Miguel Sokol
Música Crônica
Published in
4 min readMay 18, 2022

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arte: Danielle Lima

O vampiro adolescente virou homem-morcego. E o melhor do ótimo primeiro filme do Robert Pattinson como Batman é a trilha sonora; quer dizer, “Something In The Way”, porque se toca outra coisa não dá nem para perceber, a música do Nirvana rouba o filme e justamente por isso a trilha deveria ser vendida como um single nas lojas de discos (se as elas existissem e os singles também). Ia vender mais que as trilhas de todos os Batmans anteriores juntos. E o Prince se revira dentro do seu caixão roxo. Para o azar dele, a música do Nirvana é mais que trilha, é um personagem do filme — e de destaque! Imagina: o Oscar de Melhor Coadjuvante vai para… “Something In The Way”. Mais uma para a extensa lista das coisas que o Oscar devia fazer, mas nunca fará.

Roubar o filme é só o novo capítulo da história de uma das músicas mais intrigantes do Nirvana, mesmo sem nunca ser lançada como single ou tocada com frequência nos shows, ela chama atenção desde o lançamento do “Nevermind” porque é cheia de teretetes, começando pelo do encarte. “Something In The Way” é a última música creditada, mas não a última do disco, porque o CD esconde “Endless, Nameless”, que também é “trackless” e começa na mesma faixa, 10 minutos de silêncio depois. No entanto, polêmica maior é a letra:

“Embaixo da ponte/ A lona está vazando/ E os animais que eu capturei/ Se tornaram meus pets/ E eu estou vivendo na grama/ Com goteiras no meu teto/ Mas tudo bem comer peixes/ Porque eles não têm sentimentos”

“Something In The Way” é obviamente sobre um sem-teto morando debaixo de uma ponte, a questão é que saíram dizendo que o tal morador era o Kurt. E tinham motivo para dizer, já que o próprio gostava de contar para geral que dormiu embaixo de uma ponte do rio Wishkah, em Aberdeen, cidade natal dele, depois que a mãe o expulsou de casa por pegá-lo na cama, aos 17 anos, com uma namorada.

O ponto que nunca serviu de abrigo para o Kurt inclusive ganhou uma placa, mas porque as margens lamacentas do rio batizaram um disco ao vivo do Nirvana, o “From The Muddy Banks Of Wishkah”.

(O rio Wishkah, a placa embaixo da ponte e a capa do disco)

A verdade é que Kurt nunca dormiu embaixo daquela ponte (e de nenhuma outra), ele apenas frequentou o lugar na adolescência porque era ponto de encontro de rolês e afins, pelo menos é isso que diz a irmã, Kim Cobain, e confirma o ex-baixista da banda, Krist Novoselic, ambos na biografia “Heavier Than Heaven”.

Mas o fato de Kurt jamais ter morado embaixo da tal ponte não torna a música menos autobiográfica, porque os 4 meses em que ele passou sem teto depois da expulsão são igualmente péssimos. No começo, ele dormiu de favor num papelão na varanda do baterista dos Melvins que nem um gatinho, descrição usada até na wikipédia. Mas a temperatura caiu e ele “se mudou” para o hall de um prédio com aquecimento interno central, obviamente chegando depois do último morador entrar e saindo antes do primeiro sair. Puxado. Então Kurt passou a dormir na sala de espera de um hospital, pois, segundo um amigo que também dormia lá, dava para pegar comida pendurando na conta de quartos aleatórios e o melhor: “ Tinha até tv!”.

Morar embaixo de ponte, mesmo que ela seja um hospital ou a varanda de alguém, não é muito diferente de viver dentro de uma (bat)caverna, difícil é perceber a semelhança. Mérito do diretor do filme, que trabalhava no roteiro ouvindo música quando “Something In The Way” tocou e ele percebeu que Bruce Wayne, em vez do playboy que todos já conheciam, poderia ser um astro desajustado, frustrado, atormentado, raivoso e auto-destrutivo; praticamente o rockstar que Kurt foi.

Aliás, frustração, raiva, desespero, angústia, dá para escutar tudo isso em “Something In The Way” e não só por causa da letra, mas pelas circunstâncias da gravação. Segundo Butch Vig, produtor do Nevermind, a música foi de longe a mais difícil de ser gravada.Todas as outras precisaram de dois ou três takes, mas “Something In The Way” a banda simplesmente não acertava, Kurt já tinha tentado na guitarra e no violão, nada funcionava no estúdio. Até que, por pura raiva e frustração, ele entrou na sala de controle para tocar e lá funcionou. O problema para a surpresa geral era a sala de gravação, que deixava o violão alto demais. Vig então tirou o telefone do gancho e gravou Kurt ali mesmo, no sofá, tão no calor do momento que o violão está desafinado. Desafinado o suficiente para obrigar todos os instrumentos que vieram depois a lutar fracassadamente para conviver com ele. Mais Bruce Wayne que isso, impossível.

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