hospital mais duas noites porque a Dora precisava fazer o exame do pezinho para ter alta — e ele precisava acontecer 48 horas depois do nascimento. Aqueles dias foram como um remanso, aquele desvio no curso de um rio que forma tipo uma bolsa de águas calmas. Dora o tempo todo com o a gente, visitas só dos nossos irmãos e dos meus pais, muitas mamadas e o primeiro banho dela, de chuveiro, no colo do pai — só no dia seguinte ao nascimento. Minha cancerianinha tinha chegado de um jeito lindo e eu já estava apaixonada, disposta a fazer tudo por ela.

Foto: Mariana Amoroso

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