“Musical Açores 76/77” — O Woodstock Português no Atlântico

Rogério Sousa
Made in Azores
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10 min readAug 10, 2019
Público no “Musical Açores” (1977)

O primeiro festival de Verão realizado em Portugal depois do 25 de Abril foi o “Musical Açores 76”, na Praia da Vitória, ilha Terceira, Açores. Antes dele, apenas uma edição do “Festival Vilar de Mouros”, cuja segunda edição só viria a ver a luz do dia em 1982. O Festival “Musical Açores” é, portanto, o segundo festival de Verão de sempre em Portugal, e o primeiro na era da Democracia e da Liberdade. Uma história que vale a pena conhecer.

O Musical Açores aconteceu na cidade da Praia da Vitória, num areal conhecido pelos locais como a Praia da Riviera. Lá, um grupo de jovens, sem qualquer experiência de organização de eventos, foi capaz de organizar um festival de Verão que conseguiu a inédita proeza de juntar dezenas de milhares de pessoas, nas duas edições realizadas, e ficar para a História como o primeiro festival de Verão de um Portugal contemporâneo e moderno.

O Festival Musical Açores aconteceu na ilha Terceira, na Praia da Vitória, porque só poderia ter acontecido no local mais cosmopolita de Portugal à data de 1976. Influência natural da presença norte-americana na Base Aérea n.º4, e do permanente fluxo de pessoas de e para o continente, este festival foi a natural consequência de uma realidade insular muito particular e irrepetível.

Vista traseira da actuação da banda “Açor” (1976)

HISTÓRIA

Depois da instalação da Base Aérea n.º 4, na freguesia das Lajes, cidade da Praia da Vitória, com o aumento do contingente militar durante e após a II Guerra Mundial, e a crescente importância geoestratégica da Base, as necessidades de mão-de-obra cresceram. Essas necessidades foram sendo suplantadas com recurso a mão-de-obra local, proveniente das diversas freguesias da ilha e detentora das mais variadas especialidades.

Esta opção de contratação levou a uma forte interacção entre os residentes na Base das Lajes — portugueses e norte-americanos — e os trabalhadores locais, residentes fora da Base. Essa interacção foi permeando diversas franjas da sociedade terceirense, criando uma espécie de “amálgama” das culturas norte-americana e açoriana, porquanto se os açorianos entravam na Base para trabalhar, os norte-americanos saíam dela para conhecer a ilha.

Essa interacção era tão intensa quanto a intensidade própria de cada faixa etária em que ocorria. Os norte-americanos residentes e os trabalhadores locais tornaram-se colegas. Os filhos dos norte-americanos residentes e os filhos dos trabalhadores locais tornaram-se amigos. Tornaram-se melhores amigos, até. Cresciam, brincavam e ouviam música juntos.

Clubes na Base | Foto: José Leite @ https://restosdecoleccao.blogspot.com/2013/03/base-aerea-das-lajes.html

Os filhos de ambos os lados atravessavam a vedação que delimitava os dois mundos e levavam consigo aquilo que do outro lado traziam. A amizade é isto: uma osmose que desconhece barreiras e delimitações.

Os amigos, filhos de norte-americanos residentes e filhos de locais, assistiam a filmes, ouviam álbuns e tocavam em garagens juntos. Viviam uma cultura comum, uma ponte entre os dois lados. A permeabilidade cultural de ambos fez com que, durante algumas décadas, a cidade da Praia da Vitória fosse uma espécie de “little America” dentro da ilha Terceira.

A cultura dos Estados Unidos da América, consubstanciada nas celebridades dos filmes e séries de televisão, nas bandas e nos artistas, nos produtos alimentares e nos acessórios de jardim, no calçado desportivo e no vestuário para homem e senhora, nas expressões quotidianas, entre muitas outras facetas. Fazia parte da realidade terceirense. Particularmente dos residentes na cidade da Praia da Vitória, onde a Base está instalada.

“À saída da praia, “cops” americanos, iguaizinhos aos dos filmes, encostados à amurada. Pelos campos acima, mais “cops” (…) Pelas ruas, pelas estradas, paradas às portas, carrinhas da polícia e da força aérea americana, ambulâncias americanas com aquele apito ondulante que também conhecemos do cinema. À noite, ao passarmos pelas janelas abertas, quase só televisão americana a cores. Nas telefonias dos carros que nos transportavam, o noticiário era americano, os “hits” eram americanos. O lixo pelas estradas eram latas de Coke, Seven Up, Schilitz “when it’s right, you know it”, e de mil outras marcas, para nós excitantes e provocadoramente desconhecidas.” (Helena Vaz da Silva, Expresso, 1977)

Carlos Costa (organização) pinta as letras do festival para o palco (1976)

Este benéfico foco de expressão cultural foi um importante dínamo cultural num concelho cuja população era de aproximadamente 27 mil habitantes. Uma evidência clara desta “microcultura”, para além da realidade descrita por Helena Vaz da Silva, foi o surgimento de bandas musicais locais, que actuavam regularmente nos clubes sociais da Base das Lajes, e com instrumentos musicais que só se podiam adquirir no interior da própria Base.

Algumas dessas bandas, como Os Bárbaros, da Praia da Vitória, ou os Açor, de Angra do Heroísmo, actuavam com bastante regularidade nesses clubes, com a interessante particularidade de terem dois repertórios: um com temas em inglês, e outro com temas em português, que alternavam consoante a actuação fosse num clube norte-americano ou português.

Actuação d’Os Bárbaros | Foto: Luís Dores

“Esta hibridez cultural faz desta ilha (que tem televisão americana há dez anos e até a cores), (…) um caso muito particular na cultura portuguesa, e, obviamente, na cultura rock.” (Tele Semana, “Música nos Açores”, 1977)

Tal como no resto do mundo, a cidade da Praia não escapou a uma geração de jovens rebeldes da década de 60, inspirados por músicos e artistas norte-americanos do Flower Power, dos Blues e do Rock n’Roll, e do Peace & Love. Aliado a isso, a forte influência da proximidade e interactividade com a cultura norte-americana da Base das Lajes fez com que a cidade da Praia fosse um pólo cosmopolita no meio do Atlântico, diferente do resto do país.

Subitamente, aconteceu. Um grupo de amigos praienses, habituais frequentadores da sala de cinema norte-americana da Base das Lajes, assiste (alguns pela primeira vez) ao filme Woodstock, muito antes ainda de ser exibido em salas nacionais. Este filme viria a ser um marco importante na vida destes jovens, a quem mais tarde Helena Vaz da Silva apelidou de “Os Furiosos do Rock”.

Em conversa de café, no Café Açor, onde o grupo costumava passar o seu tempo, Carlos Parreira avança com a hipótese. E fazer-se um festival de rock na ilha Terceira? A princípio, a ideia parecia mais uma maluquice dos amigos do Parreira do que uma coisa para se levar a sério. Algum tempo mais tarde, a maluquice já não era maluquice e a coisa compunha-se. Depois, ficou a saudosa memória da maluquice em geral.

Membros da organização inspeccionam o espaço da praia da Riviera | Foto: Carlos Costa

O FESTIVAL

1ª Edição — 1976

O grupo encarregue dos preparativos do Festival era composto por um núcleo duro, do qual faziam parte, e em grande medida lideravam, Carlos Parreira, Carlos Costa e Luís Dores. A escolha do local para o festival acabou por recair na pequena Praia da Riviera, muito conhecida e apreciada na ilha Terceira por ali ter funcionado, até ser consumido pelas chamas num acidente, o Bar da Riviera — mítico espaço da sociedade terceirense, que pretendia trazer o glamour da Riviera francesa às areias da Praia da Vitória.

Logotipo da edição de 76 | Desenho: Juvenal Castro

Depois de escolhido o local, a organização optou por um festival de dois dias, com recurso a bandas locais e regionais, dado não terem financiamento nem experiência no agendamento de bandas nacionais ou estrangeiras.

Depois de vencidas todas as adversidades próprias de iniciantes na arte de organizar festivais, a primeira edição do Musical Açores arrancou no dia 10 de Julho de 1976, pelas 22h00, tendo terminado por volta das seis da madrugada.

No dia seguinte, 11 de Julho, um Sábado, as bandas começaram a actuar por volta das 14h00, e o primeiro Musical Açores terminou pelas duas da manhã, com um total de 11 actuações.

Actuação d’“Os Bárbaros” (1976) | Foto: Carlos Armando Costa

Actuaram os Blackstones, banda formada por membros da Base Aérea n.º 4; o José Berto, músico alternativo da ilha Graciosa; os Phoenix, composta por músicos de Ponta Delgada, São Miguel; os Pedras Negras, que vieram da ilha do Pico; Os Bárbaros, Os Mini-Bárbaros, Os Mini-Sombras, os Pop-Five, os Reiart’s, os Sunshine Band, os Açor e Carlos Medeiros, artistas residentes da ilha Terceira.

Os Mini-Bárbaros e os Mini-Sombras eram bandas compostas por jovens músicos da ilha que seguiam os seus ídolos: Os Bárbaros e Os Sombras.

2ª Edição — 1977

Animados pelo sucesso da primeira edição, que conseguiu juntar mais de 7000 pessoas num evento inédito e, à partida, condenado ao fracasso, os membros da organização lançaram-se à preparação da segunda edição para o ano seguinte.

Logotipo da edição de 77 | Desenho: Juvental Castro

Com contactos de bandas e artistas nacionais, jornalistas e agentes — imprescindíveis a uma boa cobertura e divulgação nacional — a organização lançou-se à segunda edição com redobrada confiança e motivação.

O local não poderia ser outro, não fosse este festival vir a ser conhecido, por entre os residentes da ilha Terceira e na memória do seu tempo, como o Festival da Riviera.

Assim, o Musical Açores 77 começou num sábado, dia 13 de Agosto, pelas 23h00, após um pequeno curto-circuito provocado pela chuva que motivou os protestos de cerca de dez mil espectadores. No dia seguinte, os concertos começaram à tarde e só terminaram de madrugada.

O primeiro artista da edição de 77 foi o cantor Carlos Medeiros, seguindo-se a banda Paralelo 4, ambos da cidade de Angra do Heroísmo. Depois, o duo lisboeta Licínio & Moreno, dois jovens intérpretes de música em português, com guitarras acústicas, e de seguida os Aranha, banda de Lisboa, com nome em memória de um clube de Oeiras.

Lena Martins (Lena D’Água) | Banda “Beatnicks” | Foto: Carlos Costa (1977)

O Rock chegou com os Beatnicks, com a Lena Martins, que mais tarde viria a ser conhecida dos portugueses como a Lena D’Água, que deram um espectáculo a todos os níveis memorável — segundo os presentes e a imprensa especializada.

Segundo o Tele Semana, os Beatnicks “impuseram à assistência (continentais, açorianos e americanos) um longo e elaborado trabalho de estúdio, enriquecido por uma completa projecção de slides e de light-show,(…) fiéis a uma linha melódica característica das grandes bandas de rock, eles pintaram no amplo palco deste Musical Açores o quadro mais policromático e elaborado de ambos os concertos.” (Tele Semana, “Música nos Açores”, 1977)

Banda “Aranha” | Foto: Carlos Costa

A segunda noite começou com a actuação dos Peace on the Rock, residentes na Base; os Atlantys, uma banda de rock norte-americana, formada por músicos de origem açoriana, residentes em Fall River, Massachusetts, cujo vocalista, Marc Dennis, continua a tocar e a cantar no Canadá.

Ao contrário da primera edição, no Musical Açores 77 actuaram também Os Bárbaros — uma das bandas que pemanecerá na memória musical praiense e terceirense — e, como na primeira edição, os Mini-Bárbaros e os Paralelo 4, ambos da ilha Terceira.

O festival terminaria com as actuações dos Red Box e dos Red Sun, da ilha de São Miguel, que, segundo o Tele Semana, só não eram Punks porque eram precisamente de uma ilha no meio do Atlântico.

Tinham estado alinhados para actuar os Cairo, banda rock de Lisboa, da qual faziam parte Vítor Mamede e Moniz Pereira, que, por razões alheias à organização, acabaram por não tocar.

Actuação dos “Atlantys” (1977)

As duas edições do Musical Açores foram tão bem sucedidas que uma terceira edição era já esperada com expectativa por parte da população residente na ilha Terceira. À altura, a organização já se preparava para encetar contactos com bandas internacionais, quando se deparou com alguns obstáculos à realização de uma nova edição do festival.

Em especial, a falta de vontade das entidades governamentais em permitir a realização de um evento musical com demasiadas semelhanças com o de Woodstock e os seus naturais excessos festivaleiros. Aos membros da organização não lhes restou senão cancelar a terceira edição e, desta forma, dar por finda a curta vida do já designado de Festival da Riviera.

Na comemoração do 40º aniversário da primeira edição do Musical Açores, a Associação Cultural Burra de Milho organizou um site e realizou um documentário para homenagear o espírito empreendedor, criativo e aventureiro destes então jovens rebeldes que, num período extremamente conturbado a seguir ao 25 de Abril, encontraram na música a materialização máxima da Liberdade que acabavam de conquistar.

Assista ao documentário “Os Furiosos do Rock” no link: http://musicalacores.com?wvideo=u479lfdnab

ou clique na imagem abaixo

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Texto: Rogério Sousa, Fábio Couto e Miguel Costa

Direitos reservados Associação Cultural Burra de Milho

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