Miguel Sokol
Música Crônica
Published in
5 min readJun 10, 2022

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“Stranger Things” trouxe Kate Bush de volta do mundo invertido direto para o topo das paradas inglesas e norte-americanas de streaming com a música Running Up That Hill. Mas invertido é o mundo onde Kate estava ou o nosso que, para começo de conversa, a deixou ser esquecida para que pudesse ser lembrada?

Tá certo que a própria Kate, reclusa como é, não ajuda em nada. Então lá vai: a primeira coisa que é preciso saber sobre Kate Bush é que ela não fácil, nem ela nem a música dela. Kate é complicada, desafiadora e consequentemente inovadora. Para citar uma inovação só, sabe o microfone de prender na orelha que ficou conhecido como“microfone da Madonna? Então, na verdade aquele microfone é da Kate Bush, foi inventado para ela.

Se hoje a Bjork é headline de festival fazendo música extraterrestre e a Florence Welch pode ser toda teatral no palco, ambas devem suas carreiras ao pioneirismo de Kate, a primeira a realizar a ainda dificílima façanha de fazer sucesso com um trabalho que não faz concessão a nada e nem ninguém. As músicas têm estruturas complexas, as letras são cheias de referências à literatura e o agudo da Kate, bom, esse é praticamente um poder mutante capaz de rachar janela de carro blindado.

Como prenúncio de uma carreira tão singular que beira o excêntrico, Kate Bush foi descoberta em um celeiro(!), o celeiro que ficava atrás da casa da família, uma construção de mais de 300 anos no subúrbio de Londres que foi sede de uma antiga fazenda. Foi lá que Kate aprendeu sozinha, aos 11 anos, a tocar o piano dos pais, um médico inglês e uma enfermeira irlandesa, e era lá que ela estava quando um amigo do irmão mais velho a ouviu tocando e resolveu gravar para que outro amigo também escutasse. O amigo do amigo era David Gilmour, guitarrista do Pink Floyd. Ele achou brilhante e resolveu não só financiar como produzir uma demo com três músicas. Foi exatamente o que os executivos da gravadora escutaram e Kate foi contratada na hora. Ela tinha 16 anos.

“Ela é uma artista de verdade. Se ela me lembra o Roger Waters? Não. Muito mais bonita, muito mais legal.” — David Gilmour

Apesar da pouca idade, Kate já começou dando as cartas ao se recusar a fazer um disco imediatamente, exigiu tempo e passou um ano estudando obsessivamente dança, mímica, canto e literatura (16 anos!). Só então ela gravou o primeiro single, ‘Wuthering Heights’, inspirado no romance homônimo de Emily Brontë, uma escritora do movimento gótico inglês. A música de estreia foi direto para topo das paradas. Kate tinha 17 anos.

(David Gilmour e Kate Bush)

Em 1979, aos 21, ela fez a 1ª turnê da sua vida: eram 16 trocas de figurino, muita dança, uma iluminação caríssima e o tal microfone que não é da Madonna. Foi um fracasso e Kate não saiu mais em turnê. Havia inclusive quem garantisse que ela nunca mais subiria em um palco novamente; mas surpreendendo geral, 35 anos depois Kate anunciou uma série de 22 apresentações no Hammersmith Apollo, em Londres, não mais do que de repente. “Before The Dawn” era um espetáculo ainda mais elaborado e grandioso que o primeiro: incluia atores, marionetes, mágicos, projeções e uma narrativa teatral dividida em três atos. Apesar do enorme sucesso da segunda investida, já faz 8 anos que ela não se apresenta ao vivo.

(Hammersmith Apollo, em Londres)

Kate Bush não é uma raridade só no palco, em disco é a mesma coisa. Nos 44 anos de carreira que ela já tem, são apenas 9 álbuns de músicas inéditas, uma média de cinco anos de intervalo entre um e outro, mas o mais recente, “50 Words For Snow”, já saiu há 11 anos! Por que tanta demora? Uns chamam de perfeccionismo, outros de loucura mesmo. Um exemplo: certa vez ela entrou no estúdio para gravar uma música chamada “Wow” e logo no 1º take os produtores disseram que estava ótimo, mas Kate achou que podia melhorar e foi capaz de cantar a mesma música 5 vezes por hora, 10 horas por dia, durante uma semana inteira!

Mas vamos voltar para “50 Words For Snow”, porque ele é um ótimo exemplo do quanto Kate é desafiadora: são apenas 7 faixas em uma hora e cinco minutos um disco inteiro sobre… o inverno. A música título, “50 Words For Snow”, a mais curta delas com seus 6 minutos e 50 segundos é exatamente o que diz o título, ’50 palavras para neve’ narradas pelo ator Stephen Fry enquanto Kate comenta e literalmente conta cada uma delas. Experiência que, segundo uma crítica “ainda é uma questão em aberto se funciona como música”.

(Hahaha) Por essas e outras, muitas outras, capazes de deixar público e crítica com cara de meme do John Travolta em Pulp Fiction, que um dos maiores e mais célebres fãs é John Lydon, sim, o ex-vocalista dos Sex Pistols, o homem que não gosta de nada ama Kate Bush. E faz questão de dizer. Em um documentário da BBC ele crava: “Kate Bush e seu piano de cauda é como John Wayne e sua sela”, mas talvez a grande declaração desse amor tenha sido na premiação de 2001 da revista inglesa “Q”. Para uma plateia só de músicos, incluindo a Kate, que estava lá em uma de suas raras aparições públicas para receber um prêmio, John Lydon agradeceu ao dele assim:

“Calem a boca! A classe trabalhadora da Inglaterra está falando agora, sim, eu sou um deles. E vocês aí, cópias enfeitadas, conheçam o verdadeiro, o original: eu! (…) A única pessoa que eu quero cumprimentar aqui é a Kate Bush: eu te amo, a sua música é brilhante! Quer saber, Kate? A gente merece. E isso é tudo que vocês terão de mim.”

Pode parecer surpreendente que o líder da banda punk mais emblemática de todas nutra tamanha admiração pela Kate Bush, mas a imprevisibilidade, a coragem e principalmente a independência artística dela, de só fazer o que lhe dá na telha quando lhe dá na telha, encurtam qualquer aparente distância.

“Se eu quisesse dinheiro, lançaria um disco por ano, fosse uma porcaria ou não. E faria montes de TV pra promovê-los. Não é o que me interessa. Espero que as pessoas sintam que a intenção do meu trabalho é fazer algo interessante criativamente”. — Kate Bush

John Lydon sentiu. E todo mundo que descobriu “Running Up That Hill” recentemente também.

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