Um cara cheio de vida

Débora Pinho
Made in Brasil
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4 min readDec 1, 2014

Há alguns dias, subi no ônibus frustrada, com aquela sensação estranha de tarefa não cumprida. Achando o bilhete único na mochila, ouvi: “– Tchau lindona, te amo!”. Era o cobrador se despedindo de uma passageira. Pensei: “nossa, devem ser muito amigos ou parentes”. Passando a catraca, a surpresa: “– Bom dia, minha linda!”. Respondi timidamente com um constrangido “bom dia”. Mas nem deu tempo de sentir vergonha, Chicão foi logo cumprimentando o rapaz que estava atrás de mim: “Bom dia, meu lindo, tudo bem?”.

Havia algo estranho naquele ônibus. Parecia que eu tinha entrado em outra dimensão. Os passageiros estavam quase todos com aquele sorrisinho de canto de boca. Quase perguntei à moça simpática ao meu lado o que havia acontecido ali antes, qual piada que eu tinha perdido. Afinal, queria sorrir também! Quem me visse iria concordar que eu estava até precisando disso…(risos).

Chicão em seu posto de alegria.

O cobrador Chicão é um homem alto, negro, careca, de óculos, já passou dos 50 anos de idade e tem o maior sorrisão! Sabe aquele sorriso branquinho, gigante que só de olhar você já sorri junto? É esse! E o negão ainda tem um bom-humor danado! Como diz lá em Minas, cê precisa de ver. Extremamente sorridente e solícito, o cobrador transformou totalmente aquele ambiente tão comum a todos nós e, muitas vezes, tão desconfortável, em algo acolhedor – uma máquina de fazer bem aos que ali entram. O cara entra deprimido, de mal com a vida, e sai revigorado, cheio de alegria e com a certeza de que um mundo melhor é, sim, possível. Uma espécie de ilha para recarregar as energias em meio à rotina doentia de uma cidade como São Paulo.

Entre um ponto e outro ele dita quais são as ruas e avenidas principais do próximo ponto, além de lugares referenciais, como laboratórios etc. – auxiliando na localização dos mais perdidos ou avoados. Avisava aos que perguntavam aonde tinham que descer e para onde caminhar em direção ao destino. “Confia no negão!”, ele repetia. Na descida da linha 719-P (Metrô Armênia-Pinheiros), todos fazem questão de cumprimentá-lo, extremamente agradecidos, desejando um bom final de semana e ele logo emenda o tão corriqueiro “Vai com Deus!”, entre elogios e palavras afetuosas. Sem distinção, Chicão é carinhoso da mesma forma com homens, mulheres, jovens e idosos. Descobri, então, que aquela despedida amorosa que ouvi assim que entrei não era de nenhum parente, mas direcionada a uma passageira comum. Outros tantos desceram do ônibus ao som de um “obrigado, querido, te amo!”.

É incrível como algumas pessoas têm o dom e a capacidade de transformar o ambiente ao seu redor – seja um escritório na Avenida Paulista, um consultório médico, uma sala de aula ou um ônibus lotado descendo a Rua Cardeal Arcoverde. Isso que é ser cheio de vida. Quando a vida que há em alguém transborda e modifica o entorno. Tudo o que está em volta e não tem brilho, de repente, reacende quando essa pessoa cheia de vida está por perto. Até os mais mal-humorados encontram dentro de si a gentileza, o sorriso e bom-humor que andavam escondidos. Todo mundo quer essa alegria, andar sem cara amarrada, ouvir por favor, com licença e obrigada. Perceber o outro e não apenas ocupar o mesmo espaço. Mas precisa que uma pessoa dessas, que exala vida por onde passa, te encontre para que se dê conta de que dentro de você também há vida – e muita! Entrar no ônibus do Chicão é um daqueles preciosos momentos, quando o extraordinário invade o dia a dia ordinário quase como em tom de milagre.

No mesmo dia em que tive o prazer de cruzar com alguém como ele, que demonstrava o prazer em prestar, com o seu trabalho, um serviço extremamente vital à sociedade – Chicão trabalha há 40 anos como cobrador e está há 17 na mesma linha de ônibus. Tive também o desprazer de pegar outro ônibus, sem seguida, com uma daquelas pessoas que parecem ter o dom de estragar o dia de qualquer ser humano. Avistei logo um moço aparentemente perdido, com uma folha nas mãos, chamando o cobrador, que não o escutava por estar conversando com o motorista. Após alguns gritos, ele ouviu e respondeu à pergunta do rapaz sem nenhum entusiasmo, eu mesma nem ouvi qual foi a resposta. Quando chegamos perto do ponto em que o moço desceria, ele tentou confirmar mais uma vez se era ali mesmo o seu destino e ouviu um grosseiro: “– O que eu te falei? Que era no segundo ponto da avenida. Esse é o segundo ponto, então é aqui. Você quer que eu te carregue no colo?”.

O cara desceu desconcertado, correndo e o cobrador continuou vociferando dentro do ônibus, dizendo que tinha gente lerda assim e assado. Mas a gente nunca sabe com quem está falando, se a pessoa não é da cidade ou se ela nunca havia estado naquele bairro antes e está apenas insegura ou tem problemas com localização mesmo. Enfim, se você sabe a informação que pode ajudá-la, porque não doá-la? Algo tão simples na minha cabeça pode não ser tão fácil assim para o outro. E assim eu percebi, num curto espaço de tempo, nitidamente, a diferença entre uma pessoa cheia de vida e outra cheia de nada. E ainda bem que o encontro com o Chicão tinha me enchido de vida naquela manhã. E contra a vida, o nada perde feio e sai catando cavaco.

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Débora Pinho
Made in Brasil

Jornalista. Observa. Escreve e fotografa na cidade de SP.