Bruno Roberto
Música Crônica
Published in
4 min readAug 1, 2022

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Arte: Nathalie Leonello

A cena você já conhece: são quatro da manhã e a pista de dança bate palmas em uníssono ao som do interlúdio do hit “Dog Days Are Over” da Florence and The Machine. Todos ali carregam um olhar vazio e errante típico de quem já bebeu mais que um Opala Comodoro 1975. E é precisamente nesse momento que você decide que o rolê acabou. Só mais essa música e é melhor ir para casa porque o metrô já vai abrir.

Desde seu lançamento no final de 2008, o som é onipresente quando o assunto é a banda liderada por Florence Welch. A inspiração veio de uma intervenção artística do suíço Ugo Rondinone, também intitulada “Dog Days Are Over” (os dias de cão acabaram), pela qual Florence passava todos os dias ao andar de bike pela Ponte de Waterloo. A produção ficou por conta de James Ford, do Last Shadow Puppets. Desde então, a faixa se tornou uma das mais famosas da banda e recentemente chegou até a provocar um pequeno terremoto em Berlim, quando fãs pularam ao mesmo tempo durante um show da turnê de divulgação do novo disco.

(instalação do Artista Ugo Rondinone)

Mas o que nem a Florence nem o DJ que escolheu a música (ou algum remix preguiçoso dela) como parte de seu repertório esperavam é que ela se tornasse um hino de fim de festa, numa espécie de banalização torta de uma música que levou pela primeira vez o grupo ao Billboard Hot 100 em 2010, atingindo a vigésima primeira posição. Portanto, a questão que se apresenta aqui é: o que pensar quando uma música querida por fãs de uma banda que nasceu no meio indie é conduzida ao mainstream dentro de um contexto cafona e que se opõe ao objetivo inicial da composição? Aliás, cabe a alguém ter alguma opinião a respeito disso?

Recentemente, algumas threads no Twitter sinalizaram a frequência da música em festas de casamento:

Em entrevista ao G1, ao ser questionada sobre a presença de “Dog Days Are Over” em festas “topzera” (quase sempre em versão remix) e casamentos, Florence riu da situação e ainda disse que “quando você lança uma música, não pode ficar com frescura, ela não pertence a você, pertence ao mundo.” Sobre os casórios brasileiros, ela diz: “não sou um modelo de comportamento para noivas”. Afinal, qualquer um com uma ideia razoavelmente sensata sobre relacionamentos concorda que dizer que “os dias de cão acabaram” só porque alguém se casou é, no mínimo, uma bobagem que fomenta um discurso antiquado e patriarcal. Mas isso já é outra história.

O mais interessante é que uma música lançada há mais de dez anos ainda consegue se fazer presente de alguma forma, nem que seja num contexto que os hipsters do Twitter julgam como careta. Isso mostra como a composição ainda afeta quem a ouve de alguma forma e é exatamente o que a música faz — ou se propõe a fazer com as pessoas. Se nem a própria artista se importa com a repercussão da sua obra, o que o publicitário de Pinheiros que bebe Kombucha tem a ver com isso? Tanto o single quanto o álbum “Lungs”, do qual ele faz parte, seguem intactos e disponíveis para qualquer um que queira ouvir.

O disco pandêmico da Florence and The Machine, “Dance Fever”, foi recebido pelo público com a mesma empolgação do álbum de estreia, em parte graças ao resgate da teatralidade que já se tornou uma marca da artista. Quem sabe a música “Free”, por exemplo, não vira o novo hit dos divórcios ou dancinhas de TikTok, pegando carona no sucesso de intérpretes performáticas como Kate Bush? Só o tempo vai dizer, mas também tá liberado reclamar se quiser.

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