Marcílio Dias x Carlos Renaux: rivalidade centenária

Marinheiro e Tricolor protagonizaram a maior rivalidade intermunicipal do Vale do Itajaí entre 1919 e 1984.

Fernando Alécio
Clube Náutico Marcílio Dias
11 min readOct 28, 2022

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Itajaí e Brusque alimentam a rivalidade entre cidades mais antiga do futebol catarinense. O primeiro confronto entre times dos municípios vizinhos se deu em 20 de setembro de 1914, quando o Sport Club Brusquense, fundado em 14 de setembro de 1913 e que mudou de nome para Clube Atlético Carlos Renaux em 1944, recebeu a visita do Itajahyense Foot-Ball Club, fundado em novembro de 1911, um dos primeiros clubes de futebol surgidos em Santa Catarina.

A peleja transcorreu em clima de total cordialidade, tendo o time mandante vencido por 1 a 0. Ao final do tempo regulamentar, num gesto de gentileza, o Brusquense convidou o adversário a disputar mais 35 minutos de jogo, ocasião na qual a equipe do Itajahyense conquistou o tento de empate. À noite, os jogadores de ambos os times confraternizaram em baile que invadiu a madrugada, como era o costume na época.

Em 10 de maio de 1919, o Itajahyense Foot-Ball Club foi incorporado ao Clube Náutico Marcílio Dias, fundado em 17 de março daquele ano. De acordo com o livro História do Clube Náutico Marcílio Dias, não demorou para o time de Brusque cruzar o caminho do Marinheiro, em outubro de 1919, poucos meses após a fundação do Rubro Anil:

O primeiro jogo contra outra agremiação desportiva pode ter ocorrido em 5 de outubro. Conforme noticiado pela imprensa, no dia anterior uma delegação marcilista seguiu para Brusque para enfrentar o Sport Club Brusquense (atual Clube Atlético Carlos Renaux). O resultado deste jogo não é conhecido. Em 21 de dezembro de 1919, o Brusquense retribuiu a visita e viajou a Itajaí para enfrentar o Marcílio Dias. O jogo foi disputado no campo do Barroso, na Rua dos Atiradores (atual Rua Uruguai), e terminou com o placar de 3 a 1 para os itajaienses. Trata-se da primeira vitória do Marcílio Dias de que se tem registro. O quadro marcilista teve como goleiro Waldemar Bornhausen, o Wadê, futuro prefeito de Rio do Sul; a zaga foi composta por Felix Malburg e Raul Heusi da Silva; no meio-campo atuaram Tuly Scheefer, Lindolfo Vieira e Gabriel Collares; e a linha de frente contou com Gonzaga, Anysio Oliveira, Guedinho e os irmãos Adolfo e Antoninho Reis. Os gols do triunfo rubro anil foram anotados por Anysio, Antoninho e Guedinho.

Ao contrário do clima cordial que envolveu aquele encontro entre Brusquense e Itajahyense em 1914, desta vez o ambiente pós jogo foi bem diferente. Após a partida houve confusão entre os jogadores, dando início à ferrenha rivalidade entre Marcílio Dias e Carlos Renaux, só arrefecida quando o time de Brusque desativou seu departamento de futebol profissional em 1984. “Foi um Deus nos acuda. Os dois clubes estiveram por longo tempo com relações cortadas. Os desportistas de Brusque não queriam ver os de Itajaí e vice-versa”, relatou Gabriel Collares, um dos fundadores do Marcílio Dias.

O primeiro encontro entre as duas equipes pelo Campeonato Catarinense ocorreu em 11 de janeiro de 1931, válido pelo certame de 1930. Fora de casa, o Marcílio derrotou o Brusquense por 3 a 1 e eliminou o rival da competição, da qual o time de Itajaí terminaria como vice-campeão.

Inauguração do Estádio Augusto Bauer

Ainda em 1931 houve outro jogo histórico entre os dois clubes. No dia 7 de junho, Brusquense e Marcílio Dias duelaram na inauguração do Estádio Augusto Bauer, de propriedade do Brusquense. Vitória do Marinheiro por 1 a 0, com gol do atacante André. Nesta partida, o time da casa atuou com Adriano Schaefer; Euvaldo Schaefer, Mário Schaefer; José Sassi, Celso Schaefer, Euvaldo Tensini; Aníbal Diegoli, Arnoldo Schaefer, Adolfo Domingos, Guilherme Krieger Neto e Emanuel Pieper. Não há registro da escalação do Marcílio.

Era ASVI/LEVI

Entre 1938 e 1946, o futebol do Vale do Itajaí esteve sob a égide da Associação Sportiva Valle do Itajahy, que em 1944 mudou o nome para Liga Esportiva Vale do Itajaí. A competição regional promovida pela entidade acirrou ainda mais a rivalidade entre os times de Itajaí e Brusque, principalmente entre Marcílio e Carlos Renaux. O Marcílio foi campeão regional em 1939, 1944 e 1946, enquanto o Brusquense/Carlos Renaux faturou o título nas edições de 1941, 1942, 1943 e 1945.

Mudança de cor

Até 1942, o Brusquense tinha as mesmas cores do Marcílio Dias: azul e vermelho. Devido à crescente rivalidade entre os clubes, o time de Brusque decidiu acrescentar o branco às suas cores oficiais, justamente para se diferenciar do rival de Itajaí. A partir de então, passou a ser tricolor.

Confusão e arbitrariedade

Uma grande celeuma marcou o jogo entre Marcílio Dias e Carlos Renaux realizado no dia 16 de agosto de 1959, válido pelo Campeonato Catarinense. O jogo transcorria normalmente com a vitória do Marcílio Dias por 1 a 0, gol de Idésio, até os 32 minutos, quando o árbitro Wladimir Borba assinalou pênalti para o Marinheiro.

Os jogadores do Carlos Renaux não concordaram com a marcação, alegando que a falta acontecera fora da área. O clima esquentou e alguns jogadores sdo Carrenô agrediram o árbitro com socos e pontapés. Pelas agressões e ofensas ao árbitro, o time de Brusque teve quatro atletas expulsos. Prevendo sofrer uma goleada acachapante, o presidente do Carlos Renaux decidiu retirar seu time de campo, abandonando a partida. Idésio cobrou o pênalti, fez 2 a 0 e o jogo foi encerrado prematuramente.

Dias depois, o julgamento no Tribunal de Justiça Desportiva de Santa Catarina confirmou a vitória do Marinheiro e aplicou uma suspensão de 210 dias ao Carlos Renaux, além de multa. Na prática, a decisão excluía o time brusquense do certame e dava ao Marcílio a vaga na fase seguinte.

Mas quando parecia que justiça havia sido feita, eis que surge a obscura figura de Osni Mello, então presidente da Federação Catarinense de Futebol (FCF). Aproveitando uma brecha na legislação, o mandatário do futebol barriga-verde usou da arbitrariedade e anulou a decisão do Tribunal de Justiça Desportiva, determinando a realização de um novo jogo entre as duas equipes em campo neutro.

Caso o Marcílio se recusasse a acatar a decisão arbitrária, poderia sofrer uma suspensão de 360 dias. A diretoria rubro anil se reuniu e decidiu disputar a partida, mesmo sendo prejudicado. Entenderam os dirigentes marcilistas que Osni Mello esperava que o Marinheiro não aceitasse tamanha injustiça e não comparecesse ao jogo, justamente para ter a justificativa para aplicar a suspensão. Ou seja, uma arapuca.

O jogo foi realizado no dia 20 de setembro de 1959, no Estádio Adolpho Konder, em Florianópolis, e terminou com a vitória por 2 a 1 do Carlos Renaux, que atuou com os atletas que haviam agredido o árbitro e sido expulsos no jogo de Itajaí. O resultado eliminou o Marcílio da competição e os clubes cortaram relações por algum tempo.

Foto de um jogo entre Carlos Renaux e Marcílio Dias, no Augusto Bauer, em 1962. Na imagem aparece o atacante marcilista Renê chutando a bola. Acervo Érico Zendron.

A câmera do fotógrafo

Um jogo entre Marcílio e Carlos Renaux especialmente lembrado em Brusque ocorreu em 31 de março de 1963, no Estádio Doutor Hercílio Luz, em Itajaí. Era a primeira rodada do returno do Campeonato Catarinense de 1962 e, apesar do domínio marcilista, aos 13 minutos de bola rolando o Carrenô já abria vantagem por 2 a 0, com gols de contra-ataques marcados por Darci e Julinho.

O Marinheiro descontou com Sombra, aos 22 minutos, e desperdiçou a chance de empatar ainda no primeiro tempo ao não converter um pênalti cobrado pelo zagueiro Ivo Mayer e defendido pelo goleiro Valdir Appel, conhecido como Chiquinho. No rebote, Ivo novamente perdeu a oportunidade de estufar as redes. Antes, quando o jogo ainda estava em zero a zero, Aquiles já havia perdido um gol feito, sem goleiro.

No segundo tempo, com uma arbitragem de Osmir Rayser, da liga brusquense, muito contestada pelos jogadores e torcida marcilistas, a tensão só aumentou. O Marcílio era só pressão em busca do empate, mas a bola não entrava. “Numa partida jamais vista nos últimos tempos em nossa cidade, nunca se viu tantos gols perdidos”, registrou o Jornal do Povo.

Súmula do jogo realizado em 31/03/1963. Acervo Gustavo Melim

Acompanhando a delegação brusquense estava o fotógrafo Érico Zendron, que registrava os lances da partida com sua câmera Minolta 1000. Aos 38 minutos do segundo tempo, Sombra foi expulso e teria havido uma confusão generalizada, assim recordada na versão do goleiro Chiquinho:

Na etapa final suportamos a pressão do adversário e da torcida. A poucos minutos do fim o time itajaiense iniciou um tumulto que provocou a invasão de campo pela torcida. Fomos ameaçados, hostilizados e agredidos. Zendron não perdia um lance. A policia interveio e, ao invés de nos proteger, nos acuou e deixou bem claro que para sairmos vivos do estádio, seria interessante a gente amolecer a partida. Na empurra-empurra, tomaram a Minolta das mãos do Érico, que só foi recuperá-la na delegacia. Sem o filme, é claro. Tivemos que abrir as pernas e entregar o jogo já nos acréscimos. Mesmo assim, só conseguimos deixar o estádio às 8 horas da noite. Desolado, Érico Zendron jamais voltaria a pisar um campo de futebol com a sua câmera fotográfica

O Marcílio empatou o jogo com Odilon aos 45 e virou com uma cabeçada fulminante do artilheiro Idésio, aos 47 minutos, decretando o placar de 3 a 2 em favor do time da casa. Naquela partida, o Marinheiro, treinado pelo técnico Laércio Gomes, atuou com Zé Carlos; Marzinho (Antoninho), Ivo Mayer, Joel Santana e Joel Reis; Sombra e Odilon; Renê, Idésio, Aquiles e Ratinho. Na súmula do jogo, assinada pelo árbitro da partida, não há relato de invasão de campo ou qualquer tumulto.

Joel Santana cumprimenta Teixeirinha antes de jogo entre Carlos Renaux e Marcílio Dias em 1962, em Brusque. Acervo Érico Zendron.

Marcílio campeão em Brusque

Um dos jogos mais importantes da história do Marcílio Dias teve justamente o Carlos Renaux como adversário. Na tarde de 23 de fevereiro de 1964, os dois times se enfrentaram pelo Campeonato Catarinense de 1963, no Estádio Augusto Bauer. Então líder da competição, uma vitória garantiria ao Marinheiro o título do Torneio Luiza Mello (reconhecido como campeonato estadual em 1983) com uma rodada de antecipação. E foi o que aconteceu.

No primeiro turno da competição, o Augusto Bauer já havia dado uma demonstração de que boas coisas esperavam pelo Marcílio Dias por ali. Na ocasião, o Marinheiro triturou o Paysandu pela expressiva contagem de 8 a 1, a maior goleada registrada em todo o Torneio Luiza Mello. Agora se apresentava a chance de conquistar o título e dar a volta olímpica, o que aconteceu em grande estilo, com uma nova goleada, desta vez por 4 a 1, sobre o Carlos Renaux.

O time brusquense até tentou estragar a festa e abriu o placar com Badinho, aos 28 minutos, mas o Marcílio não se importou e o empate era questão de tempo. A igualdade no placar chegou aos 42, quando Ratinho aproveitou rebote após cobrança de falta. No segundo tempo, o domínio marcilista passou a ser total e os gols foram saindo ao natural.

Aos 10 minutos, Ratinho recebeu um belo lançamento de Odilon e cruzou para Renê mandar para as redes e virar o placar. O terceiro tento marcilista, sete minutos depois, também teve origem num passe longo de Odilon, desta vez para Aquiles. O artilheiro, sozinho no setor direito, invadiu a área e fuzilou, sem chances para o goleiro Aurélio. O quarto gol chegou novamente através de Renê, fechando o placar.

A festa da torcida rubro anil começou lá mesmo, pois um grande número de marcilistas se deslocou a Brusque para ver o Marinheiro campeão. “Sem dúvida, um título honroso conquistado num certame que reuniu grandes equipes do nosso Estado”, bradou o Jornal do Povo.

Carlos Renaux 1 x 4 Marcílio Dias

Data: 23/02/1964

Local: Estádio Augusto Bauer (Brusque)

Árbitro: Arno Boos

Auxiliares: Orcy de Souza e Mauro Machado

Renda: Cr$ 222.70,00

Gols: Badinho aos 28 e Ratinho aos 42 do primeiro tempo; Renê aos 10 e 34 e Aquiles aos 17 do segundo tempo.

Carlos Renaux: Aurélio; Bianchini, Sardo, Adelfo (Baiano) e Merísio; Badinho e Araújo (Zeca); Petrusky, Wilson, Vinícius (Miltinho) e Bossinha. Técnico: Norival Mosimann.

Marcílio Dias: Jorge; Djalma, Marzinho, Joel Santana e Joel Reis; Sombra e Odilon; Renê, Aquiles, João Caetano (Salvador) e Ratinho. Técnico: Milton Gonçalves.

Flores e recorde de renda

Em 10 de abril de 1976, o Carlos Renaux recebeu o Marcílio Dias, no Augusto Bauer, em jogo do Campeonato Catarinense. O resultado ficou no empate sem gols, mas nas bilheterias teve goleada. Segundo o diretor de patrimônio do clube brusquense na época, Leonardo Loos, aquela partida marcou o recorde de renda até então na cidade de Brusque.

“Renda parecida com essa só quando veio o Botafogo em 1958 com Nilton Santos, Garrincha e Didi, os ídolos do Brasil na época, mesmo assim não chegou a tanto”, disse o dirigente ao comentar a renda de Cr$ 73.295,00.

Em Itajaí, por sua vez, os dirigentes marcilistas reclamaram da recepção que tiveram na cidade vizinha. “Domingo o Marcílio foi a Brusque onde empatou com o C. Renaux, levou também flores aos brusquenses e como recompensa e amabilidade dos locais levaram garrafadas e pedradas. Que bonito gesto de retribuição”, registrou o Jornal do Povo.

Enchente de 1984

Não só desavenças marcaram a rivalidade entre Marcílio Dias e Carlos Renaux ao longo da história. Em agosto de 1984, o Vale do Itajaí foi castigado por mais uma grande enchente. O Estádio Augusto Bauer foi severamente danificado e os prejuízos contabilizados pelo Carlos Renaux fizeram o clube tomar a drástica decisão de abandonar o futebol profissional em pleno andamento do Campeonato Catarinense.

Solidário com o clube da cidade vizinha, o então presidente do Marcílio Dias, Jacir Pamplona, ofereceu o Estádio Doutor Hercílio Luz para o Carlos Renaux mandar suas partidas e assim pudesse continuar no campeonato. Mas não teve jeito, o time brusquense de fato licenciou-se e permaneceu por décadas afastado do futebol profissional, colocando uma pausa na velha rivalidade com o Marcílio Dias, iniciada em 1919.

Estádio Augusto Bauer teve muro derrubado na enchente de 1984. Acervo Brusque Memória

O último jogo entre os dois times antes da licença do Carlos Renaux ocorreu em 10 de março de 1984, pela primeira fase da Taça Federação Catarinense de Futebol, e terminou com o placar de 4 a 0 para o Marinheiro, gols de Jair (2), Antoninho Justiniano e Oriel, em Itajaí. O Marcílio terminaria o torneio em homenagem aos 60 anos da FCF como campeão. Em 26 de agosto de 1984, Marcílio e Carlos Renaux deveriam se enfrentar pelo Campeonato Catarinense, mas não houve jogo e o Marcílio venceu por WO devido à desistência do adversário.

Gol do Fantástico

Os dois velhos rivais do Vale do Itajaí voltaram a se enfrentar mais de 38 anos depois, na Copa Santa Catarina de 2022. Nos jogos da primeira fase, equilíbrio total com dois empates (2 a 2 em Itajaí e 1 a 1 em Brusque). No primeiro jogo da semifinal, o Marcílio Dias aplicou uma goleada por 5 a 1 (superando a goleada de 4 a 1 no Torneio Luiza Mello, a maior do Marinheiro até então na casa do adversário).

O jogo teve um lance inesquecível e que teve repercussão nacional. Aos 22 do segundo tempo, após bola levantada na área, o zagueiro Léo Rigo matou no peito, deu um chapéu no adversário e finalizou de primeira com o pé direito, mesmo sendo canhoto. Um golaço que foi eleito o “Gol do Fantástico” naquele fim de semana e exibido no programa dominical da Rede Globo para todo o Brasil.

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Written by Fernando Alécio

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