A Vida que Pulsa

"E, debaixo da minha mão, pele, subcutâneo, músculo, útero, aquela vida pulsava mais viva que muitos de nós."

Andre Saijo
Made in Brasil

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20/03/2014 — Pronto-Socorro da Obstetrícia do Hospital Universitário da USP

Aquele plantão tinha tudo para ser o pior que eu já tinha passado. Quando a gente está na Faculdade de Medicina, no início gostamos de ver casos graves e doenças raras. Qual o estudante que nunca desejou ver todas as síndromes que viu em House ou as cirurgias complexas de Grey’s Anatomy? Bom, eu não era diferente. E continuo não sendo.

Apesar de não ser agradável ver um paciente com uma doença grave, muitos de nós ainda têm aquela admiração pelas doenças complexas e toda a sua fisiopatologia. Vez em quando soltamos um "oh" de admiração não pela doença em si, mas por toda a "medicina" envolvida naquilo. E, não poucas vezes, dizemos "que legal". Claro que isso não é falta de empatia ou humanização. É apenas fascínio de quem está começando. Inocente e pueril, geralmente.

Pois aquele plantão tinha tudo para ser o pior que eu já tinha passado, repito. Meu último plantão diurno no PS da Obstetrícia. Mas não por isso seria o pior, e sim porque só vieram casos chatos. E por chato, entendam que não são apenas casos não graves e entediantes, mas casos que não ensinam nada para nós, Internos, e só nos fazem "tocar serviço", expressão muito usada no nosso meio. Exemplos: resfriados sem febre, dores sem febre, febres que não eram febres, e, pasmem, uma gestante que queria conhecer o hospital. Tudo bem, aprendo muito nesses casos: a ter paciência.

Aparelho para ouvir batimentos cardíacos do bebê, mais ou menos assim: http://www.youtube.com/watch?v=-Ji41MI4dyM

E bem quando já estava exausto de tanto falar, apertar barrigas, procurar batimentos do coração do feto com o sonar e tentar descontrair a tensão de todas aquelas mulheres grávidas e seus hormônios, uma enfermeira diz:

"Uma bolsa estourou lá na sala de espera".

Bom, meu último caso do dia, e que bom, finalmente um parto para alegrar o nosso dia, o meu e o da futura mãe.

Abro a porta e logo vejo uma jovem, em seus 25 anos, com uma barriga proporcionalmente grande para o seu tamanho. Alguns plantões na Obstetrícia já são suficientes para você chutar em qual semana, ou pelo menos qual mês, é a Idade Gestacional, e eu logo deduzi que eram mais de 37 semanas. E, julgando pela feição tranquila daquela mãe e daquele pai, não imaginava que tinha algo errado.

Chamo-a para o consultório e digo:

"Vai ser hoje, então, Dona Ana?"

Cartão de Pré-Natal das Gestantes aqui da Cidade de São Paulo. Foto retirada de: http://amyzeeta.blogspot.com.br/2012_06_01_archive.html

Enquanto falava, passei o olho pelo cartão do Pré-Natal e notei algo que não encaixava. A data da última menstruação (DUM, usada para calcular a idade gestacional) era 05/09/2013, e mesmo sem calcular, já entendi que era menos que 30 semanas de gestação. Eram exatamente 28 semanas.

Para tornar a leitura mais inteligível, quando uma bolsa rompe, o líquido que envolve o bebê desce do útero para o mundo, e o bebê fica suscetível a diversas situações, inclusive ao parto. E um parto prematuro é qualquer parto com menos que 37 semanas de gestação. Todos conhecem pelo menos um caso de um bebê prematuro que conseguiu sobreviver nas incubadoras e toda a tecnologia atual, mas é necessário saber que a chance de não sobreviver é grande. E a chance de morte intra-útero (antes de nascer) também é. Então, quanto mais tempo possível permanecer dentro da barriga da mãe, melhor.

Dito isso, após uma breve conversa com a paciente sobre o que tinha acontecido, percebi que ela estava extremamente tensa, mas ao mesmo tempo, disciplinadamente contida, esperando apenas o momento certo para despejar toda aquela apreensão. Mas, durante o exame físico, quando eu mostrei a ela os batimentos cardíacos do bebê, uma lágrima de alívio escorreu, como um prenúncio de muitas outras lágrimas de angústia que estavam porvir. E confesso que foi meu coração que quase parou naquela hora.

Vi muito líquido na mesa do exame físico, e tive a ideia, antes de chamar um Assistente ("chefe" dos Internos) para ver a paciente, de fazer o Teste do Fenol com aquele líquido. O Teste do Fenol, simplificadamente, é: pingar algumas gotas de um reagente em um algodão no qual você passou lá perto do colo do útero para saber se o líquido em questão é amniótico ou não (ou seja, do bebê), havendo uma mudança de cor no caso de ser positivo. Eis que com apenas uma gota, o lençol da mesa ficou vermelho. Positivo.

Após a Assistente ir examinar, eis o diagnóstico que nós já sabíamos: RPMO (Rotura Prematura de Membranas Ovulares), em outras palavras, bolsa das águas que estourou antes do tempo. E ela já emendou no prognóstico, dizendo que as chances de sobrevivência não eram altas. É melhor ser sincero nessas horas.

E a paciente manteve-se contida durante todo esse processo, mesmo quando recebeu a notícia de que ficaria internada por pelo menos uma semana, que teria que ficar em repouso absoluto e que não havia muito a ser feito, a não ser esperar para ver o que iria acontecer.

Deixei a paciente na mesa e fui preencher as fichas de internação, quando a Assistente me pediu para fazer a Dinâmica Uterina enquanto ela preenchia as fichas para mim. Percebi que ela estava me dando uma grande oportunidade de aprender algo importante naquele último plantão: o que dizer para uma paciente numa hora dessas?

Para examinar a Dinâmica Uterina, basta você colocar a sua mão sobre a barriga da gestante por 10 minutos e contar quantas contrações o útero tem e qual a duração. No caso dela, cada contração seria um risco a mais de algo dar errado. E aquele útero não iria contrair na minha mão, pelo menos não nesse começo de noite. E 10 minutos não passam rápido, ainda mais quando naquele contato da minha mão, mãe e bebê tanta coisa estava acontecendo. Mas eu, enfim, comecei a contar os segundos.

Todos esses anos de Faculdade, não lembro ter aprendido algo que pudesse ter me ajudado naquele momento. Claro que não era difícil para mim, e sim para a mãe, que, mesmo com aquela face calma, exalava um desespero que era mais palpável que o útero dela sob a minha mão. E então decidi começar a falar, e, quando dei por mim, ela estava chorando e finalmente liberava todo aquele sofrimento que ela estava sentindo há algumas horas.

Não falei nada demais, antes que me acusem. Mas acho que falei o que ela precisava ouvir, e talvez por isso ela conseguiu soltar aquilo que ela estava brigando para manter dentro de si. Primeiramente, nesses momentos, temos que deixar claro que a culpa não é da gestante. E esse é justamente o primeiro pensamento que elas têm quando acontece algo errado. E foi o que eu tentei dizer, com a minha mão esquentando a barriga dela e nenhuma contração ocorrendo.

Falei também que ela tinha que ser forte e ter paciência, o que parece ser inútil, mas que espero que ela consiga realizar. Mas que era para ela chorar sim, porque o anormal seria não sofrer e ter medo num momento desses. E eis que então sinto algo na minha mão, e aquele nervosismo de estar diante de algo muito ruim subiu direto das pontas dos meus dedos até os fios do meu cabelo.

Mas a surpresa é que não foi uma contração. Foi o bebê mexendo. Na realidade chutando. E chutando forte! Querendo dizer que ainda estava ali e que não iria desistir. Afirmando para a mãe que lutaria até o fim se ela também estivesse disposta a isso.

E, ao dizer para ela que a futura filha (é uma menina!) estava ali se mexendo e que não queria sair tão cedo, o rosto da mãe pareceu mudar pela primeira vez, e eu pude ver nos olhos dela uma determinação obstinada a manter aquela gestação acontecendo o máximo possível. E então ela diz:

Cada dia vai ser uma vitória, não é? Os dias vão virar semanas, mas vamos conseguir!

E sim, cada dia vai ser uma vitória mesmo. Tanto para ela quanto para mim. Apesar de estarmos em lutas diferentes, entramos em acordo que será um dia de cada vez, um passo atrás do outro, e, por mais que os dias pareçam intermináveis, o próximo estará logo ali, esperando pouco para chegar.

E, debaixo da minha mão, pele, subcutâneo, músculo, útero, aquela vida pulsava mais viva que muitos de nós. Pulsando forte com aquela vontade teimosa de viver. E, posso garantir, nunca tive nada tão importante em minhas mãos como naquela hora.

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Andre Saijo
Made in Brasil

Brazilian, physician, underdog (YC), psycho-ish, nerd @decoyc