Estereótipos não explicam consumo

Perfil de quem fuma é variado, só tem em comum o gosto pela Cannabis

Zero
Maio de 2014: Maconha na boca do povo

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Reportagem: Luísa Tavares e Raíssa Turci

Se você fosse conversar com pessoas que consomem regularmente maconha, e perguntasse por seus hábitos e preferências, rapidamente perceberia que elas não fumam do mesmo jeito, ou pela mesma razão. Tem gente que fuma para estudar, assim como para relaxar e dormir mais tranquilo. Uns fumam muito, e compram. Outros nem tanto. Fumam de vez em quando. Tem aqueles que plantam e, assim, garantem uma substância livre de aditivos, 100% orgânica. Por mais que se tente, os estereótipos, na realidade, não dizem muito. Aliás, não dizem nada. O perfil de quem usa a droga varia. O usuário pode ser um médico, estudante ou empresário. Em comum mesmo? Só a maconha.

Tem usuário que prefere plantar em casa, para evitar o tráfico e garantir uma substância sem aditivos

A reportagem chegou na casa de Marina* bem na hora do almoço. O namorado, com quem mora, fechava um baseado. Os dois fumaram ao fim da entrevista. Na conversa, ela contou que aprecia fumar antes da comida, que fica mais gostosa com a “larica” (termo popular que designa o aumento de apetite causado pela maconha). Mas comumente usa a droga para “relaxar os músculos do rosto” depois de um dia puxado de trabalho, pois diz ter que falar muito no serviço. Tem 28 anos e é funcionária pública, formada em Economia. Consome meio baseado por dia, quantia que sobe para um inteiro nos finais de semana. Ela e o parceiro compram 25 gramas da droga por mês. Marina diz que a substância não atrapalha seu dia a dia: “Eu sei os efeitos que ela tem no meu corpo, então não uso quando tenho que estudar ou trabalhar, porque não me concentro”. Mas reconhece que costumava ser bastante contrária à ideia: “Eu associava com uns amigos que não faziam nada, sempre levavam geral na praça, e iam para a delegacia. Depois vi que isso é mais da postura da pessoa do que da droga em si.”

Enquanto uns não conseguem se concentrar por conta da maconha, outros sentem exatamente o contrário. Rodrigo*, estudante de engenharia elétrica de 22 anos, fumava esporadicamente. No último semestre, resolveu usar a droga para estudar. E dá certo? “Muito. Você vai até além do que a matéria está te propondo”. Ele e o colega de apartamento fumaram também antes das provas. “Foi meu melhor semestre. Em matérias consideradas difíceis, tirei dez nas duas primeiras provas, nem precisei da terceira”. Rodrigo e o colegam compram dez gramas a cada duas ou três semanas. Com relação à dependência, diz que tem, “assim como Facebook, sabe? A pessoa vai pra roça e não tem internet, aí ela fica ‘nossa, que chato’. É psicológico, passa um dia e acostuma”.

Em um condomínio de luxo de Florianópolis, Priscila* nos recebeu na área da piscina. Sentada no chão, respondia às perguntas enquanto trocava a fralda de seu filho. A estudante de Gastronomia de 24 anos fuma cerca de 25 gramas por mês. Durante a gravidez reduziu a quantia, mas não parou. “Fumava praticamente a mesma coisa que fumo hoje. Mas fumo aos poucos, fecho um e, às vezes, demoro dois dias para terminar. Porque tu tem que ficar atenta, o bebê te cobra isso. E tem outras coisas pra fazer. Gosto muito de fumar e sair, ver um verde, passear com meu filho. Fica tudo mais lindo.”

Priscila fuma há nove anos e não considera a droga prejudicial, desde que o uso seja consciente, com quantidade e frequência moderadas. Ela diz que chegou a consumir até 30 baseados por dia, o que causava esquecimentos e a deixava desorganizada: “Eu perdia muita coisa e acabava não ligando. Perdia a identidade e fumava um. Pensava ‘ah, perdi minha identidade’, e fumava outro. Aí pensava ‘e quem precisa de identidade?’. Esse é o problema, não dá para ser tão banal”. Mesmo tendo reduzido de 100 para 25 gramas por mês, Priscila sente dependência, e não parou durante a gravidez por não conseguir. “Só porque tu falou que ias vir eu já fiquei com vontade”. Como estratégia para reduzir o consumo, estabelece tarefas que devem ser feitas antes de fumar, assim adia o momento, só usando a droga uma vez ao dia, às vezes, menos.

Alguns entrevistados disseram que fumam para relaxar, enquanto outros usam para se concentrar nos estudos

Para Augusto*, a maconha também é hábito diário. Aos 21 anos, o operador comercial consome um baseado por dia, enquanto caminha para casa depois do trabalho. Ao contrário de Priscila, não se sente dependente. “Faz uma semana que não fumo. Voltei de férias, meu salário veio desfalcado, e como estou mal de grana, não fui atrás”. Pondera que a planta pode servir como entrada para outras drogas, mas que isso depende de cada pessoa: “Eu nunca passei da maconha, não curto outras coisas. Isso vai de cada um, a maconha não tem culpa de nada, coitada”, descontrai.

Dono de uma casa de samba na ilha, Vitor*, 22 anos, fuma há dez. “Uso como remédio para dormir. Como trabalho à noite, tomo energético para aguentar, e tenho insônia”. O “descanso” sai em torno de R$ 150 mensais, suficiente para comprar entre 30 e 50 baseados. Considera-se dependente, principalmente pelo efeito tranquilizante. “É um vício como o cigarro, até porque a maconha que a gente compra vem com muitos aditivos. Já fui viciado em cigarro e sinto que é a mesma necessidade.”

Aline*, que é doutoranda, discorda. “Sei que não sou dependente da maconha porque fui de cigarro e não conseguia ficar um dia sem. Já a maconha posso ficar, como já fiquei, meses sem”. Ela consome a erva desde os 16 anos, de três a quatro vezes por semana. O marido, João*, professor universitário, fuma diariamente depois do trabalho. Ela gosta do efeito para cuidar do jardim, cozinhar, mas também já fumou para inspirar a redação da dissertação de mestrado e de artigos científicos. Para não se expor ao risco de ir a uma boca de fumo, o casal comprava de um rapaz do bairro. Mas ao descobrirem que ele tinha 17 anos e havia parado de estudar, começaram a plantar. Aline diz que o plantio, além de não financiar o tráfico nem o envolvimento de menores, é a garantia de que a substância virá sem misturas, pois já teve a desagradável surpresa de comprar maconha prensada com baratas.

Os amigos sabem que ela e João usam a droga e “a maioria deles, trabalhadores, pesquisadores, profissionais respeitados, responsáveis e reconhecidos em suas áreas, também fumam”, diz Aline. Em uma noite de sexta-feira, os dois receberam um desses amigos e compartilharam a produção da casa. João bebia cerveja e fumava com o colega que, ao experimentar a maconha caseira, se impressionou com a qualidade. O elogio arrancou sorrisos do casal. Aline passou café, serviu pão e recusou o fumo. Conversaram até a visita ir embora, e pouco depois foram dormir. Sábado era dia de trabalho.

*Nomes fictícios para preservar a identidade dos entrevistados.

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