Durante a Faculdade de Medicina (Epílogo)

Andre Saijo
Made in Brasil
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4 min readNov 3, 2015

Poucas pessoas têm a oportunidade de se lembrar exatamente dos melhores dias das suas vidas. No máximo nos lembramos de algumas coisas que aconteceram, e o restante criamos em nossas mentes na tentativa de reviver a sensação que sentimos nesses dias. E, pensando bem, o que realmente não esquecemos são as sensações.

Eu lembro bastante do dia em que vi meu nome na lista do vestibular, e as vezes a sensação daquele momento bate muito forte na memória, um misto de alívio e felicidade, além da ansiedade por algo que, nem na minha melhor expectativa, eu imaginava que iria me acontecer nos próximos anos. Como se esquecer do abraço cheio de lágrimas da mãe e da ligação para o serviço do pai, vozes abafadas e cheias de emoção.

Foram dias de expectativa até o momento da matrícula na tão sonhada faculdade, a qual foi facilmente superada no momento em que atravessei os portões daquele lugar que seria minha nova casa por tantos anos. As sensações de admiração e orgulho, simultâneas à insegurança de não ser merecedor de tudo aquilo, ainda ficam registradas na minha cabeça. Lembro de muitos amigos de turma dizendo que estavam com medo de chegar na Sala da Graduação para assinar a lista e o nome não estar lá: fora tudo um engano. No fim não foi, assinei meu nome e sai de lá diretamente para o porão da faculdade quando meus olhos e ouvidos não conseguiram captar toda a informação que eu queria registrar para não esquecer de nenhum detalhe.

Os veteranos diziam que levaríamos dias e semanas para aprender tudo o que a faculdade iria nos ensinar e oferecer, mas, na realidade, leva anos. A sensação de todos no início é a mesma. “Estamos vivendo um sonho”, que muitas vezes era até melhor do que esperávamos. E assim começa o primeiro ano de faculdade, com o ego inflado e alegria inabalável que nem mesmo as matérias terríveis do primeiro ano conseguiam diminuir. Mas aos poucos isso vai passando.

Você conhece pessoas que serão suas companheiras por anos e anos, nos melhores e piores momentos. Você passa sufoco estudando e indo mal nas provas, e bate aquele desânimo de que Medicina talvez não era bem o que nós achávamos que era. Essas sensações também ficam guardadas conosco. Porém as alegrias que encontramos fora das salas de aula nos fazem seguir em frente. Poucos cursos e faculdades têm o privilégio de oferecer tantas atividades extra-curriculares como as nossas, e trabalhamos duro para mostrar que somos capazes de mantê-las vivas para os nossos calouros.

E aí chegam as matérias extremamente difíceis do curso, no ano que é atormentado pela formação dos grupos de Internato. Nessa altura, perdemos muito do que éramos naqueles primeiros dias, e o orgulho e vontade de ser médicos acabam se tornando um pouco como obrigação de decorar milhões de coisas e passar nas provas.

No entanto, felizmente, chega o Internato e traz novas sensações que certamente todos nós passamos e revivem um pouco do que éramos. Momentos como atender uma criança e ela te abraçar no final da consulta, ou trazer ao mundo um bebê num parto, ou convencer uma gestante com bolsa rompida com 27 semanas de que tudo ficaria bem, ou explicar para a mulher que traz o laudo da mamografia que aquilo não é câncer, ou até mesmo dar esse diagnóstico para alguém e dizer que faremos o possível para ajudá-la.

Além disso, não nos esquecemos de quando vemos a morte pela primeira vez, algumas vezes trágica, algumas vezes tranquila, ou da massagem cardíaca que dá certo, ou quando você consegue pela primeira vez passar um catéter central ou fazer uma intubação na emergência. E quando você faz o diagnóstico correto e já sente cada dia mais segurança, que acaba tão rápido quando você faz uma hipótese errada e sente que tem que estudar um pouco mais. Também chega a hora que você já não precisa mais perguntar qual é a dose de tal remédio, que consegue convencer tantos Josés e Marias a tentarem manter uma vida mais saudável e aderir ao tratamento de suas doenças.

Tem também os momentos que você reencontra alguém que você atendeu muito tempo atrás, e ele te agradece dizendo que você salvou a vida dele. Ao mesmo tempo tem momentos como dar a notícia de que um adolescente morreu num acidente de carro, ou de um marido de tantos anos que não aguentou a mais um infarto, ou participar de um parto de gêmeos unidos que iriam morrer com poucas horas de vida.

A Medicina vai muito além do que imaginávamos e sonhávamos. Entremeada com muito cansaço, dor de cabeça e no corpo todo, fome, sede, noites passando frio e sono, ela nos mantém firmes, nos faz estudar, nos faz chorar, nos faz repensar da forma como levamos nossas vidas e nos traz alegrias imensas. Como vale a pena tudo isso que passamos! Agora fica a sensação de dever cumprido, de gratidão por todos que fizeram parte dessa história, de saudades e nostalgia.

E enfim, depois de muito anos que passam rápido demais — ou nem tanto -, chegamos ao fim e o sonho se torna realidade: somos médicos!

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Andre Saijo
Made in Brasil

Brazilian, physician, underdog (YC), psycho-ish, nerd @decoyc