tradução || Sundance: Como o time multicultural por trás de "O Motorista de Fuga Acidental" buscou criar um filme Culturalmente Sensível

O Produtor Andy Sorgie, o diretor Sing J. Lee e um time de consultores-transformados-em-produtores mergulharam na comunidade de Pequena Saigon para contar a história verídica de um idoso vietnamita e veterano de guerra que teve a vida alterada por uma fatídica corrida

Ana Kinukawa
mídias selvagens
10 min readDec 19, 2023

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Por Roberta Sun — 20 Janeiro, 2023 | Traduzido por Ana Kinukawa — 11 Fevereiro 2023

O Diretor Sing J. Lee (ajoelhado com barba) é cercado dos membros da equipe Josh Montes (1º AD), Jeff Barnett (dublês), Michael Cambio Fernandez (Diretor Fotografia), Christine Ho Dinh (1ª Assistente de Câmera) e Liv Li (Produtora de Set). COURTESY OF RON BATZDORFF

Andy Sorgie sabia que finalmente havia encontrado seu projeto do coração quando leu a peça da revista GQ escrita por Paul Kix "O Motorista de Fuga Acidental", a história verídica de Long Ma, um motorista idoso de Orange County cuja vida é inesperadamente virada de cabeça para baixo uma noite quando seus passageiros se revelam ser presidiários em fuga. O que soa como um thriller criminal é na verdade um surpreendente conto de homens solitários e maginalizados pela sociedade e por suas escolhas, e sobre a habilidade de encontrar redenção e novas famílias nos lugares mais inusitados.

"É sobre um grupo de pessoas que você não vê sendo mostradas na mídia com frequência", diz Sorgie, vice presidente de Filmes na produtora de Kimberly Steard, K Period Media. "Eu sempre olhava para o projeto pensando 'Como nós contamos a história [de Ma] garantindo que ele tenha voz nela?' Ele não seria uma pessoa que só pagamos e depois descartamos".

E mais importante, Sorgie — cujo filme, O Motorista de Fuga Acidental, estreia na competição dramática de filmes estadounidenses em Sundance na segunda-feira e é sua própria estreia como produtor principal depois de uma década aprendendo o ofício — sabia que, particularmente como alguém fora da comunidade imigrante vietnamita em que a narrativa se passa, o filme tinha que alcançar um equilíbrio crítico. Ele tinha que contar uma história que reverberasse universalmente sem comprometer a autenticidade da cultura específica que se propunha a mostrar, e vice e versa.

"Como fazer tudo para produzir [um filme] do jeito certo, e ainda ser bom?"

Mesmo sendo informado por várias pessoas de que ele não precisaria opcionar nenhum direito porque a história já era um fato registrado no Judiciário[1], Sorgie não apenas contatou a empresa Thunder Road Pictures, que já possuía um acordo informal com Kix para adaptar seu artigo da GQ, para que se juntassem ao filme, mas também estava determinado a assegurar os direitos sobre a história de Ma — assim como a sua benção.

Isso deu início a seis meses de uma odisseia à parte, pois, para um ítalo-americano da terceira geração e produtor de primeira viagem, procurar um solitário imigrante septuagenário vietnamita que não falava inglês não era uma tarefa fácil. Foi recomendada a Sorgie a consultora cultural Jes Vu, que o introduziu a Joseph Hieu, que por décadas havia interpretado pequenos papeis toda vez que Hollywood precisava de um figurante vietnamita. "Eu seria o cara branco perdido na Pequena Saigon [sem eles]", diz Sorgie sobre a pequena comunidade afastada no sul da Califórnia que é lar da maior população vietnamita fora do Vietnã em todo o mundo.

Sorgie conseguiu encontrar o advogado que havia defendido Ma anteriormente, mas este último estava desgostoso de tantos negócios prometidos de projetos que haviam caído que não conseguia ser facilmente contatado. Assim, Hieu partiu para as suas conexões locais: "Eu perguntei para todos os antigos soldados Sul Vietnamitas, 'Ei, você já ouviu esse nome? Ele costumava ser um capitão [no exército do Vietnã do Sul]". Um sapateiro reconheceu Ma e deu a Hieu as direções para o pequeno apartamento que o idoso estava alugando em Garden Grove, onde ele eventualmente foi persuadido a se encontrar com Sorgie e ouvir seu pitch pessoalmente.

Sentado no café Chez Rose na Pequena Saigon, Sorgie (com Hieu como intérprete) compartilhou a conexão pessoal que ele sentiu com Ma, já que seu próprio pai havia conquistado duas medalhas Purple Hearts lutando ao lado das forças Sul Vietnamitas durante a guerra. "Long ainda estava 'talvez sim, talvez não'", diz Sorgie. Então, o pai do produtor lhe enviou um pacote por correio: uma bandeira do Vietnã do Sul de 1968 que ele carregava durante a guerra. Sorgie presenteou a bandeira a Ma, junto de um bilhete pessoal do seu pai, e desde esse momento "ele percebeu que estávamos partindo de um lugar muito genuíno", ele diz, acrescentando que ele havia pressionado para garantir que Ma recebesse um pagamento justo pela sua história. "Era importante que a sua negociação fosse proporcional à de Paul Kix, o autor branco que havia escrito o artigo originalmente". O Ma real até teve uma aparição cameo no filme, interpretando o oponente do ator que o interpreta (o francês Hiep Tran Nghia, que Vu havia visto em um curta no Viet Film Fest em 2021) em uma partida de xadrez chinês.

[1] a matter of court record

"Eu o adoro e vou continuar a fazer tudo ao meu alcance para protegê-lo", diz o produtor Andy Sorgie (canto direito) sobre o verdadeiro Long Ma (segundo da direita), que visitou o set e conheceu o ator que o interpreta (Hiep Tran Nghia, no canto esquerdo, com o diretor Sing J. Lee). COURTESY OF RON BATZDORFF

Enquanto Sorgie e Hieu estavam trabalhando em ter Ma à bordo do projeto, o diretor Sing J. Lee e seu co-autor Christopher Chen aperfeiçoavam o roteiro. Ambos são de descendência asiática, mas não vietnamita. (Sorgie explica que, embora ele tivesse considerado a logística e a praticidade de fazer um filme financeiramente viável ao juntar uma equipe multicultural, muitos dos quais eram asiático-americanos, em vários casos 'a melhor pessoa para o trabalho' era vietnamita, como a figurinista Kim H. Ngo, assim como Julian Saporiti, que escreveu as músicas originais para o filme). Lee diz que ele havia se inspirado em sua avó doente enquanto ele e Chen estavam escrevendo o roteiro em 2021. "Eu sentia a fragilidade de todas aquelas suas histórias que nunca antes havia conseguido comunicar [por causa da barreira linguística] e que iriam embora com ela, deixando de existir", ele diz. "Porque, como em qualquer comunidade marginalizada, nossas histórias nem sempre são registradas, e são muito orais. Isso me fez pensar muito sobre uma pessoa como Long Ma. Você tem esse exterior de um homem velho, estoico que raramente fala por muitos motivos, mas o que está atrás disso?"

“Porque, como em qualquer comunidade marginalizada, nossas histórias nem sempre são registradas, e são muito orais. Isso me fez pensar muito sobre uma pessoa como Long Ma. Você tem esse exterior de um homem velho, estoico que raramente fala por muitos motivos, mas o que está atrás disso?”

O diretor, que passou muito do seu tempo pesquisando narrativas sobre a experiência vietnamita americana no Sul da Califórnia, também estava determinado a evitar estereótipos da cultura de gangue vietnamita, assim como da população carcerária. Com isso, ele se voltou a livros incluindo Os Gângsters que Estávamos Buscando de Le Thi Diem Thuy [2], Nada Nunca Morre de Viet Thanh Nguyen [3], O Melhor Que Podíamos Fazer de Thi Bui [4] e O Sonho Partido de Patrick Du Phuoc Long [5]. "As histórias pessoais de muitas comunidades de imigrantes e refugiados não são tão preeminentes como deveriam ser, ou são escritas pelas lentes de alguém olhando desde o lado de fora", ele diz, "por isso eu fui atrás de muita literatura vietnamita americana".

[2] The Gangster We Are All Looking For by Le Thi Diem Thuy

[3] Nothing Ever Dies by Viet Thanh Nguyen

[4] The Best We Could Do by Thi Bui

[5] The Dream Shattered by Patrick Du Phuoc Long

Sorgie também tomou a significativa decisão como produtor de não manter seus consultores culturais na "armadilha da consultoria", uma posição que muitas vezes recai sobre experts de um background específico (normalmente marginalizado) e que torna difícil para que eles construam suas próprias carreiras na indústria. Quando o filme já estava finalizado, Vu recebeu o crédito de co-produtor e Hieu foi promovido de intérprete a produtor. (Sorgie também tornou sua assistente, Linh Nguyen, e a assistente de Lee, Quyen Nguyen-Le, produtores associados.) "Eu nunca pensei que teriam a gentileza de me dar o crédito de produtor", diz Hieu. "É uma honra poder fazer algo não apenas para mim, mas também para a comunidade".

Para ser fiel à história, a maioria dos diálogos de O Motorista de Fuga Acidental está em vietnamita — algo que preocupava Sorgie após ver o sucesso de outros filmes americanos como A Despedida [6] e Minari. Hieu, assim como o acadêmico Ly Thuy Nguyen (outra recomendação de Vu), fizeram um pente fino no roteiro para traduzir os diálogos para o vietnamita, atentos a todas as nuances de cada personagem com falas: Long Ma, com seu passado de soldado sul-vietnamita; Eddie, o jovem preso mais assimilado à cultura ocidental; e Tay, o preso na faixa dos 40 anos que não apenas se torna tradutor literal do grupo, como também seu mediador. "Nós fomos muito precisos com gírias que eles poderiam usar, com a sintaxe de tudo", diz Lee, que também trabalhou de perto com o elenco para especificar qual seria a melhor linguagem para que parecessem o mais fiel à realidade possível. "Nós separamos várias sessões em que eu, Ly e [os atores] discutimos sobre qualquer fala que pudesse ser dita pelo seu personagem da forma mais natural com relação à geração ou coloquialismo, sem perder sua intenção original. Havia uma fluidez enorme no processo de tradução".

Esse cuidado impressionou Dustin Nguyen (Anjos da Lei [6], Guerreiro [7]), que interpreta Tay e era o maior nome da produção. "Exige muito trabalho alcançar bons diálogos e autenticidade, e muitas vezes outros projetos não têm um time de apoio, os consultores certos ou o tempo exigido para acertar. Você precisa aceitar a visão do diretor e do produtor, e é muito tedioso explicar essas nuances culturais e linguísticas", diz Nguyen. "Essa era minha maior preocupação ao falar com o Andy: 'Eu apenas farei isso se vocês estiverem realmente comprometidos'. Pela primeira vez em meus mais de 30 anos de carreira em Hollywood… eu ouso dizer que esse filme certamente tem os diálogos e os aspectos culturais de personagens mais autênticos que já vi".

[6] 21 Jump Street

[7] Warrior

“Exige muito trabalho alcançar bons diálogos e autenticidade, e muitas vezes outros projetos não têm um time de apoio, os consultores certos ou o tempo exigido para acertar. Você precisa aceitar a visão do diretor e do produtor, e é muito tedioso explicar essas nuances culturais e linguísticas”

Dustin Nguyen (esquerda) e Hiep Tran Nghia estrelam como dois homens vietnamitas de duas gerações diferentes cujos caminhos solitários se cruzam de uma forma surpreendente — e redentora. COURTESY OF RON BATZDORFF

A presença de Nguyen e a história da sua carreira também expuseram os produtores a um conhecimento crucial sobre a comunidade de idosos da Pequena Saigon, com quem buscavam favores (e locações para as filmagens). "Toda porta em que nós batíamos, eles nos perguntavam 'Isso é algo de comunistas?'" diz Hieu.

"Os vestígios da guerra ainda existem entre muitos [da geração mais velha]", explica Nguyen, que já adulto voltou a morar no Vietnã por uma década, onde fez vários filmes, despertando as suspeitas de muitos dos locais da Pequena Saigon, que, por outro lado, foram expulsos de sua terra natal pelo atual regime comunista. "Você também tem uma situação em que muitos deles assistiram a filmes hollywoodianos sobre o Vietnã, e existe um considerável desgosto: 'Oh Deus, outro filme de Guerra do Vietnã feito por pessoas que não nos entendem e nos mal interpretam".

“Você também tem uma situação em que muitos deles assistiram a filmes hollywoodianos sobre o Vietnã, e existe um considerável desgosto: ‘Oh Deus, outro filme de Guerra do Vietnã feito por pessoas que não nos entendem e nos mal interpretam”.

Para acalmar esses medos (dos quais Ma também originalmente compartilhou), Sorgie e sua equipe fizeram o esforço de mergulharem de cabeça na comunidade, com a maior boa vontade [8]. "Eles estavam dispostos a ir ao Festival Vietnamita, apertar mãos e fazer amizades com as pessoas, abrindo seus braços para qualquer ideia sobre as quais as pessoas quisessem falar", diz Hieu admirado. "Você sabe como quando as pessoas são apreciadas, elas se sentem seguras para se abrir?".

[8] embarking on a goodwill tour of sorts

“Você sabe como quando as pessoas são apreciadas, elas se sentem seguras para se abrir?”

Hieu nota que ao fim das filmagens, uma outra produção que também filmava no bairro mas tomou menos tempo para conhecer os locais encenou uma cena de Ano Novo Lunar repleta de coelhos em frente ao famoso shopping center Phuroc Loc Tho da Pequena Saigon. "Para os chineses, é o Ano do Coelho, mas para os vietnamitas é o Ano do Gato", ele ri. "Mas ninguém disse uma palavra sobre isso estar errado. Por isso é tão importante ter essa conexão [com a comunidade]".

Sorgie é grato aos investidores do filme — além da produtora de Steward, K Period Media, também se incluem Barbara Broccoli e Michael G. Wilson com sua Eon Productions, a produtora de Jennifer J. Pritzker, Cedar Road, e a Ottocento Films de Luisa Law e Scott LaSaiti, além da Sheerlund Productions, de Peter M. Carlino — por acreditarem nele e na integridade da história. "As pessoas que se tornaram os maiores defensores do projeto foram mulheres, que estavam por trás dessa história sobre quatro caras em um carro", ele diz. Adiciona Broccoli, quem, quando não está produzindo a franquia de [James] Bond, também apoiou Till, "É animador para mim descobrir novas vozes e explorar histórias originais de outra cultura, especialmente quando elas têm humanidade e tudo isso a dizer sobre a condição humana".

Finalmente, para Sorgie, ainda que ele acredite que O Motorista de Fuga Acidental tenha uma boa exibição em Park City e para além de Sundance (o filme já assegurou distribuição internacional pela Sony), ele está ansioso pela sua exibição em um lugar em particular. "O pior para mim seria mostrar o filme na Pequena Saigon, e as pessoas reagirem com 'Isso não nos representa de verdade. Não sei o que essas pessoas estavam tentando fazer'", ele diz. "Nosso principal e primeiro objetivo é alcançar essa audiência, e expandir daí".

O elenco e a equipe multiculturais de "O Motorista de Fuga Acidental" posam para uma foto em grupo alguma hora após a meia noite na Pequena Saigon.

Este artigo foi publicado originalmente na revista "The Hollywood Reporter".

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