Análise fílmica: “Nascido para matar”, de Stanley Kubrick

Malu Araújo - Jornalista
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9 min readFeb 10, 2021

Texto acadêmico produzido para a disciplina Ciclo de Filmes, da Universidade Federal de Sergipe, em setembro de 2017

O semiólogo francês Roland Barthes afirma em seu livro “Mitologias” que todo discurso traz sempre consigo significações que vão além do nível superficial do entendimento primário. Desse modo, ao considerar que toda produção cinematográfica é também um discurso, é notório como Stanley Kubrick no seu filme “Nascido Para Matar” (no original: ‘Full Metal Jacket’) explora essas significações implícitas para passar sua visão da Guerra do Vietnã, por meio de diversos recursos como cores, enquadramentos, composições de cena etc.

Lançado no ano de 1987, “Nascido Para Matar” traz Kubrick nas funções de produtor e diretor e se destaca por ser o penúltimo filme da sua carreira. A história, contada em 116 minutos, retrata os horrores da guerra, mostrando desde o treinamento extremamente rígido a que os recrutas são submetidos até o campo de batalha propriamente dito. Nesse meio-tempo, Kubrick desenvolve a narrativa de forma a evidenciar a desumanização dos soldados e a sua transformação em verdadeiras máquinas de matar.

O filme é dividido em duas ou três partes, dependendo da interpretação de cada espectador. Porém, para esta análise, considerou-se a divisão em apenas dois momentos bem distintos: o treinamento dos fuzileiros navais na ilha Parris e o período no qual vemos a guerra em si e suas atrocidades. Na primeira parte, os personagens de maior destaque são o sargento Hartman (R. Lee Ermey), o recruta Pyle (Vincent D’Onofrio) e seu companheiro Joker (Matthew Modine). Já na segunda parte, a história acompanha basicamente o Joker e alguns dos soldados que estão com ele no Vietnã.

Alinhamento perfeito: do treinamento militar à câmera de Kubrick

“Nascido Para Matar” começa apenas com o título e o nome do diretor, não havendo, portanto, créditos iniciais. Logo depois, já se inicia a história do filme, mostrando os recrutas raspando o cabelo. Todos esses elementos têm como música de fundo a canção “Hello Vietnam”, que já sugere qual será a temática da produção.

Um dos elementos do filme que chamam bastante atenção, principalmente na primeira parte, é a mise-en-scéne milimetricamente calculada. O posicionamento dos atores e dos objetos em cena é extremamente alinhado e coreografado e existe uma notável uniformidade entre os figurinos dos personagens e os cenários. Essa exatidão exagerada nas formas reflete a rigidez do treinamento militar, no qual todos os movimentos devem ser ordenados e coordenados.

A cena na qual os soldados estão cantando e segurando os órgãos genitais enquanto marcham (12’37’’ até 13’03’’) é um exemplo da direção de atores calculada que é realizada em toda a produção. Outra passagem que expressa esse alinhamento de maneira eficiente é quando o sargento está realizando a inspeção nos soldados (23’47’’ até 26’09’’) e estes estão enfileirados impecavelmente.

Em relação ao figurino dos atores, a tendência seguida é a mesma. Todos estão sempre trajados de maneira uniforme, já que é dessa forma que os soldados se vestem geralmente. A padronização das roupas pode ser vista na cena da inspeção (citada anteriormente) e é tão grande que permanece até quando os personagens estão sujos de lama da cabeça aos pés (17’18’’ até 17’32’’). No aspecto da semelhança com a realidade, os figurinos são bem realistas e têm como cores predominantes o branco, o cinza e o verde musgo (da mesma maneira que acontece em um exército de verdade). Essa coloração está em total sintonia com os tons usados nos cenários.

Os locais onde ocorrem as ações variam bastante nessa primeira parte do filme e podemos notar tanto cenas internas quanto externas. Mas, os principais locais são: o alojamento dos soldados, o campo de treinamento e uma floresta na qual eles também se exercitam. Ainda em relação ao cenário, é interessante observar como Kubrick utiliza os seus elementos para compor algumas cenas, a exemplo do juramento do fuzil (10’33’’ até 11’55’’), no qual as camas enfileiradas dão a ideia de repetição (recurso bastante utilizado na fotografia para atrair a visão do observador).

Além da repetição, que é frequente em diversas partes do filme, outros recursos também são utilizados pelo diretor na composição dos quadros. O principal deles é o uso de linhas imaginárias, que pode ser visto em quase todas as passagens dessa primeira parte da história. Existe uma predominância por linhas retas que, segundo a interpretação de alguns autores, sugerem masculinidade e força (características presentes em todo o filme). A composição das cenas é bastante impecável e a forma como ela é feita dá uma impressão de geometria imaginária, que reforça ainda mais a uniformidade e o alinhamento citados anteriormente.

A iluminação das cenas da primeira parte é bem mesclada entre luz natural e artificial. De maneira geral, ela é bem uniforme, mas, algumas vezes, é utilizada como recurso de destaque de alguns personagens, como os recrutas Pyle e Joker. Pode-se observar isso na sequência em que o sargento Hartman está se apresentando (1’34’’ até 7’30’’) e a luz da janela ilumina os dois recrutas de maneira mais incisiva, dando dicas de que eles serão importantes na história (já que até então, o espectador não tem a mínima ideia do que vai acontecer ao final nem de qual é a intenção do diretor com aquilo).

Outra forma que é utilizada para dar destaque a esses dois personagens é a profundidade de campo. No filme como um todo, principalmente quando há grandes planos gerais, a profundidade é bem grande (por conta do uso de grandes angulares) e há quadros que conseguimos ver cada detalhe do que está acontecendo lá no fundo (entre 30’16’’ e 30’44’’, por exemplo). Porém, os momentos nos quais a câmera se aproxima do Pyle e do Joker são uns dos únicos em que o fundo fica totalmente desfocado e o foco está apenas nos personagens. A grande profundidade de campo reforça como a movimentação de todos os elementos que estão na cena é bastante calculada.

No que diz respeito à movimentação da câmera, o uso de travellings é bastante frequente, principalmente para trás. Já os planos predominantes são o plano geral, o grande plano geral e, algumas vezes, o plano próximo. Há também alguns closes, utilizados principalmente no final da primeira parte, para dar destaque às expressões do rosto do soldado Pyle, mostrando a progressiva deterioração psicológica do personagem (exemplo: 32’18’’).

Por fim, o ritmo das cenas da primeira parte é bem uniforme e é marcado principalmente pelos gritos do sargento Hartman. Por não existir música de fundo em várias partes do treinamento, as falas dele praticamente ditam o andamento. A repetição e uso de formas bem delineadas também conferem ritmo às sequências da história.

Os horrores da Guerra

A segunda parte do filme rompe com o alinhamento notório na primeira parte. Porém, isso não implica dizer que o diretor não continua utilizando uma mise-en-scéne extremamente calculada, ele apenas não deixa isso tão perceptível ao espectador. Já na primeira vez que vemos o alojamento militar no Vietnã, há um plano-sequência (entre 48’14’’ e 49’07’’) e, por conta da profundidade de campo, dá para notar uma série de ações acontecendo ao fundo, todas elas bastante coreografadas.

Apesar dessa diferença, os figurinos continuam apresentando a mesma uniformidade que já havia antes e ainda são bastante realistas. Mas, dessa vez, a cor predominante é apenas o verde-musgo da farda dos militares, não havendo mudança de roupa até o final do filme. A coloração dos trajes está em harmonia com praticamente todos os outros elementos visuais retratados, fazendo com que as cenas tenham, de forma geral, tons mais escuros e fechados.

O cenário é praticamente todo feito em áreas externas, sendo raros os momentos nos quais há ambientes fechados. As cenas acontecem predominantemente nos acampamentos militares, nas floretas do Vietnã e nos locais onde ocorrem tiroteios e batalhas propriamente ditas (escombros de prédios, construções etc). É interessante notar como em quase todas as cenas externas o céu está nublado, o que dá ao ambiente uma sensação de pesar, característica de momentos de guerra. Além disso, assim como na primeira parte, os cenários estão combinando com os figurinos. Esse aspecto pode ser visto na sequência em que os soldados estão procurando pelo primeiro pelotão (01º01’45’’ até 01º03’02’’), na qual a vegetação apresenta quase os mesmos tons das vestes dos militares.

A iluminação é praticamente toda natural, visto que boa parte das cenas se passam em áreas externas. Há também diversas passagens que ocorrem no escuro, o que poderia refletir o teor sombrio dos momentos de guerra, além da destruição. Outro aspecto bastante relevante em relação ao uso da luz é a presença recorrente de iluminação por meio do fogo. O fogo, na cultura ocidental, tem como uma de suas simbologias a destruição; desse modo, sua luz traz um efeito de realce nas expressões dos atores que confere dramaticidade a algumas cenas (exemplo: quadro 01º41’56’’). Por fim, Kubrick captura diversas passagens aproveitando as chamadas “horas mágicas” da fotografia, que são o nascer e o pôr-do-sol. Esse recurso, assim como o uso de iluminação com fogo, confere um tom alaranjado às cenas, o que é um tanto contraditório, já que a cor laranja simboliza alegria e vitalidade.

Ainda que não haja linhas de composição tão perceptíveis nesse segundo momento do filme, o diretor continua se utilizando de recursos geométricos para tornar a composição fotográfica mais interessante. Um exemplo disso pode ser observado quando ele enquadra a cena a partir da sobreposição de dois círculos do próprio cenário, um no primeiro plano (que depois some com a aproximação da câmera) e um mais ao fundo (01º06’12’’ até 01º06’25’’).

A profundidade de campo, de forma geral, ainda é grande, mas não é tão explorada como na primeira parte da história. Mas, uma tendência que se repete é o uso de muitos travellings, havendo inclusive um momento metalinguístico no qual o diretor faz um travelling mostrando um travelling (01º16’17’’ até 01º17’25’’). Em relação aos planos, não existem (ou existem bem poucos) grandes planos gerais e closes. O predomínio é, portanto, de planos gerais, planos de conjunto e planos próximos.

Uma característica que também não é observada na primeira parte e aparece em peso na segunda é o uso de câmera subjetiva. Ela aparece em diversas situações e com diversas finalidades; entre elas no final do filme, quando a câmera assume o papel do “atirador misterioso” e mira nos soldados (01º34’23’’ até 01º34’28’’). Nesse caso, esse tipo de câmera foi usado como recurso para conferir mistério, já que nem o espectador nem os outros personagens sabem a identidade do “atirador” e essa revelação é bem importante no roteiro do da história. Além dessa estratégia, o diretor também utiliza vários zooms out, nos quais, a partir do foco inicial em um único elemento, ele vai mostrando os outros componentes da cena aos poucos.

Por fim, é importante ressaltar o quanto a trilha sonora do filme é bastante irônica, não só na segunda parte, mas predominantemente nela. Desde a música inicial (“Hello Vietnam”), passando pelas músicas de rock alegres durante a guerra e culminando nos soldados cantando a música do Mickey Mouse no final, o sarcasmo é visível e contribui para reforçar a crítica que Kubrick faz à Guerra do Vietnã.

Ficha Técnica

- “Nascido para matar” (título original: “Full Metal Jacket”), Estados Unidos, 1987

- Diretor e roteirista: Stanley Kubrick

- Duração: 116 minutos

Bibliografia

BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil S.A., 1989.

BORDWELL, David. Figuras traçadas na luz: a encenação no cinema. Campinas: Papirus, 2008.

MARTINS, André Reis. A luz no cinema. Belo Horizonte: Escola de Belas Artes / UFMG (Dissertação de Mestrado), 2004.

NASCIDO Para Matar. Direção e produção de Stanley Kubrick. Estados Unidos: Warner Bros., 1987.

OLIVEIRA JÚNIO, Luiz Carlos. A Mise En Scène No Cinema: do Clássico ao Cinema de Fluxo. Campinas: Papirus, 2013.

VANOYE, Francis. Ensaio sobre a análise fílmica. Campinas: Papirus, 1994.

Essa texto é uma produção da disciplina Ciclo de Filmes — 2017.1 da Universidade Federal de Sergipe.

Texto: Malu Araújo

Orientação: Suyene Correia Santos

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