[tradução] Ava Duvernay entrevista Angela Davis sobre o atual momento — e tudo o que veio antes

A estudiosa e ativista passou mais de 50 anos lutando por justiça social. Neste verão, a sociedade enfim começa a acompanhá-la.

Ana Kinukawa
mídias selvagens
9 min readSep 1, 2020

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Matéria originalmente publicada na revista estadunidense The Vanity Fair, Edição de Setembro 2020, em 26 de Agosto de 2020. Link.

“No momento” (In the moment): Angela Davis, em sua residência em Oakland, Julho 2020. Fotografia por Deana Lawson.

AVA DuVERNAY: Eu estava lendo uma entrevista em que você falou sobre algo que está na minha mente já faz um tempo. Era sobre este momento em que nós estamos agora, que vou chamar somente de um acerto de contas racial. Você sente que nós poderíamos ter chegado a este momento de uma maneira tão robusta como a que sentimos neste verão se não fosse todo o contexto da crise do COVID? Um poderia ter ocorrido com força tão grande sem o outro?

ANGELA DAVIS: Este momento é uma conjuntura que envolve a crise do COVID-19 e a crescente percepção (awareness) da natureza estrutural do racismo. Momentos como esse de fato vêm à tona. Eles são totalmente imprevisíveis, e nós não podemos basear nossa organização na ideia de que podemos ser os condutores (usher) num momento desses. O que nós podemos fazer é fazermos bom uso deste momento. Quando George Floyd foi linchado, e nós fomos todos testemunhas disso — nós todos assistimos enquanto esse policial branco apoiava o joelho no pescoço de George Floyd durante oito minutos e 46 segundos — acho que muitas pessoas de todas as raças e etnias, que não necessariamente compreendiam o modo como a história está presente nas nossas vidas hoje, que diziam, “Bem, eu nunca fui senhor de escravos, então o que a escravidão tem a ver comigo?” de repente começaram a entender. Que havia um esforço que deveria ter sido feito logo após o fim da escravidão e que poderia ter nos prevenido de chegar a este momento. Mas isso não aconteceu. E aqui estamos. E agora temos que agir.

Os protestos ofereceram às pessoas a oportunidade de participar dessa demanda coletiva por uma mudança profunda, uma mudança radical. Cortar o orçamento da polícia, abolir o policiamento como nós conhecemos. Esses são os mesmos argumentos que nós temos feito há tanto tempo sobre o sistema prisional e sobre todo o sistema de justiça criminal. Foi como se todas essas décadas de trabalho feito por tantas pessoas, que não receberam crédito algum, enfim dessem frutos.

Você entendeu os perigos do policiamento nos Estados Unidos, a criminalização de pessoas negras, indígenas e marrons, 50 anos atrás. Seu ativismo e sua produção acadêmica sempre foi inclusiva de classe, raça, gênero e sexualidade. Parece que nós estamos numa massa crítica onde a maioria das pessoas finalmente podem ouvir e compreender os conceitos dos quais você tem falado há décadas. Depois de todo esse tempo, isso é satisfatório ou exaustivo?

Eu não penso nisso como uma experiência que estou tendo como um indivíduo. Penso nisso como uma experiência coletiva, porque eu jamais teria feito aquelas declarações ou engajado naqueles tipos de ativismo se outras pessoas também não estivessem. Uma das coisas que alguns de nós diziam de novo e de novo é que precisamos fazer esse trabalho; estamos fazendo esse trabalho. Não espere receber crédito por ele. Não é para ser reconhecidos que fazemos esse trabalho. Fazemos porque queremos mudar o mundo. Se não fazemos contínua e apaixonadamente, ainda que pareça que ninguém esteja ouvindo, se não ajudarmos a criar as condições que possibilitam a mudança, então um momento como este chegará e nós não poderemos fazer nada sobre ele. Como Bobby Seale disse, nós não seremos capazes de “aproveitar o momento” (seize the time). Este é o exemplo perfeito de que conseguimos aproveitar este momento e torná-lo algo radical e transformador.

Se não fazemos contínua e apaixonadamente, ainda que pareça que ninguém esteja ouvindo, se não ajudarmos a criar as condições que possibilitam a mudança, então um momento como este chegará e nós não poderemos fazer nada sobre ele.

Eu amo isso. Sei que há muita energia sendo gasta em como manter viva toda essa atenção [N.T.: dada aos atos e demonstrações]. Mas o que você está dizendo é que isso precisa estar ocorrendo de forma isolada de quaisquer forças externas. Para quando a hora certa chegar, exista um preparo que já esteja em processo. Não pensar tanto em como sustentar o momento. Só esteja sempre preparada para quando o momento chegar, porque ele chegará.

Exatamente. Penso também nas suas contribuições. Tantas pessoas viram o seu trabalho, os seus filmes: “A 13ª Emenda” (13th) e o filme sobre os “Cinco do Central Park” (the Central Park Five).

“Olhos que Condenam” (When They See Us)! Não acredito que você conhece. Estou animada.

Meu Deus. Eu não apenas assisti, como encorajei outras pessoas a verem. Eu vi aquela conversa muito emocionante entre os atores e os personagens da vida real. Tudo aquilo ajuda a criar terreno fértil. Não acho que nós estaríamos onde nós estamos agora sem o seu trabalho e o trabalho de outros artistas. Na minha cabeça, é a arte que pode começar a nos fazer sentir aquilo que nós ainda não necessariamente entendemos.

Tudo aquilo ajuda a criar terreno fértil. Não acho que nós estaríamos onde nós estamos agora sem o seu trabalho e o trabalho de outros artistas. Na minha cabeça, é a arte que pode começar a nos fazer sentir aquilo que nós ainda não necessariamente entendemos.

Você fez minha vida ao dizer isso. Não tenho como lhe agradecer o suficiente. Muito se fala sobre os símbolos da escravidão, do colonialismo. Estátuas estão sendo derrubadas, pontes estão sendo renomeadas, prédios estão sendo renomeados. Você acha que se trata de algo performático, ou você ainda acha que existe autenticidade nesse tipo de ação?

Não acho que exista uma resposta simples. É importante apontar para as manifestações materiais da história que estão sendo enfrentadas agora. E aquelas estátuas são recordações de que a história dos Estados Unidos da América é uma história de racismo. Então é natural que as pessoas viessem a tentar derrubar esses símbolos.

Se é verdade que nomes estão sendo mudados, estátuas estão sendo removidas, também deve ser verdade que as instituições estão voltando o olhar para si próprias e pensando em como radicalmente se transformar. Esse é o trabalho real. Às vezes nós assumimos que o trabalho mais importante é o trabalho dramático — as manifestações de rua. Eu gosto do termo que John Berger usou: Manifestações são “ensaios para a revolução”. Quando nós nos juntamos a tantas pessoas, nós nos tornamos conscientes da nossa capacidade de provocar mudanças. Mas raramente as manifestações por si só trazem mudanças. Temos que trabalhar de outras formas também.

Sempre adorei falar com você, porque em uma conversa são nove novas referências. Você me dá uma lista de leitura só das suas citações. John Berger. Anotando. Uma das coisas das quais você falou e que eu carrego até hoje é sobre diversidade e inclusão. Em muitas indústrias, especialmente na indústria do entretenimento onde eu trabalho, essas palavras são consideradas clichês. Mas eu as vejo da forma como você me ensinou na conversa que tivemos para “A 13ª Emenda”. Essas são táticas de reforma, não de mudança. O departamento de diversidade e de inclusão do estúdio, da universidade, de qualquer organização, não é uma solução imediata.

Com certeza. Praticamente todas as instituições se utilizam desse termo, “diversidade”. E eu sempre pergunto, “Bem, onde está a justiça nisso?” Você simplesmente vai pedir que aqueles que foram marginalizados e subjugados entrem na instituição e participem do mesmo processo que levou exatamente à sua marginalização? Diversidade e inclusão sem mudança substancial, sem mudança radical, não conquista nada.

Você simplesmente vai pedir que aqueles que foram marginalizados e subjugados entrem na instituição e participem do mesmo processo que levou exatamente à sua marginalização? Diversidade e inclusão sem mudança substancial, sem mudança radical, não conquista nada.

“Justiça” é a palavra-chave. Como nós começamos a transformas as próprias instituições? Como nós mudamos essa sociedade? Nós não queremos ser parte da exploração capitalista. Nós não queremos ser parte da marginalização de imigrantes. E, portanto, deve haver uma forma de pensar como conectar todas essas questões e em como começar a imaginar um tipo diferente de sociedade. Isso é o que “cortar o orçamento da polícia” significa. Isso é o que “abolir a polícia” significa.

Como nós podemos aplicar isso ao sistema educacional?

O capitalismo tem que ser parte da conversa: o capitalismo global. E isso é parte da conversa sobre educação, porque o que nós testemunhamos é uma crescente privatização, e a emergência de um tipo de híbrido: as escolas charter [N.T. modelo de escolas públicas estadunidense de tipo independente, não administradas por um distrito]. A privatização é o porquê dos hospitais estarem tão despreparados [para o COVID-19], porque eles funcionam de acordo com o que o capital dita. Eles não querem macas extras, porque isso significa que eles não estão gerando lucro. E por que é que estão ordenando crianças a voltarem às escolas? É por causa da economia. Nós estamos numa depressão agora, então eles estão dispostos a sacrificar as vidas de milhares de pessoas somente para manter o capitalismo global em funcionamento.

Sei que isso é um assunto do tipo macro, mas eu acho que, sem esse entendimento, nós não podemos verdadeiramente compreender o que é que está ocorrendo na família onde os pais são trabalhadores essenciais e são obrigados a trabalhar sem que tenham assistência social para cuidar de seus filhos. Não apenas deveria haver uma educação gratuita, como também deveria existir o oferecimento de serviços gratuitos para cuidados de crianças e de saúde. Todos esses assuntos estão vindo à tona. Isso é, como você mesma disse, um momento de acerto de contas racial. Um reexame do papel que o racismo teve na criação dos Estados Unidos da América. Mas eu acho que temos que falar sobre capitalismo. O capitalismo sempre foi um capitalismo racial. Onde quer que vemos o capitalismo, vemos a influência e a exploração do racismo.

O capitalismo sempre foi um capitalismo racial. Onde quer que vemos o capitalismo, vemos a influência e a exploração do racismo.

Nós não temos falado muito sobre o período do Occupy. Acho que quando olhamos para como os movimentos sociais se desenvolveram, o Occupy nos deu novos vocabulários. Nós começamos a falar sobre o 1 por cento e os 99 por cento. E eu acredito que isso se relaciona com os protestos de hoje. Nós devemos ser muito claros acerca do fato de que o capitalismo global é em grande parte responsável pelo encarceramento em massa e pelo complexo industrial prisional, assim como é responsável pelas migrações que têm ocorrido ao redor do mundo. Imigrantes forçados a deixar as suas terras natais porque o sistema do capitalismo global tornou impossível viver vidas minimamente humanas nelas. Por isso que vêm aos EUA, e por isso que vão à Europa, em busca de vidas melhores.

Como é para uma mulher nascida durante o período da segregação ver um momento [N.T. de protestos e ativismo] como este? Que lições você pôde tirar sobre a superação de dificuldades?

Essa é uma grande pergunta. Talvez eu possa respondê-la afirmando que é preciso que nós tenhamos um certo otimismo. De um jeito ou de outro, eu estive envolvida em ações políticas desde muito, muito jovem, e eu me recordo de que minha mãe nunca falhou em enfatizar que, por mais que as coisas estivessem ruins em nosso mundo segregado, mudanças eram, sim, possíveis. Que o mundo mudaria. Aprendi como viver sob essas circunstâncias ao mesmo tempo que habitava um mundo imaginado, admitindo que um dia as coisas seriam diferentes. Sou realmente afortunada por minha mãe ter sido uma ativista com experiência em movimentos políticos organizados contra o racismo, por exemplo a criada para defender os “Nove de Scottsboro” (the Scottsboro Nine).

Sempre reconheci meu papel como ativista ao auxiliar na criação de condições que possibilitem a mudança. E isso significa expandir e aprofundar a conscientização pública da natureza do racismo, do hetero-patriarcado, da poluição do planeta, e da relação de todos esses com o capitalismo global. Esse é o trabalho que eu sempre fiz, e que sempre soube que faria a diferença. Não o meu trabalho como indivíduo, mas o meu trabalho com comunidades que passaram e passam por dificuldades. Acredito que é assim que o mundo muda. Ele sempre muda a partir da pressão que as massas populares, de pessoas comuns, exercem no estado de coisas vigente. Me sinto muito sortuda por ainda estar viva hoje para testemunhar isso.

E fico tão feliz que alguém como John Lewis foi capaz de experienciar e ver tudo isso também antes de falecer, porque às vezes nós não chegamos de fato a testemunhar os frutos do nosso trabalho. Eles podem até se materializar, mas pode ser que isso ocorra somente 50 anos, talvez 100 anos depois. Mas eu sempre enfatizei que nós temos que trabalhar como se essa mudança fosse possível e como se ela fosse ocorrer mais cedo do que possamos imaginar. Pode ser que não; talvez nem cheguemos a testemunhar. Mas se nós não trabalharmos e lutarmos, ninguém nunca vai poder testemunhar.

— Ava DuVernay é uma cineasta cujos trabalhos incluem o filme nomeado ao Oscar, “Selma” e a série limitada da Netflix “Os Olhos que Condenam”.

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