Linguagem neutra: será que estamos incluindo usando “todes”?

Ulisses Lisboa
Magnetis Design
Published in
5 min readSep 29, 2020

Um dilema que também pode cair na mão de UX Writers

Com as pautas sobre diversidade e inclusão cada vez mais vivas e necessárias, passamos a ver novas formas de escrever em diferentes contextos com o objetivo de incluir todas as pessoas e não excluir ninguém.

Atualmente é possível ver em muitos lugares uma adaptação da palavra “todos” que, por mais que seja conceituada como um pronome indefinido, está no artigo masculino. Com isso, surgiram as formas “todes”, “todxs” ou até mesmo “tod@s” como uma maneira de incluir pessoas não apenas do gênero masculino e feminino, mas também pessoas que não se identificam com nenhum desses.

É muito importante a desconstrução de padrões que excluem pessoas e grupos em todos os contextos sociais. Por isso, trabalhar com as palavras nos traz para o desafio de usá-las com responsabilidade e bom senso. Mas será que simplesmente usar um “x” ou um “e” no fim de uma palavra é a solução?

Usar “e” ou “x” não torna a palavra neutra

Sinceramente, gostaria que esse problema fosse solucionado com um simples “e” no fim de um palavra, mas estou aqui para dizer e reforçar que não, não estamos sendo inclusivos e diversos ao fazer isso.

Na língua portuguesa, uma vogal temática, na maioria das vezes, não define gênero. Isto é, o gênero é definido pelo artigo que acompanha a palavra (MANSANO; VIVIAN, 2020). Por exemplo:

O alquimista: a palavra termina com A e não é feminino.

O dentista: também termina com A e não é feminino.

E trago outros exemplos para bugar um pouco mais a nossa cabeça:

A ação, depressão, impressão, ficção. Todas as palavras terminam com ção, são femininas, embora terminem com O.

De acordo com a professora de portguês e escritora, Vivian Mansano, boa parte dos adjetivos da língua portuguesa podem ser tanto masculinos quanto femininos, independentemente da letra final, como: feliz, triste, alerta, inteligente, doente, especial, agradável e por aí vai. Por isso, terminar a palavra com “e” não faz com ela seja neutra.

A alface: termina com E e é feminino.

O elefante: termina com E e é masculino.

Segundo a docente Mansano, o gênero na língua portuguesa é determinado muito mais pelos artigos do que pelas vogais temáticas. Por isso, se queremos uma língua neutra, precisamos criar um artigo neutro e não utilizar E, X ou @ no fim de uma palavra — o que, infelizmente não existe no português.

Além disso, gênero linguístico, gênero literário e gênero musical, por exemplo, são coisas totalmente diferentes de “gênero” de um ser humano. Não faz diferença mudar gênero das palavras, porque elas são, literalmente, palavras.

Nesse sentido, eu gostaria que a língua portuguesa pudesse resolver todos os desafios que enfrentamos acerca de diversidade e inclusão, mas infelizmente colocar um “e” no fim da palavra não torna o mundo mais inclusivo. Pelo contrário, acaba confundindo e comprometendo a comunicação do nosso idioma.

Estamos incluindo & excluindo?

Sabe quando estamos crentes de estar ajudando e fazendo algo com bom coração, mas na realidade estamos bagunçando mais? É exatamente o que acontece quando colocamos um “x” no final de uma palavra. Ao usar “elx”, por exemplo, com o intuito de atingir todas as pessoas e evitar a utilização de um gênero, estamos excluindo pessoas com diferentes deficiências visuais.

Para a pessoa deficiente visual acessar conteúdos textuais em smartphones e computadores, é necessário recorrer a ferramentas que leem o texto. Quando colocamos, por exemplo, a palavra “todxs” em um texto ou em uma legenda de um post nas redes sociais, estamos literalmente fritando a ferramenta de leitura e consequentemente excluindo o acesso de deficientes visuais. Isto é, a leitura daquela palavra é comprometida.

Com isso, deixo um questionamento: estamos realmente incluindo todas as pessoas ou simplesmente incluindo somente aqueles que queremos?

Não podemos esquecer que as palavras são uma ferramenta para comunicar, falar, informar, explicar. Se estamos mais engajados com a “neutralidade” de um texto e esquecendo da comunicação em si, estamos criando uma coisa nova: uma comunicação falha e ineficaz.

Vamos fazer o que está ao nosso alcance?

Tudo isso que eu contei acima quer dizer que eu não importo com uma linguagem neutra e que esse problema é simplesmente irreparável? Não. É importante termos pé no chão e fazermos o que está ao nosso alcance sem comprometer o nosso papel: comunicar e guiar as pessoas com as palavras.

Como UX Writer na Magnetis Investimentos , recentemente me deparei com algumas telas de referralsolução para clientes indicarem outras pessoas para experimentarem o produto — para revisar. Quando abri o Figma — ferramenta que utilizamos para criação, gestão e revisão de telas do nosso app — e comecei a revisar os textos, encontrei todo o texto inclinado para o masculino, o que é o mais comum mesmo.

Tela de referral da Magnetis com várias palavras não inclusivas

Como vocês podem observar, há frases como “convide amigos”; “presenteie seus amigos”; “a cada amigo indicado…”; “convidados” e “…por cada amigo que começar a investir…”.

Essas páginas são exatamente para convidar seus amigos e amigas para serem clientes também e, no nosso caso, oferecemos como recompensa a isenção da nossa taxa de gestão. Ao ver essas telas, fiz um bench rápido em apps de diferentes segmentos — como iFood, Nubank, PicPay — e todo mundo tá usando a palavra “amigo” mesmo. Fiquei instigado e disposto a fazer o possível para ser mais inclusivo, mas sem usar o “e” ou “x”. Eis o resultado:

Tela de referral da Magnetis após o uso de palavras inclusivas

Ou seja:

De “convide amigos” para “convide e ganhe!

De “presenteie seus amigos” para “para você presentear alguém

De “a cada amigo indicado…” para “a cada pessoa indicada…

De “convidados” para “convites enviados

De “…por cada amigo que começar a investir…” para “…por cada pessoa que começar a investir”.

Essa foi a solução que encontrei para tornar essas telas mais neutras e inclusivas, literalmente, para todas as pessoas.

Sei que falar sobre linguagem neutra — e executar com propriedade — é um tema complexo e por vezes espinhoso. Afinal, há diversos especialistas em nossa língua portuguesa que dividem opiniões sobre esse assunto. Diante disso, trazendo esse tema para prática e para a nossa realidade enquanto evangelizadores da escrita, sobretudo, trabalhando com produtos digitais, acredito que um caminho possível é, literalmente, fazer o que está ao nosso alcance: buscar palavras que são mais generalistas para representar seres humanos, como pessoas, alguém, gente, galera e por aí vai. Assim, todo mundo no fim entende o que queremos dizer e ainda há a neutralidade como um plus.

Referências

Professora Vivian Mansano

FREITAS, M. A. O “x” da questão: gênero neutro como ato ético e estético? In: Palavras e Contrapalavras: cortejando a vida no cotidiano. Pedro & João Editores: São Carlos-SP, 2015.

MONARETTO, V. N. O. ; PIRES, C. C. . O que aconteceu com o gênero neutro latino? Revista Mundo Antigo , v. I, p. 155–172, 2012.

Livro Preconceito linguístico — Marcos Bagno

“Elx, el@s, todxs? Na língua portuguesa, sem gênero neutro: apenas masculino e feminino” — Gazeta do povo

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