Andre Saijo
Made in Brasil
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5 min readJul 20, 2015

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Dia 17 de agosto de 2010, durante um “plantão” na Liga de Neurocirurgia no meu 2º ano de faculdade, encontrei três pessoas (reais), e aqui descrevo as suas histórias:

Seu João. Moça sem nome. Dr. Alberto.

Seu João estava lendo seu jornal, tomando seu café e fazendo carinho no seu cachorro, amigos há muitos anos. Pegou seu maço de cigarros e viu que estava vazio. Decidiu então ir à padaria comprar mais um e comprar pão e leite para fazer o café da manhã para sua esposa, companheira fiel de longa data.

A Moça sem nome não teve tempo de dizer o seu nome. Estava muito ocupada resolvendo seus problemas da última hora, pensando no trabalho da faculdade que estava atrasado e resolvendo como faria para pagar a conta de luz vencida. Brigou com o namorado no dia anterior, e decidiu que nesse dia não ligaria para ele, já que sempre era ela a responsável em reatar o relacionamento.

Dr. Alberto saiu de casa com pressa, tinha que chegar mais cedo no serviço. Separado há algum tempo, tinha que encontrar a ex-esposa no almoço para acertar os últimos detalhes do divórcio. Na realidade tinha vontade de dizer que sentia muito por tudo isso e que se pudesse, voltaria no tempo e faria tudo diferente. Nesse dia não pensou em ligar para seu único filho, já adolescente, porque iria vê-lo no fim de semana mesmo e não queria importuná-lo logo numa quarta-feira.

Seu João comprou seu cigarro, o pão, o leite e um pão de mel para sua amada, já que não se esquecera nunca do dia, muitos anos atrás, em que deu o mesmo doce para a esposa e a chamou para sair pela primeira vez, quando ainda eram apenas vizinhos. Estava planejando fazer uma surpresa para ela, já que na semana seguinte fariam 45 anos de casados, e além disso, tinha que comprar um presente para seu cachorrinho, que havia adotado 10 anos atrás e dado de presente para a esposa no aniversário de casamento.

O Moça sem nome não se lembrou de como foi parar naquele hospital. Aliás, nem sabia onde estava. Enfermeiros e estudantes em sua volta, um médico chamando sua atenção, perguntando seu nome e se sabia em que lugar ela estava. Moveu os lábios e a lingua, mas a voz não saiu. Não sabia o que estava acontecendo e começou a ficar nervosa. O médico disse então para ela ficar calma porque estava segura, no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas. Talvez essa frase não a fez acalmar-se, já que momentos depois tudo ficou preto e o som a sua volta ficava cada vez mais fraco.

Dr. Alberto tomou sua decisão de vida. O ultimato. Não poderia deixar acabar assim o seu casamento, mesmo com todos os problemas de discussão com a esposa e de relacionamento com o filho. Pensou de todas as maneiras em como faria para reconquistar a esposa e o filho, e ai teve uma ideia brilhante. Levaria-os para a mesma praia que foram 13 anos antes, local que segundo a esposa fora a melhor viagem que fizeram, e de acordo com o filho, era a lembrança mais feliz de sua infância. Foi até a agência de turismo e fechou negócio. Saiu e foi para a rua, andou até a esquina e esperou o semáforo ficar vermelho para atravessar.

Seu João estava voltando para casa quando começou a sentir uma dor muito forte no peito. Não sabia o que estava acontecendo, e temeu o pior: estava infartando! Parou na banca de jornal e conseguiu balbuciar para o jornaleiro e amigo antigo: Chama uma ambulância… meu coração! Essa foi a última frase que disse, um pouco mais trágica do que esperava. Deitou-se no chão em frente a banca e rezou.

A Moça sem nome sentiu que estava se movendo. Percebeu então que estava em uma maca, indo em direção à saída do hospital, presumivelmente com pressa. Não estava sentindo dor nem nada do tipo, e sua vontade era gritar para que parassem com aquilo e tirassem o tapa-olho que colocaram nela, porque estava cansada de ficar vendo tudo preto. Ouviu então o paramédico dizendo: vamos até o Pronto-Socorro do Instituto Central, o mais rápido que der.

Dr. Alberto ouviu uma buzinada alta e olhou em direção à origem do som. A única coisa que viu foi uma moto caída no chão e um motoqueiro jogado na guia da calçada. Não prestou atenção no carro que havia batido na moto, e agora estava vindo em sua direção, sem controle. Não sentiu dor. Não sentiu nada. Quando recobrou os sentidos, estava no helicóptero da Polícia Militar, com colar cervical e a cabeça enfaixada. Só conseguiu perguntar para onde estava indo, e ouviu como resposta: Ao HC, o senhor vai ficar bem. Pediu então para o paramédico ligar para sua ex-esposa, mas falou para tentar não deixá-la preocupada, porque no final das contas, já havia dado muita dor de cabeça na mulher.

Seu João chegou no PS do InCor (Instituto do Coração) e já pensou que levaria os choques para o coração voltar ao normal. Foi então que ouviu o paramédico passando o caso para a residente de plantão: Ele tem DPOC, tá com hipoxemia grave. Não entendeu o que isso queria dizer, mas pensou que estaria tudo bem. Mas não foi isso que aconteceu. Começou a sentir muita dor em todo o corpo, e percebeu que tinha algo errado. Foi ai que ouviu aquele apitinho das máquinas que ouvia quando assistia os filmes de médicos. Pensou então na esposa, no cachorro, no pão de mel. Concluiu que não os veria mais, e chorou sem lágrimas. Não conseguiria fazer a surpresa para a esposa, não faria mais carinho no cachorro. E pensar que saira de casa sem contar para a mulher, já que ia fazer o café para surpreendê-la, como fazia quase todos os dias. Seu último pensamento foi ela, e talvez isso tenha feito as coisas não serem tão ruins assim, afinal…

A Moça sem nome estava se sentindo cada vez mais fraca. Quando sentiu a picada no braço e alguém pressionando o seu tórax, percebeu que estava tendo uma parada cardíaca. Entrou em desespero, mas não conseguia se mover, nem abrir os olhos. Foi ai que se lembrou do namorado, e viu como fora estúpida em não ter ligado para ele, dizer que o amava e que iriam superar aquilo, já que não conseguiam viver um longe do outro. Daria tudo para ter uma oportunidade de passar mais um dia com ele, senti-lo por perto e saber que pensaria nela em todos os dias de sua vida, assim como ela estava pensando nele no último seus últimos momentos. Foi ai que perdeu a consciência, e não voltou…

Dr. Alberto chegou ao PS quase inconsciente. Só não tinha desmaiado ainda porque tinha algo em sua mente que a mantinha acesa, num esforço absurdo para lutar e não abandonar a vida. Foi ai que percebeu de onde vinha essa força: eram os rostos de sua esposa e seu filho que não saiam da sua cabeça. Como queria beijá-la e pedir desculpa por todo o mal que tinha feito nos últimos anos. Não conseguia nem medir o quanto tinha vontade de abraçar seu filho, dizer que ele era a melhor coisa que tinha feito até hoje, que o amava muito e tinha orgulho dele. Foi então que viu aquela praia, com sua esposa alguns anos mais jovem, e seu filho no colo. Aquela imagem ficou gravada em sua mente até o fim, quando não mais resistiu e se foi…

Continua…

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Andre Saijo
Made in Brasil

Brazilian, physician, underdog (YC), psycho-ish, nerd @decoyc