Texto 08 — “Liberdade sem Medo”

Trechos do Livro de Alexander Sutherland Neill, de 1959

Marcelo Voos
MARÉ Ubatuba
10 min readJul 10, 2016

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[esta seleção de trechos faz parte do nosso Percurso em Educação]

Prefácio (Erich Fromm):

O sistema de A. S. Neill é uma aproximação radical no que se refere à educação da criança. Em minha opinião, este livro é de grande importância, porque representa o verdadeiro princípio da educação despojada de medo. Na Escola Summerhill a autoridade não mascara um sistema de manipulação.

Summerhill não expõe uma teoria: relata experiência de quase 40 anos. O autor sustenta que “a liberdade funciona”. Os princípios fundamentais do sistema de Neill são apresentados de maneira simples e inequívoca neste livro. Em resumo, são os seguintes:

1 — Neill mantém fé inquebrantável na “bondade da criança”. Acredita que a criança não nasce deformada, covarde, nem como autômato destituído de alma, mas tem amplas potencialidades para amar a vida e por ela se interessar.

2 — O alvo da educação — que vem a ser o alvo da vida — é trabalhar jubilosamente e encontrar felicidade. Ter felicidade, segundo Neill, significa estar interessado na vida, ou, como diria eu, é atender o apelo da vida não apenas com o cérebro, mas com toda a personalidade.

3 — Na educação, o desenvolvimento intelectual não é o bastante. A educação deve ser ao mesmo tempo intelectual e emocional. Na sociedade moderna encontramos uma separação crescente entre cérebro e sentimento. As experiências do homem, hoje, são mais e principalmente, experiências do pensamento, e não o reconhecimento imediato do que o coração sente, os olhos vêem, e os ouvidos ouvem. Realmente, a separação entre o intelecto e o sentimento levou o homem moderno a um estado mental que se aproxima do esquizóide, no qual ele se tomou incapaz de ter qualquer experiência a não ser através do pensamento.

4 — A educação deve ser entrosada com as necessidades psíquicas da criança. A criança não é altruísta. Ainda não ama, no sentido do amor amadurecido do adulto. É um erro esperar de uma criança algo que ela só pode exibir de maneira hipócrita. O altruísmo se desenvolve depois da infância.

5 — Disciplina e castigo, dogmaticamente expostos, geram medo, e medo gera hostilidade. Tal hostilidade pode não ser consciente e manifesta, mas, apesar disso, paralisa o esforço e a autenticidade do sentimento. A disciplina extensiva imposta às crianças é prejudicial e impede o desenvolvimento psíquico sadio.

6 — Liberdade não significa licença. Este princípio, muito importante, no qual Neill insiste, diz que o respeito pela pessoa deve ser mútuo. Um professor não usa de força contra a criança, nem a criança tem o direito de usar de força contra o professor. Uma criança não pode impor ao adulto só por ser uma criança, nem pode a criança suportar a pressão que de várias maneiras lhe impõem.

7 — Intimamente relacionada com este princípio está a necessidade do uso de verdadeira sinceridade por parte do professor. O autor diz que nunca em seus 40 anos de trabalho em Summerhill mentiu a uma criança. Quem quer que leia este livro ficará convencido de que tal afirmativa, embora possa parecer jactância,é a simples verdade.

8 — O desenvolvimento humano torna necessário que a criança corte, eventualmente, os laços essenciais que a ligam a seu pai e a sua mãe, ou a substitutos posteriores, na sociedade, a fim de tornar-se de fato independente. Deve aprender a enfrentar o mundo como indivíduo. Deve aprender a procurar a segurança, não num apego simbólico, mas em sua capacidade de reconhecer o mundo, intelectual, emocional e artisticamente. Deve usar de todas as suas forças para conseguir união com o mundo, em lugar de procurar segurança através de submissão ou domínio.

9 — Sentimentos de culpa têm, antes de mais nada, a função de prender a criança à autoridade. Sentimentos de culpa são empecilho para a independência: iniciam um ciclo que oscila constantemente entre a rebelião, o arrependimento, a submissão, e nova rebelião. Culpa, tal como é sentida pela maioria das pessoas em nossa sociedade, não é, principalmente, reação à voz da consciência, mas, essencialmente, compreensão da desobediência contra a autoridade, e medo da represália. Não importa que a punição seja representada por castigo corporal, pela privação do amor, ou pelo fato de se conseguir que o castigado se sinta como um intruso em seu meio, todos esses sentimentos de culpa geram medo, e o medo gera hostilidade e hipocrisia.

10 — A Escola Summerhill não oferece educação religiosa. Entretanto, tal coisa não significa que Summerhill deixe de se interessar por aquilo que nos podemos referir, vagamente, como valores humanísticos básicos. Neill coloca a questão de maneira sucinta: “A batalha não é entre os que acreditam na teologia e os que nela não acreditam, e sim entre os que acreditam na liberdade humana e os que acreditam na supressão da liberdade humana.” O autor continua: “Algum dia, uma nova geração deixará de aceitar a religião e os mitos obsoletos de hoje. Quando essa nova religião vier, será para recusar a ideia de que o homem nasceu em pecado. Essa nova religião louvará Deus por ter feito os homens felizes.”

Neill é um crítico da sociedade dos dias presentes. Insiste em que a espécie de pessoas que se está desenvolvendo nela é a do homem-massa. “Estamos vivendo numa sociedade imensa” e “a maior parte das nossas práticas religiosas é impostura.”

(…)

UMA VISTA DE OLHOS A SUMMERHILL (pag. 12 a 19)

Deixe-me descrever um dia típico de Summerhill. A primeira refeição vai das 8:15 às 9 horas. Pessoal e alunos levam essa refeição da cozinha para a sala de jantar. As camas devem estar feitas até as 9:30, quando começam as lições.

Ao início de cada período escolar um horário é fixado. Assim, Derek pode ter no laboratório a Classe I, na segunda-feira, a Classe II na terça-feira, e assim por diante. Eu tenho horário idêntico para Inglês e Matemática. Maurice o tem para Geografia e História. As crianças menores (dos sete aos nove anos) passam, habitualmente, com seu próprio professor, grande parte da manhã, mas também vão para as Salas de Ciências e Arte.

Nenhum aluno é forçado a freqüentar as aulas. Mas, se Jimmy vem para o Inglês na segunda-feira e não mais aparece até a sexta-feira da semana seguinte, os outros reclamam, com toda a razão, dizendo que ele está atrasando o trabalho. E podem expulsá-lo, por impedir o progresso.

As lições vão até uma hora, mas as crianças do jardim da infância e as que ficam entre sete e nove anos almoçam às 12:30. A escola tem de ser alimentada em dois turnos. A congregação e os maiores almoçam à 1:30.

As tardes são inteiramente livres para todos. O que fazem durante a tarde não sei. Eu me dedico à jardinagem, e raramente vejo meninos por ali. Os pequeninos, sim, que brincam de mocinho e bandido. Alguns dos mais velhos ocupam-se com motores e rádios, com desenhos e pinturas. Quando o
tempo está bom, dedicam-se a jogos ao ar livre. Outros ficam na oficina, consertando suas bicicletas ou fazendo barcos e revólveres.

O chá é servido às quatro horas. Às cinco, várias atividades têm início. Os mais jovens gostam que se leia para êles. Os médios preferem trabalhar na Sala de Arte: pintura, recortes de oleado, feitura de cestas. Na cerâmica há sempre um grupo ativo e, realmente, cerâmica parece ser uma obsessão,
pela manhã e à noite. Os mais velhos trabalham das cinco horas em diante. As oficinas de carpintaria e metalurgia ficam cheias todas as noites.

(…)

Mais importante é a noite de sábado, pois é quando se faz a Assembléia Geral da Escola. Habitualmente, segue-se um baile. Durante as noites de inverno, as de domingo ficam sendo noites de teatro.

Não há horário para o trabalho manual. Não há lições estabelecidas para carpintaria. As crianças fazem o que querem fazer, e o que querem fazer é, quase sempre, um revólver de brinquedo, um canhão, um barco, ou um papagaio. Não se interessam muito pelos trabalhos que exigem encaixes complicados.

Mesmo os mais velhos não apreciam a carpintaria difícil. Não há muitos que se interessem pelo meu próprio passatempo — metal martelado — porque não se pode pôr muita inventiva numa vasilha de metal.

(…)

Summerhill sempre lutou um pouco para se manter. Poucos pais têm paciência e fé suficientes para enviar o filho a uma escola onde as crianças podem brincar, como alternativa para estudar. Tremem, ao pensar que aos vinte e um anos seu filho talvez se mostre sem capacidade para ganhar a vida.

Hoje, os alunos de Summerhill são, em sua maioria, crianças cujos pais as querem educar sem disciplina restritiva. Isso é um dos fatos mais felizes, pois nos velhos dias eu teria um filho dos de arraigada tradição apenas se o pai o enviasse em desespero de causa. Tais pais não têm interesse algum na
liberdade das crianças, e, secretamente, devem nos considerar um bando de excêntricos lunáticos. Foi muito difícil explicar coisas a esses obstinados.

Lembro-me de um militar que pensou em matricular em Summerhill o filho de nove anos.

— O lugar me parece bom — disse ele — mas tenho um receio. Meu rapaz pode aprender a masturbar-se aqui.

Perguntei-lhe porque temia tanto isso.

— Porque lhe fará muito mal — foi a resposta.

— Não fez tanto mal assim ao senhor nem a mim, não é mesmo? — indaguei eu, alegremente. O homem saiu depressa, levando o filho.

(…)

Mais de uma vez fiz sentir que os adultos, em Summerhill, não são protótipos de virtude. Somos humanos como toda gente, e nossas fraquezas humanas muitas vezes entram em conflito com as nossas teorias. No lar médio, se uma criança quebra um prato, o pai ou a mãe armam barulho, tomando o prato mais importante do que a criança. Em Summerhill, se uma camareira ou uma criança deixa cair uma pilha de pratos eu nada digo, minha esposa nada diz.

Acidentes são acidentes. Mas se a criança pede um livro emprestado e deixa-o ficar lá fora, exposto à chuva, minha esposa se zanga, porque livros, para ela, têm muita importância. Em tal caso, eu, pessoalmente, sou indiferente, pois os livros para mim têm pouco valor. Por outro lado, minha esposa parece vagamente surpreendida se eu faço barulho a propósito de um formão estragado. Dou valor a ferramentas, mas para ela as ferramentas pouco representam.

(…)

Nossas Assembléias Gerais nas noites de sábados, ai de mim, revelam o conflito entre crianças e adultos. Isso é natural, pois numa comunidade de pessoas de várias idades, se cada qual sacrificasse tudo às crianças menores, seria estragar completamente essas crianças.

Os adultos queixam-se de um grupo de alunos mais velhos que não os deixam dormir, conversando e rindo depois que todos se recolheram. Harry queixa-se de que passou uma hora aplainando uma almofada para a porta da frente, e, ao voltar do almoço, verificou que Billy se tinha servido dela para fazer uma prateleira. Eu faço acusações contra as crianças que pediram emprestado meu material de sondagem e não o devolveram. Minha mulher faz barulho porque três das crianças menores, depois da ceia, disseram estar com fome, receberam pão e geléia, e, na manhã seguinte os pedaços de pão foram encontrados no piso do vestíbulo. Peter conta, com tristeza, que alguns meninos atiraram sua preciosa argila uns nos outros, na sala da cerâmica.

E a coisa vai assim, a luta entre o ponto de vista adulto e a falta de conhecimento consciente dos jovens.

Mas tal luta não degenera jamais em hostilidade pessoal: não há sentimentos amargos em relação a cada qual. O conflito mantém Summerhill muito animado. Há sempre alguma coisa acontecendo, e durante todo o ano nem um só dia se passa insipidamente.

Um fato digno de menção é o de que dificilmente os membros da congregação perdem a calma. Isso tanto diz bem deles como das crianças. São, realmente, crianças adoráveis para se conviver, e poucas ocasiões aparecem em que se poderia perder a calma. Se a criança é livre e sente-se aprovada, não será, regra geral, odienta. Não terá prazer algum em levar um adulto a perder a calma.

(…)

As crianças de Summerhill mostram tendência agressiva, coisa habitual nas crianças comuns? Bem, toda criança deve ter alguma agressividade, para forçar seu caminho através da vida. A agressividade exagerada, que vemos nas crianças não-libertas, é um protesto exagerado contra a animosidade que se demonstra em relação a elas. Em Summerhill, onde criança alguma se sente detestada pelos adultos, a agressividade não é necessária. As crianças agressivas que nos aparecem provêm, invariavelmente, de lares onde não lhes dão amor e compreensão.

Quando eu era menino e freqüentava uma escola de aldeia, narizes sangrando mostravam-se um fenômeno semanal, pelo menos. Agressividade do tipo lutador é animosidade, e jovens cheios de animosidade precisam lutar. Quando as crianças estão numa atmosfera da qual a animosidade foi eliminada, não demonstram tal sentimento.

Penso que a insistência freudiana sobre a agressividade é devida ao estudo de lares e escola, tal como eles são. Não se pode estudar a psicologia canina estudando o cão-de-caça preso a uma corrente. Nem se pode teorizar dogmaticamente sobre psicologia humana quando a humanidade está sob fortes cadeias, cadeias forjadas por gerações de odientos da vida. Acho
que na liberdade de Summerhill a agressividade não se faz sentir em coisa alguma com a força que tem nas escolas estritas.

Em Summerhill, entretanto, liberdade não significa anulação do bom senso. Tomamos todas as precauções para a segurança dos alunos. As crianças só podem ir ao banho de mar quando está presente um salva-vidas para cada seis delas, e nenhum dos alunos de menos de onze anos pode andar sozinho
pelas ruas, de bicicleta. Essas regras foram ditadas pelas próprias crianças, nas Assembléias Gerais da Escola.

Não há leis, contudo, quanto à escalada das árvores. Subir às árvores faz parte da educação da vida, e proibir todas as empresas perigosas seria fazer da criança um covarde. Proibimos a subida a telhados, o uso de espingardas de ar comprimido ou de qualquer outra arma que possa ferir. Fico sempre aflito quando surge a mania periódica das espadas de madeira. Insisto em que as pontas sejam cobertas com borracha, ou pano, mas, mesmo assim, fico satisfeito quando a mania passa. Não é fácil marcar a linha divisória entre realístico e simples aflição.

[Esta seleção de trechos faz parte do Percurso em Educação, do grupo MARÉ — Ubatuba.]

[Próximo texto: Fazer a Ponte]

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