Procura-se forma de ganhar a vida

Mesmo com qualificação, transexuais encontram resistência na hora de arrumar emprego

Zero
Maio de 2014: Maconha na boca do povo
5 min readSep 24, 2014

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Reportagem: Raíssa Turci e Thaís Ferraz

“Quem vai querer contratar uma travesti, ainda que graduada?” questiona Joana*, estudante da UFSC e mulher transexual. A pergunta é pertinente: em pesquisa realizada pelo projeto TRANSpondo Barreiras com 663 mu-lheres transexuais de 35 diferentes municípios do país, apenas 5,73% declarou trabalhar com carteira assinada. Marginalizadas, transexuais, principalmente mulheres, parecem não encontrar emprego fora do lugar considerado normal pela maioria da sociedade: a “pista” de prostituição, onde, segundo estimativa da Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (ANTRA), 90% das trans brasileiras trabalham.

A inserção no mercado de trabalho esbarra em dificuldades, todas com caráter discriminatório. Cris Stefanny, presidenta da ANTRA, explica que “é sempre a mesma questão: como as transexuais geralmente saem de casa muito novas, não conseguem se formar pelos meios legais. Sem formação, não alcançam a qualificação cobrada pelas empresas, e não podem disputar o mercado de trabalho”. Além disso, mesmoquando são qualificados, ou se candidatam a empregos informais, transexuais continuam sendo rejeitados e rejeitadas — e, ainda que consigam a vaga, enfrentam problemas para per-
manecer nela.

Um curso superior, símbolo de boa qualificação profissional, está longe de garantir a aceitação dos transexuais pelo mercado. A falta de políticas públicas nas instituições de ensino, inclusive entre as que já adotam o uso do nome social, dificulta o acesso de transexuais a estágios. “Se eu for procurar um estágio, chegar e dizer ‘sou travesti’, eles vão dizer ‘desculpa, querida, não temos política pra travestis trabalharem como estagiárias’. E por mais que eles tentem incorporar isso e respeitem meu nome, eu sei que vou estar sujeita a qualquer tipo de ridicularização, de ameaça, de violên-
cia.”, afirma Joana. “A Universidade deveria ser o lugar de mais inclusão, e não é. Sai a aprovação do nome social e todo mundo pensa ‘ah, que lindo, as travestis podem entrar’. Mas entrar de que forma? E sair de que forma?”, completa.

Laura Martendal, outra estudante da UFSC, atesta: “trans vão trabalhar no salão, na cozinha, no banheiro. Nunca numa sapataria, numa cafeteria, como caixa”. Muitas vezes, as próprias travestis e transexuais têm receio de assumir certas vagas. Joana explica: “Tu é tão hostilizada na sociedade, que sempre pensa: ‘quero um emprego que não trabalhe com público, que as pessoas não me vejam, não riam, não me inferiorizem”.

Uma vez contratados, muitos transexuais têm um dos seus direitos mais básicos, como o uso do nome social, negados. David Zimmerman, consultor de negócios, conta: “ Em um emprego anterior, expliquei como funcionava a questão do nome social. Mas sempre que fazia algo errado, minha ex-supervisora me castigava me chamando pelo nome de registro. Era uma forma de punição, e até hoje eu penso que deveria ter processado a empresa.”

Travestis e transexuais encontram pouco respaldo na Legislação e nas políticas públicas. De modo geral, o que existe são decretos municipais, atuação de secretarias e ONG’s ligadas aos Direitos Humanos ou iniciativas tomadas por parte das próprias pessoas transexuais. Em São Paulo, o Programa Operação Trabalho, da Prefeitura Municipal, oferece cursos profissionalizantes para LGBTs.

Em Florianópolis, a Associação de Direitos Humanos com Enfoque em Sexualidade (Adeh), oferece assessoria jurídica e atualmente promove uma força-tarefa para a retificação do nome civil. De iniciativa própria, três transexuais brasileiros criaram o portal Transempregos- onde empre-
sas de todo o país podem cadastrar suas vagas. suas vagas.

O projeto de lei João W. Nery — número 5002/2013 —, de Jean Wyllys (PSOL-RJ) e Erika Kokay (PT-DF) é o que há de mais avançado em rela-ção a identidade de gênero no Brasil.Atualmente em tramitação, o textovisa estabelecer o direito de todas as pessoas ao reconhecimento de sua identidade de gênero, além de identificação e tratamento de acordo com ela. Se aprovado, o projeto ajudará a preencher a lacuna de legislação e políticas públicas específicas voltadas à transexuais e transgêneros.

*Nome fictício para preservar a identidade dos entrevistados.

Violência no trabalho é constante

Excluídas do mercado de trabalho, travestis e transexuais, majoritariamente mulheres, encontram na prostituição uma forma de sustento, autoafirmação da nova identidade de gênero e aceitação social.

Joana estuda na UFSC, trabalha como prostituta e já frequentou pontos de travestis em muitas cidades de Santa Catarina. Começa a trabalhar só depois da meia-noite para evitar ser ridicularizada na rua. A estudante conta que o programa, em Florianópolis, costuma custar R$ 50,00 na “pista” e sobe para R$ 100,00 quando ela precisa pagar o motel. “Não vou dizer que é um sofrimento, até porque na prostituição tu aprende realmente a ser travesti, aprende a performance, ganha dinheiro para construir teu corpo. Se eu tivesse uma condição em que não precisasse me prostituir, não me prostituiria. Mas esse é o único mercado de trabalho que resta para travestis”.

Joana conta que em Florianópolis o clima é mais tranquilo que em outras cidades do estado, como Joinville, onde sofreu mais preconceito. “Até o ponto é mais escondido da população para eles não se chocarem tanto”, conta, em meio a gargalhadas. De acordo com Joana, a rotatividade de profissionais é alta porque ser nova na cidade aumenta o preço do programa. Ela chegava a fazer R$ 600,00 por dia quando tinha recém chegado na capital, há dois anos. Hoje, faz no máximo R$ 100,00. Está procurando estágio na universidade e já enviou alguns currículos. Por enquanto, ainda não foi chamada. “Acho que vou ganhar mais com um estágio aqui do que na prostituição”, conta.

Travestis e transexuais sofrem violência física e verbal frequente-
mente e ficam mais expostas a isso quando trabalham à noite na rua. De acordo com a pesquisa do TRANSpondo Barreiras, mais de 70% das transexuais e travestis afirmaram já ter sofrido violência verbal, mais de 50% dizem ter sofrido violência física e mais de 45% afirmam terem sido agredidas por policiais. Joana confirma as estatísticas: “sempre tem um cara armado que quer te obrigar a fazer favores sexuais que tu não quer. E de graça”. Ela conta também que a violência moral e o desrespeito são constantes. “Já tive amigas que apanharam das próprias travestis cafetinas, dos clientes, de homens que passam na rua só para agredir. Algumas já foram até baleadas.” Apesar de reconhecer que a profissão é perigosa e de ficar sujeita à violência, Joana encara a prostituição como uma maneira de “sobreviver nesse mundo tão transfóbico, machista e misógino”.

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