As Intermitências da Morte

“De Deus e da morte não se tem contado senão histórias, e esta é mais uma delas.”

Andre Saijo
Made in Brasil

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Quando começamos a estudar Medicina, algumas pessoas perguntam com inocente curiosidade: como é perder um paciente?

Estou no Internato, e terminei o estágio de Cirurgia Geral. Um breve resumo do que é o Internato: estágio obrigatório dos dois últimos anos do Curso de Medicina, em que o aluno age como médico, sendo supervisionado por Residentes e Professores. Ou seja, somos médicos café-com-leite. Mais café e menos leite, aliás.

Desde o primeiro dia do Internato, somos expostos a uma responsabilidade que não é proporcional aos outros anos de faculdade. De uma hora para outra temos nossas obrigações, temos que estudar de uma maneira diferente dos outros anos e temos nossos pacientes. Sim, somos responsáveis por pacientes, mesmo não sendo médicos ainda.

Claro que, na estrutura de um Hospital-Escola decente, essa responsabilidade é compartilhada entre Internos, Residentes e Assistentes, e todo paciente é visto várias vezes ao dia por diferentes pessoas de diferentes níveis hierárquicos da Medicina: do aluno do primeiro ano até o Chefe do Serviço. A vida numa Enfermaria nunca é tediosa para os internados.

No entanto, é dito e repetido exaustivamente que o Interno é a base do Hospital. Inúmeras explicações são dadas a esse aforisma, mas a mais propagada é que os Internos conhecem de verdade o paciente, sabem tudo sobre o paciente, ouvem o paciente e criam um vínculo com o paciente que os outros profissionais da Saúde não conseguem por estarem inseridos em um Sistema no qual não há tempo suficiente para isso. Não sei ainda se isso é verdade, mas os Internos têm os seus pacientes e são responsáveis por eles.

Esse sentido de posse e propriedade da relação médico-paciente é muito discutível e discutido nos dias atuais. Mas, como nada muda de um dia para o outro, sigamos sob o preceito de que o paciente é MEU e eu sou eternamente responsável por aquilo que cativo (ou mais ou menos isso, segundo a Raposa). Como lidar com a perda de algo que é seu?

Em pouco tempo de internato já tive centenas de pacientes, e com quase todos criei uma relação boa e profissional. Perdia-os quando dizia tchau ao informar que eles teriam alta hospitalar, mas em geral essa perda era comemorada, porque ninguém gosta de ficar no hospital. (Exceto os Internos, talvez…)

Mas e quando o paciente sai por outra porta? Quando você não diz tchau, e sim um até mais tarde, e esse tarde não chega? Isso acontece com qualquer um que trilhe o caminho Médico, e enfim chegou minha vez.

Semana passada tive o prazer de conhecer um dos pacientes mais simpáticos e engraçados da Enfermaria de Emergência da Cirurgia Geral. Logo que ele foi designado meu paciente, criamos uma relação de interno-paciente muito agradável que se manteve por alguns dias.

Na rotina de Enfermaria, você chega muito cedo ao hospital e checa a ficha que a Enfermagem preenche com os sinais vitais do paciente (frequência cardíaca, temperatura, pressão arterial etc.) e aí então vai acordar o seu paciente para saber como ele evoluiu de um dia pro outro. Nessa evolução, perguntamos se a pessoa está bem, se tem alguma queixa (dor, mal estar, náusea, vômitos…) e faz o exame físico para checar se está tudo bem. E você faz isso todo dia com todos os seus pacientes. É difícil não criar um vínculo com alguém que te acorda todo o dia e que fica apertando sua barriga para saber se tem dor. E foi assim que passei os dias com o meu paciente e tantos outros da Enfermaria.

Esse meu paciente foi para a cirurgia no meio da semana e voltou bem. Com um pouco de dor no local da incisão, ele não perdeu o bom humor, apesar de estar vomitando bastante porque tomou água antes da hora. Disse que estava bem e que queria ir para casa logo. Eu disse que ele iria sim, logo que ele ficasse bem.

Na evolução do dia seguinte, ele estava ótimo. Perguntou novamente quando iria embora e disse que já se sentia muito bem a ponto de ir correndo para casa. A minha vontade era de deixá-lo ir mesmo, mas ele ainda não tinha comido, apesar de já estar com fome. O nosso Chefe achou melhor não liberar a dieta para ele ainda, então ele passaria mais um dia lá. Ele concordou sem discutir.

Então, no dia seguinte, houve uma evolução diferente. Ele estava mal, com dor muito forte, vomitando bastante. Não parecia a mesma pessoa do dia anterior. Logo diagnostiquei o problema e propus uma solução para o caso diante do Chefe que constantemente avalia os Internos. Ele concordou e logo o meu paciente estava no centro cirúrgico sendo re-operado por uma complicação não frequente da cirurgia anterior, mas que pode acontecer com quem é submetido àquele tipo de procedimento.

A evolução do dia seguinte foi na UTI. Dizer que um paciente está estável é como dizer que alguém teve hemorragia interna e falência múltipla dos órgãos: não são palavras realmente ditas por profissionais da Saúde. Foi me passado que ele estava com acidose metabólica, hipercloremia, lactato alto, PCR elevado, leucócitos baixos, mas permanecia "bem". Não era preciso ser Interno para saber que o prognóstico era ruim.

Passei na UTI no fim do dia, depois de terminar minhas atividades, e o vi de longe. Não quis entrar no quarto porque ele estava dormindo. Depois de tê-lo acordado a semana inteira antes das 7 da manhã, achei que ele merecia dormir um pouco. Mais uma checada nos exames laboratoriais e percebi que Medicina não é somente conversar com paciente. É conversar com letras e números, com probabilidades e estatísticas, com horas ganhas ou perdidas.

Um dia depois recebi a notícia de que meu paciente tinha morrido na noite anterior. Já estava em casa pois era meu dia de descanso e fui avisado pelo celular. Não recebi nenhuma mensagem bonita nem um último pedido do meu paciente. Claro, ele não sabia que ia morrer, não estava no roteiro que ele recebeu ao entrar no hospital. Não ganhei um Emmy de melhor atuação dramática de seriado médico.

Fiquei triste, sim. Fiquei frustrado, também. A Morte não é como nos filmes e séries médicas, bonita e conselheira. A Morte é crua, é fria e feia. A Morte é triste. A Morte é natural e normal.

Então, qual o sentido nisso tudo?

Ainda não descobri. Aos poucos vamos aprendendo um pouco sobre Medicina e muito sobre a Vida. Devagar a Morte também vai aparecendo, hora sim, hora não. Intermitente. Sempre ali lembrando que há algo muito maior que antibióticos e desfibriladores.

Nem sempre o que importa é a luta da Medicina contra a Morte. O importante é o porquê da Medicina lutar pela Vida.

“Antes, no tempo em que se morria, nas poucas vezes que me encontrei diante de pessoas que haviam falecido, nunca imaginei que a morte delas fosse a mesma de que eu um dia viria a morrer. Porque cada um de vós tem a sua própria morte, transporta-a consigo num lugar secreto desde que nasceu, ela pertence-te, tu pertences-lhe, E os animais, e os vegetais, Suponho que com eles se passará o mesmo, Cada qual com a sua morte, Assim é, Então as mortes são muitas, tantas como os seres vivos que existiram, existem e existirão…”

Publicação inspirada em e trechos extraídos de As Intermitências da Morte de José Saramago.

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Andre Saijo
Made in Brasil

Brazilian, physician, underdog (YC), psycho-ish, nerd @decoyc