A política brasileira e a influência da escatologia cristã

Bruno Oliveira
Revista Marginália
7 min readAug 25, 2021

A escatologia é o ramo da teologia/filosofia que estuda o que irá acontecer no fim do mundo ou, ao menos, o destino final de todos os seres humanos.

Bolsonaro e suas alianças para manter domínio sobre uma base de eleitores evangélicos

Cada religião tem sua própria visão escatológica e com elas seu próprio conjunto de profecias. No caso do Cristianismo, essas profecias estão registradas nos textos bíblicos — parte delas registrados no Apocalipse, incluindo detalhamento sobre o retorno de Cristo, o arrebatamento e o Juízo Final.

Pois o mesmo Senhor descerá do céu com Grande brado, à voz do arcanjo, ao som da trombeta de Deus, e os que morreram em Cristo ressurgirão primeiro. Depois nós, os que ficarmos vivos, seremos arrebatados juntamente com eles nas nuvens, para o encontro do Senhor nos ares, e assim estaremos para sempre com o Senhor.

[Bíblia] I Tessalonicenses 4:16–17

Claro que estes textos, em algumas vezes metafóricos e fantasiosos, são passíveis de interpretações. E uma das escolas de interpretação escatológica que mais cresce no Brasil, especialmente em igrejas neopentecostais é o pré-milenismo dispensacionalista. Ou, de forma simplória, a linha daqueles que interpretam o fim do mundo de forma literal, exatamente do jeito que consta na Bíblia, vírgula por vírgula. Entender um pouco mais sobre as pessoas que interpretam a escatologia cristã dessa forma pode nos ajudar a entender como o Bolsonarismo explora estes elementos dentro de seu projeto de poder.

Resumo da escatologia cristã [Pinterest]

“Alguém falou do fim-do-mundo, O fim-do-mundo já passou Vamos começar de novo: Um por todos, todos por um […] E hoje em dia, como é que se diz: Eu te amo?” Vamos Fazer um Filme / Renato Russo (1993)

O Bolsonarismo e a bandeira de Israel

Nesta visão dispensacionalista, Deus tem dois povos distintos: o povo que reside na Terra (nesse caso Israel) e o povo celeste (a Igreja). Esta visão acredita que a escatologia ocorre por etapas (ou dispensações) e que as profecias que existem para a Israel (relacionadas a terras, descendentes, bençãos, etc) estão em curso e serve como prova de que a profecia cristão está correta. Israel é importante porque consta nas profecias e apenas depois do “sucesso” de Israel é que chegará o momento da Igreja e o tão esperado arrebatamento.

Uma enquete de 2015 informou que 60% dos evangélicos dizem que a nação de Israel foi estabelecida como resultado da profecia bíblica. 70% dizem que “Deus tem um relacionamento especial com a nação moderna de Israel”, e 73% acreditam que “os acontecimentos em Israel são parte das profecias no Livro do Apocalipse”. [Unisinos]

Esse interesse por Israel passa a ser político — uma sinalização para a população evangélica de a visão pré-milenista do mundo está em curso e que o político que está facilitando os acontecimentos pode então ser o tão esperado messias. Por isso Trump prometeu reconhecer Jerusalém como capital de Israel — com isso, ele passa a ser aquele que está ajudando a profecia a se cumprir, um suposto profeta moderno enviado por Deus. E se Trump usa esta estratégia de política escatológica, seu fiel escudeiro não fica atrás. Não incomum é ver apoiadores bolsonaristas hasteando bandeiras Brasil-Israel em passeatas a favor do atual ocupante do cargo de presidente do Brasil.

Muitos adeptos dessa religião [neopentecostais] confundem o estado de Israel hoje com a Israel bíblica. E já tem anos que as bandeiras de Israel estão presentes nesses cultos”, relembra o cientista social. Um exemplo dado por Daniel Douek é que, em frente ao Templo de Salomão, construído pela Igreja Universal do Reino de Deus, há uma bandeira israelense [Anita Efraim]

[Imagem: Yahoo Notícias]

O Bolsonarismo e os momentos de grande tribulação

O anticristo é uma figura emblemática e significativa na escatologia cristã. Para boa parte dos cristãos, já houve muitos anticristos ao longo da história, e provavelmente vai continuar surgindo outros. Porém, haverá um último anticristo, o Anticristo escatológico, que surgirá em um período de grande tribulação, e regerá um sistema mundial que será contra a Igreja de Cristo. Alguns acreditam apenas em um “sistema anticristo” (ex.: governo ou ideologia) e não necessariamente em um indivíduo específico.

De acordo com Lindolfo Martelli, teólogos de igrejas neopentecostais (como a Assembleia de Deus) defendem que um dos perigos da igreja na atualidade é o comunismo, visto que é supostamente “totalitarista, evolucionista, materialista e ateísta”, que “nos últimos tempos de todos os inimigos da igreja o marxismo está em primeiro lugar”, que “aonde esse sistema ateísta tem ido, seu propósito tem sido desarraigar por completo o Cristianismo” — por investida direta ou por subversão, e que “muitos daqueles que se voltam contra a Bíblia hoje, abraçam vãs esperanças no progresso evolucionário ou nos sonhos comunistas”. Para alguns grupos evangélicos, o enfraquecimento das esquerdas na América do Sul faz parte do processo de desorganização da ideologia socialista como um todo, reforçados pelos supostos “péssimos exemplos” de países como Cuba, Venezuela e Coreia do Norte. A China passa a ser o grande inimigo, talvez o “último anticristo”.

À besta foi dada uma boca para falar palavras arrogantes e blasfemas e lhe foi dada autoridade para agir durante quarenta e dois meses. Ela abriu a boca para blasfemar contra Deus e amaldiçoar o seu nome e o seu tabernáculo, os que habitam nos céus. Foi-lhe dado poder para guerrear contra os santos e vencê-los. Foi-lhe dada autoridade sobre toda tribo, povo, língua e nação. Todos os habitantes da terra adorarão a besta, a saber, todos aqueles que não tiveram seus nomes escritos no livro da vida do Cordeiro que foi morto desde a criação do mundo. [Apocalipse 13:5–8]

Para alguns neopentecostais o momento de pandemia que passamos hoje passa bastante a experiência apocalíptica que parte dos fieis tanto aguardam. O maior desejo que estes devotos mais querem é que chegue o momento do arrebatamento, o momento que “os humilhados serão exaltados” e que tudo o que eles acreditam enfim vai fazer sentido. Esse momento gera engajamento nessa base de apoiadores e por isso houve uma luta muito grande do presidente em manter as igrejas funcionando: foi quase como uma sinalização de que eles estão contra vocês, e apenas “eu” (Bolsonaro) estou tentando defendê-los. É uma tentativa de Jair ser, de fato, um Messias. Não a toa os evangélicos são os que mais relativizam o desempenho de Bolsonaro frente a pandemia (de acordo com Datafolha) e são os que mais geram aprovação para o presidente.

“Várias dessas lideranças que são contra o isolamento e apoiam ferrenhamente Bolsonaro pertencem ao segmento neopentecostal. Estão apostando num discurso apocalíptico. Com a pandemia, de alguma maneira, estaríamos passando pela experiência teológica do final dos tempos. Nesse sentido, Bolsonaro se encaixa nessa dinâmica apocalíptica. É um governo de muito caos, desconfiança e inconsistência, que responde a esse anseio teológico”, Marilu Cabañas e Glauco Faria, para o Jornal Brasil Atual

Inclusive, as próprias fake news geradas pelo governo são cada vez mais direcionadas para os neopentecostais. Em relação as vacinas, uma das principais notícias que circulou nas igrejas evangélicas deste país foi a de que a vacina implantaria um chip nas pessoas (precisou até de um Fato ou Fake para desmentir essa sandice). Não a toa, essa fake news se assemelha a uma passagem bem famosa da Bíblia:

Também obrigou todos, pequenos e grandes, ricos e pobres, livres e escravos, a receberem certa marca na mão direita ou na testa, para que ninguém pudesse comprar nem vender, a não ser quem tivesse a marca, que é o nome da besta ou o número do seu nome. Aqui há sabedoria. Aquele que tem entendimento calcule o número da besta, pois é número de homem. Seu número é seiscentos e sessenta e seis. [Apocalipse 13:16–18]

Os principais assuntos abordados nas fake news sobre a pandemia— tem para todas as tribos [G1]

E é dessa forma que Bolsonaro tenta manter o seu maior curral eleitoral, a criação da narrativa escatológica é sútil para quem não a conhece, mas é uma mensagem extremamente direta para o seu público-alvo. Entender sobre esse mecanismo de controle é uma oportunidade para conseguir combatê-la e esclarecê-la para nossos amigos e familiares que se perdem nessa narrativa.

Referências:

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Bruno Oliveira
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Auditor, escritor, leitor e flanador. Mestrando em TI, tropecei na bolsa de valores. Acredito nas estrelas, não nos astros. Resenho pessoas e o tempo presente.