Justiça é pouco

Maria Clara
Mídia Independente Coletiva
3 min readJun 16, 2022

Justiça é pouco. Quando Marielle, Aghata Felix, João Victor e Kethlen Romeu morreram, todos, com exceção dos familiares das vítimas, seguiram como se nada tivesse acontecido. Quando morreu o Genivaldo, igual. Agora morreram Bruno e Dom, e mais um pouco de cada um de nós morre junto. Morre um pouco daqueles de nós que ficamos consternados, mas morrem por dentro, e muito mais, aqueles que se dizem não ser coveiros.

Todo dia o estado brasileiro mata, direta ou indiretamente, quem entra no caminho dos seus lobistas de estimação. Se você é pobre, preto, indígena e/ou favelado, ou está do lado dessas pessoas, saiba que sua vida não vale nada. Você é 100% descartável no Brasil. Essa é a verdade. E a outra verdade é que só justiça nunca vai mudar isso. A justiça até hoje não chegou em quem mandou matar a Marielle, e talvez não chegue em quem mandou matar Bruno e Dom — e tantos outros de quem não temos notícia. Os policiais que mataram o Genivaldo numa câmara de gás móvel estavam soltos e trabalhando até duas semanas atrás.

Portanto, não se iludam aqueles que acham que porque tem um carro, do ano ou popular, ou um celular top de linha, uma casa financiada na caixa econômica… Não cultivem a ilusão de que são um cidadão brasileiro do século XXI em pleno gozo dos seus direitos, porque não são.

O Brasil vive, se muito, no século XVII apesar do cenário e figurino de século XXI. Somos escravos modernos do mercado, das taxas de juros e do agronegócio que, se abanarmos os rabinhos e mostrarmos as patinhas na hora certa, talvez, e só talvez, nos darão permissão para brincar com brinquedos reluzentes.

No estado brasileiro de 2022, quem é pobre tem direito a um trabalho precarizado, sem CLT, um empréstimo consignado, uma casa num barranco que periga deslizar na próxima chuva de verão, pagar dívidas até morrer e comer ovo com miojo que foi preparado num fogão à lenha improvisado, porque o gás tá caro demais. Enquanto isso, o sistema segue fazendo com excelência o seu trabalho de arrochar salários e retirar direitos para entregar pro mercado mão de obra barata, dependente demais que aceita trabalhar por menos que o mínimo. E assustada demais pra se levantar contra o seu próprio extermínio.

E a classe média (do pobre-prime aos faria-limers), para não encarar o fato de que está mais perto da base do que do topo da pirâmide, fantasia com self-made-man fictícios na esperança de juntar-se a eles enquanto se agarra no grande guarda-chuva “one-size-fits-all” do (micro)empreendedorismo e no conto da meritocracia. Que, no cenário atual, nada mais é do que a inexistência de políticas de geração de emprego e plano de carreira, deixando as pessoas à própria sorte, dependentes da criatividade individual e de empréstimos bancários para ter alguma renda.

“E o que isso tem a ver com o desaparecimento e assassinato do Bruno e do Dom Philips?” É porque é desta forma, com cada um preocupado apenas com o próprio umbigo (seja por necessidade ou por vaidade), que se criou uma sociedade anestesiada, impotente, amendrontada, ou simplesmente insensível e arrogante, da parte de alguns. Uma sociedade que vai deixando passar as boiadas e vai naturalizando a barbárie nova de cada dia. Que aceita perder justamente quem luta contra a barbárie.

Justiça por Bruno Pereira e Dom Philips é muito pouco, é o mínimo. E deveria ser só o começo.

imagem: Crisvector

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Maria Clara
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Caçadora de mim. Foto da capa: Cristian Palmer on Unsplash.