Danielle Lima
Música Crônica
Published in
5 min readMay 11, 2020

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Imagine você remexendo as coisas empoeiradas que sua mãe guarda naquele quartinho da bagunça, acha uma fita, resolve escutá-la e, ao ouvir os primeiros acordes, se depara com a voz de sua mãe cantando lindamente ao som de um violão numa gravação completamente perdida no tempo.

Essa história poderia ser sua, mas quem achou essa fita foi Robby Baier, exatamente 35 anos depois que ela foi gravada.

Sibylle e Robby Baier

Foi entre os anos de 1970 e 1973 que Sibylle Baier, uma atriz alemã talentosa, além de filósofa, escritora e pintora, gravou “Colour Green” na sala da sua casa em um gravador de rolo. Em 2004, Robby, que cresceu com a mãe nos Estados Unidos e se tornou músico e produtor de discos, achou a fita, compilou um CD e deu uma cópia a J Mascis, do Dinosaur Jr., que imediatamente entregou o disco para a gravadora Orange Twin, que lançou o álbum e Sibylle foi então conhecida mundialmente.

Essa joia perdida, reforço aqui, só foi descoberta em 2006, exatamente 35 anos depois que Sibylle fez a gravação caseira. Até então suas músicas apenas existiam para poucos amigos e familiares. Acho que nem a própria Sibylle pensou que o público a ouviria cantando, pois é evidente na gravação que ela canta para si letras com temáticas de total introspecção. É um álbum que nitidamente não possui aspectos comerciais ou aspirações à fama.

Pouca coisa se sabe sobre Baier, mas uma delas é que ela enfrentou um período de intensa depressão. Amigos a obrigaram a sair da cama e a levaram para uma viagem a Estrasburgo. Ao voltar, Sibylle escreveu sua primeira música, “Remember the Day”. É uma poesia sobre estar viva e, nesse primeiro registro, ela captura a beleza por trás dos momentos mais desanimadores e tristes: “Lá devagar, devagar, eu não pensava mais o que é bom ou o que não é / Lá simplesmente foi cheiro da água e afastamento / Eu só fiquei olhando o velho oceano frio / Em uma emoção tenra e brilhante, cheia e indescritível. / Eu fiz o que pude. / Tudo foi bom.”

Em 1974, Sibylle atuou no filme “Alice in the Cities”, de seu amigo e diretor de cinema Wim Wenders. No trecho, uma das raras imagens em vídeo dela, curiosamente a vemos em um barco com “seus filhos” cantando “Softly”, que posteriormente entraria como a quarta faixa do álbum. Wenders, que já estava familiarizado com a música de Baier, imediatamente após o lançamento de “Colour Green” a convidou para cantar uma nova música em seu filme “Palermo Shooting”, de 2008. O convite resultou em “Let Us Know” e é linda! (Essa é a última gravação dela).

Sabe-se que Sibylle vive hoje nos EUA, para onde imigrou com a família. Nasceu e cresceu na Alemanha do pós-guerra, e tinha uma vida monótona. Embora sua língua materna não fosse o Inglês, Sibylle mostra que é uma escritora maravilhosa e consegue transmitir sentimentos intensos em cenas do cotidiano com muita naturalidade, como na música “Tonight”, em quem ela canta: “Hoje à noite / Quando cheguei em casa do trabalho / Doeu / Ali, imprevisto / Sentou-se na minha cozinha fazendo um pão com manteiga e o gato estava em seu joelho e sorriu pra mim / Hoje à noite / Quando cheguei em casa do trabalho / Me passou o violão e me disse, ’eu bati o meu carro, por favor cante para mim’”.

Em “Forgett” ela brinca que a palavra “esquecimento” é como se fosse algo personificado, transformando a palavra, com um “t” a mais, em alguém, como uma sombra com quem ela “tomou chá”. No início ela canta: “O esquecimento entrou em minha casa ontem / Minha casa está em decomposição / Onde o telhado e a tapeçaria estão podres / Onde a lareira não está esquentando / E tudo é esquecido / Não sei se ele quer ficar / Ele se deita como uma criança no jardim que é bem selvagem”. Transformando um pequeno trecho abstrato em uma cena totalmente imagética.

Sibylle fala sobre “esquecimento” também na faixa “I Lost Something in the Hills”, mas, nesta, como um sentimento de perda ou luto por alguma situação traumática que a traz para o momento toda vez que atravessa as colinas. Ela canta: “Toda vez que derramo lágrimas / Nos últimos anos / Quando atravesso as colinas / Oh, que imagens retornam / Oh, eu anseio / Para as raízes da floresta / Essa origem de todos os meus humores fortes e estranhos / Eu perdi algo nas colinas.” O trauma pode fazer com que as pessoas deixem partes de si mesmas para trás (lembranças, sentimentos, felicidade) só para poder lidar com o que aconteceu, mas aqueles sentimentos podem retornar à pessoa quando vivenciados novamente.

“Colour Green”, de Sibylle Baier, é uma declaração de como tudo pode desaparecer. É um registro de uma contemplação silenciosa e tranquila na sutil melancolia da vida mundana, onde o adversário é o dia-a-dia, e mesmo o que começa como uma vida feliz, pode se desintegrar em meras memórias. Sibylle fez um álbum melancólico muito simples, apenas violão e sua voz, que a propósito é lindíssima, longe de ser extremamente feminina, tampouco masculina, é uma combinação muito agradável (me faz lembrar Nico, do Velvet Underground, e Vashti Bunyan). “Colour Green” é um registro que revela mais sobre Sibylle Baier do que qualquer entrevista poderia. Poucos álbuns mostram a psique do compositor no comando tão intimamente como Sibylle fez. As faixas têm uma mistura de tom de conversação e voz reflexiva, semelhante a um diário, digo que precisa-se ouvir algumas vezes, especialmente porque algumas faixas têm um ritmo diferente (da estrutura padrão verso-refrão-verso-refrão 4/4), mas é isso que o torna tão íntimo e delicado. É como ouvi-la num show particular em uma atmosfera de luz baixa, numa sala recheada de tapetes e almofadas, somente ela, o violão e você. Arrisco dizer que é um álbum para se ouvir na melancolia de um fim de tarde chuvoso, com o coração partido, quando desgostoso da vida, ou somente para apreciação mesmo.

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