Um pós-parto paterno

Marcella Chartier
Mãezonas da Porra
Published in
5 min readMay 23, 2018

Quando a Dora tinha 6 meses, Adriano e eu remanejamos nosso esquema casa/crianças/trabalho fora. Temos uma tabela com cores identificando quem fica com eles, quem faz o almoço, quem pega na escola etc. Eu sou autônoma e ele tem horários relativamente flexíveis — aquele momento da vida em que a gente esgarça os limites das coisas pra dar conta de cuidar de tudo e chama de “horários flexíveis”.

Mas enfim: achamos, naquele fim de janeiro, que era hora de eu ficar mais tempo com as crianças por um período, pra que ele pudesse tocar projetos novos na empresa. No fim das contas não durou muito, porque apareceram trabalhos pra mim e eu não pude recusar. Ainda bem, não só pela grana, mas também pela minha sanidade.

Acontece que, na primeira semana em que o Adriano trabalhou três dias seguidos fora de casa (trabalho doméstico e parental também é trabalho, pessoal), ele mudou. Ficou com o olhar mais vívido, o tom de voz mais animado. E se no primeiro dia ele saiu pela porta com um semblante aflito, que eu sei que era a mistura de duas sensações, a de estar “me abandonando” sozinha com aquela bucha e a de ir pro mundão cruel fora da bolha de amor que criamos aqui, no segundo ele já nem olhava mais pra trás.

Me disse, então: “Quando eu me vi na reunião com todas aquelas pessoas, conseguindo liderar o processo, me senti capaz de novo, foi tão bom. Eu me enchi de energia, percebi que ainda dava conta”. Essa foi uma das ocasiões em que eu senti um alívio imenso por perceber que ele estava acessando sensações que em geral só vejo mulheres acessarem. Mas as sensações obviamente não têm a ver com gênero: têm a ver com cuidar, dia e noite, por meses, de um bebê (e no nosso caso, de uma criança de 6 anos também). E por maior que seja a sensibilidade dele ou de qualquer outro homem que ouça sua parceira puérpera falar a respeito, é só sentindo na pele pra saber de verdade do que se trata.

Medo de falhar, de nunca mais conseguir compreender um parágrafo na primeira leitura, de se manifestar numa discussão e falar bobagem, de ser uma profissional medíocre, de ter perdido a criatividade, de não conseguir mais nem mesmo bater papo numa roda de amigos, porque a gente perde até as habilidades sociais. Medo de todos esses medos não irem embora nunca mais.

Conversando a respeito com um amigo que também é pai e que também assumiu os cuidados com o filho por mais tempo do que a maioria, ele me disse a mesma coisa: chegou a ter dúvidas se conseguiria cumprir todas as atividades intelectuais que cumpria antes daquela sequência de noites em claro, fraldas sujas, choros inconsoláveis. E também ficou aliviadíssimo quando se viu como indivíduo novamente, não só como o cuidador de um outro ser, que mal nos retribui objetivamente (sorrisos e gracinhas demoram um tanto a começar e nem sempre compensam todos os perrengues envolvidos #prontofalei).

Dia desses eu assisti a alguns episódios da série “The Letdown” (“Turma do peito”, na tradução do Netflix). Vou tentar não dar spoilers, mas preciso contar que, no grupo de apoio para mães e pais de bebês, há apenas um homem. E, a um certo ponto, ele passa por uma situação semelhante. Mas, enquanto uma das colegas se desespera porque mal conseguiu preencher as palavras-cruzadas do jornal, ele avisa que é parte de um processo cerebral que está, na verdade, aprimorando as funções do órgão. E é só por causa disso, aparentemente, que ela passa a ver uma luz no fim daquele túnel. A mesma luz que eu só vejo há mais ou menos um mês, mesmo estando no meu segundo puerpério.

Fala-se (pouco, mas fala-se) sobre hormônios, as transformações que se dão no corpo e na mente da mulher por meses, até anos depois do parto, e de fato é uma descarga que tem o poder de nos tirar o chão. Mas, primeiro, vamos olhar para isso com acolhimento e compreensão, e não fazer aquelas brincadeiras marotas que ocultam (às vezes bem mal) uma ridicularização de quem está emocionalmente mais vulnerável?

Segundo, vamos entender que não se pode dizer que se trata, necessariamente, de depressão pós-parto? Começo a ler, só bem recentemente, textos e reportagens que apontam para a necessidade de ampliarmos o olhar para essa questão, considerando que existem muitas matizes entre o baby blues e a depressão pós-parto. E, já engatando no terceiro combinado: vamos detectar quais os fatores não passam por questões hormonais, mas práticas, ou seja, que se relacionam a tudo o que envolve cuidar de um bebê em período integral? Quem sabe assim a gente possa tirar da mulher a exclusividade de penar no puerpério, ainda que inevitavelmente ela tenha muito mais para lidar do que quem não pariu. Porque passam coisas muito loucas pelas nossas cabeças, nossos ritmos ficam totalmente irregulares, assim como os humores. A gente se perde de si. Mas privação de sono, por exemplo, um clássico dessa fase, é algo pelo qual não precisamos passar sozinhas. E não só porque alguém acordado no nosso lugar com o bebê no colo é igual a mais horinhas pra gente dormir, mas também porque dividem-se, assim, os efeitos do puerpério que vão muito além das questões hormonais e emocionais de um corpo que era grávido e deixou de ser. E antes que alguém pergunte: “Mas não é melhor que alguém fique são?” Eu mesma cheguei a cair nessa questão. Não, é preciso enlouquecer junto, parceria é sobre isso. Empatia também.

No meu primeiro puerpério, o Adriano voltou a trabalhar depois de uma semana, ainda que ocasionalmente ficasse comigo e com o João em casa e já pudesse flexibilizar horários. Sei que não foi só por isso, mas fato é que eu cheguei à beira da depressão naqueles primeiros meses e, desta vez, por mais que eu tenha sentido uma tristeza profunda em alguns momentos, passei muito longe de afundar. Também por isso, quando ele compartilha uma sensação que eu já cheguei a pensar que fosse exclusiva da maternidade, sinto um alívio. E mesmo me sentindo da mesma forma, tenho até vontade de ajudá-lo a reencontrar suas potências, porque já passei por isso uma vez e sei mostrar caminhos. Bem diferente da raiva que eu sentia da primeira vez, quando ele saía de manhã pra trabalhar, e eu pensava: “queria eu poder escolher sair pra trabalhar o dia inteiro”.

Ah: não vale dizer que quem tem que trabalhar fora precisa dormir à noite, tá? Porque quem tem que trabalhar em casa também precisa. “Durma quando o bebê dorme” é um mantra real, mas pouca gente diz que ele não costuma funcionar a ponto de satisfazer nossas necessidades de pelo menos 4, 5 horas de sono por noite — ou dia, tudo a mesma coisa nesse começo, gente.

Eu sei que o contexto aqui de casa é incomum, que nossos trabalhos, de alguma forma, permitem tudo isso. Mas eu preciso dizer que isso também foi escolha e construção nossa, que começou há anos e envolveu desde questões de gênero, criação de filhos, trabalho doméstico e mais um tanto de itens. Não é só consequência de meses de menos trabalhos aparecendo, como foram os últimos. E o preço de tudo isso não é baixo. Mas os ganhos também são muitos — pra nós dois, pessoalmente, pro relacionamento, pro que a gente quer ensinar pros nossos filhos sobre toda essa insanidade que é ser mãe e ser pai.

--

--