Chacinas no Rio de Janeiro: a favela como experimento para a indústria bélica.

Kaolin Vesterka
Mídia Independente Coletiva
6 min readNov 25, 2021
Via Google / Reprodução da Polícia Militar

Eles, “ozômi”, entram na favela, seja ela qual for,com a famosa justificativa de “guerra contra as drogas”. Silenciosamente, muitas vezes com sorriso no rosto e fazendo apostas entre si, armas em punho. No meio da tarde, início da manhã, começo da noite. Não tem hora. Eles entram. E eles matam.

Gráfico n° 20 do Anuário de Segurança Pública de 2021

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2021,nos diz que “A letalidade produzida pela polícia corresponde, em média, por 12,8% de todas as mortes violentas intencionais no país (…) e no Rio de Janeiro a 25,4%, percentuais muito elevados e que indicam um padrão de uso da força abusivo. “

Desde que eu me entendo por gente eu vejo essa suposta guerra às drogas, e nenhum resultado. Eu me lembro de quando eu era pequena, a gente deitando no chão do apartamento porque estava tendo guerra no morro, a polícia usando o prédio para acessar o terreno que dava acesso para um dos becos da favela.

Eu não precisei crescer muito pra descobrir que as coisas eram diferentes quando se tratava de branco do asfalto, pseudo classe média.
Se você for preto e favelado, você é traficante mesmo que não esteja traficando.
Se você é branco e morador da zona sul, é só um jovem que foi detido por suposto envolvimento com o tráfico. Se for preso, tudo pode ser resolvido com um bom (ou não) advogado de família, afinal, algumas horas em prestação de serviços é o suficiente para penalizar o rapaz que teve um pequeno desvio.

O preto, favelado, primeiro eles matam, e depois escutam a família dizer que ele não tinha envolvimento nenhum com “nada de errado”, e ainda colocam em xeque: “esse tipo? hum, sei!”.

É escancarado que o motivo da tal “guerra às drogas” é racista. Não se vê operação com tiroteio em aeroportos, e elas acontecem de forma corriqueira, porque faz parte do procedimento de segurança, e quando há apreensões, como sempre ocorre no Aeroporto do Galeão, não há tiroteio. Em condomínios de luxo como o Vivendas da Barra, por exemplo, apreenderam 117 fuzis sem disparar um tiro.

Você acredita que as drogas e as armas chegam nas mãos dos traficantes de que forma?

Se pensarmos que as forças de segurança pública, que são comandadas pelos governos que em teoria escolhemos, são tão corruptas a ponto de contribuírem com o crescimento do tráfico nas favelas, e áreas periféricas, estamos admitindo que esse modelo governamental falhou?

Como é possível que se apoie uma instituição entrar numa periferia e exterminar a população, mas pensar que a política de legalização das drogas, que diminuiria drasticamente o trafico, diminuindo também as operações assassinas, é um absurdo?

Consegue pensar em uma área de periferia que o governo tenha entrado com estrutura de educação — creche, escola, cursos técnicos profissionalizante, direcionamento em recursos de empregos — cultura — arte, teatro, música, dança… — saúde — educação sexual, controle de endemias, saúde básica para homens, mulheres e crianças…

Agora pense em quantas comunidades você já viu sendo manchete com tiroteios, entre operações, invasões, mortes, helicópteros rasantes…

Em 2019 o Governador Wilson Witzel alegou que sua polícia deveria “mirar na cabecinha”, e assim o fizeram em diversas favelas do Rio, incluindo a Escola Municipal William Peixoto, no complexo de favelas da Maré, na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro.

Cada vez mais fica claro o estreitamento da similaridade entre as práticas do “Laboratório de Política da Morte”, a política da militarização, bem como diz a Jornalista e militante Gizele Martins, comunicadora na Maré:

“Indo à Palestina, eu descobri que a gente tem muita coisa em comum. Que lá é um laboratório da política da morte, de uma política racista, sionista e uma política de apartheid. Os territórios palestinos e a população palestina são feitas de laboratório de uma política de militarização. Ali há inúmeras empresas que fabricam o caveirão, que fabricam helicópteros, câmeras de vigilância e fabricam técnicas militares de matar. Após essas técnicas serem experimentadas no território e na população palestina, elas são vendidas para o mundo.”

(Veja a entrevista completa com Gizele Martins em: https://nosmulheresdaperiferia.com.br/do-rio-de-janeiro-a-palestina-a-militarizacao-dos-territorios/ )

No último dia 21 de novembro, aconteceu na favela da Palmeira, no complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, uma chacina em represália a morte de um policial que ocorreu em uma operação um dia antes. Oficialmente foram encontrados 8 mortos, mas ainda há desaparecidos.
Os corpos encontrados foram retirados do mangue, a maioria pelos próprios familiares que, desesperados, entraram no local sem equipamento, preparo ou ajuda, já que a Defesa Civil só foi autorizada a entrar na comunidade na manhã do dia seguinte.

Imagem O São Gonçalo, reprodução

A Delegacia de Homicídios de Niterói disse que vai ouvir os oficiais do Batalhão de Operações Especiais (BOPE), que participaram da chacina. Ainda assim, familiares e moradores, protestaram e exigem “justiça”.

Não existe justiça que pague a morte de oito pessoas que tinham família trabalhavam em exercício do próprio futuro.

Um morador do local alegou que, entre os mortos havia sim pessoas envolvidas como tráfico, mas não eram todos. Uma membro da família de um dos assassinados disse que:

“ele foi tirado de dentro de casa, torturado e arrastado até lá”.

A lógica do que acontece é: o governo e as forças de segurança comandadas pelo governo, ajudam e auxiliam o tráfico a existir e expandir, ao ponto de buscarem o que conhecemos como “arrego”.

Eles entram criam operações nas periferias com a justificativa de impedir o que eles ajudam a criar — e aqui se cria o mito de “policial bom e policial mau”, sendo o corrupto o mau e o assassino o bom — matam sob a justificativa de confrontos e autos de resistências — e aqui encontramos crianças como Marcus Vinícius, Eduardo de Jesus, Jefferson etc. — sem contar as balas perdidas e os desaparecimentos.

Eles ajudam o tráfico a existir, criam operações onde matam vários inocentes, crianças, idosos, pessoas… E quando um deles morre nessas situações criadas por eles, a resposta é entrar e matar mais e não importa quem seja.

E é aqui nesse ponto que entra a parte que deixa (ou deveria deixar) qualquer pessoa que não conhece o cotidiano de uma favela perplexa: todo mundo esperava essa represália. Porque é isso que eles fazem, criam a situação matando pra depois matar mais.

O que aconteceu no Salgueiro e no Jacarezinho esse ano (que ainda não acabou), é o que eu vejo desde sempre. É o que mães que perderam seus filhos na favela da praia do pinto em 1969 passaram.

Isso não vai mudar enquanto nós como população não enxergarmos que não existe heroísmo na militarização da polícia, que não existe policial antifascismo, que não existe e nem vai existir nenhum recurso e nenhum plano para fazer com que nós, favelados, sejamos vistos como seres humanos, além de objetos de experimento.

Precisamos falar abertamente e sem as vendas da hipocrisia, seja religiosa ou familiar, sobre a legalização das drogas para a redução do tráfico. Precisamos falar sobre a implantação de políticas públicas que englobem o favelado. Não somos garrafinhas de tiro ao alvo.

Reprodução Pinterest

--

--