Que horas é minha hora senão agora?

Marcelle Cerutti
Marcelle Cerutti
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2 min readNov 1, 2022

Talvez criar um filho seja coisa suficiente pra uma vid. Mas e a voz lá de dentro que diz: E eu? Que horas é minha hora senão agora?

Em muitos dias anda do meu lado uma velha conhecida. Ela diz que eu deveria terminar os livros que eu comecei, fazer mais cursos e reunir gente pra fazer aquela peça acontecer. Pra isso eu deveria estudar mais, falar com mais gente, ver mais peças. Eu também queria estudar cinema e pesquisar um monte de coisa na fotografia.

Ela fala que eu deveria fazer algum projeto que fure a minha bolha e tenha um propósito que não o capital, e lembra que falta bastante pra conseguir fazer uma invertida mesmo depois de tantos anos praticando Yoga na sala.

Quando desperta 6 da manhã ela repassa a lista mental de coisas mundanas que precisam ser resolvidas e lembra que eu deveria estar gozando mais e olhando mais pro céu. O celular apita, vejo várias mensagens não respondidas de novo. Sem dúvidas eu deveria estar me letrando pra ter uma opinião mais profunda e crítica sobre tanta coisa urgente que tá acontecendo. E a aula de canto que eu queria fazer?

Quando a velha senhora empaca na minha frente eu trago o pensamento que quase sempre me salva: “Talvez criar um filho seja coisa grande suficiente pra uma vida só e tudo bem se eu não fizer nada das outras coisas que eu queria ou deveria fazer. Se eu terminar o dia com esse ser humano alimentado, se sentindo amado e com o coração na direção certa tá bom demais, isso já é coisa pra caralho.” Pensar isso é como um remédio na veia e me apego a esse efeito pra fingir não escutar a voz lá de dentro que diz: E eu? E minhas vontades? Que horas é minha hora senão agora?

A conta não fecha e a senhora continua lá. Faço um chá e convido ela pra sentar. Na lógica da produtividade capitalista eu nunca estou fazendo o suficiente. Não importa o que eu faça, sempre poderia estar fazendo mais e melhor. Junta o fato de ser mulher e mãe num mundo machista e patriarcal, com uma criação católica puritana e o apocalipse está pronto. É preciso ser forte pra me lembrar que não é isso que me define e é preciso coragem pra olhar pra essa velha senhora e falar que eu já faço coisa suficiente, e as faço bem o suficiente. — Agora termine seu chá e pode ir. Até amanhã.

Photo by Edu Carvalho: https://www.pexels.com/photo/2050996/

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