A resistência da utopia nos séculos do capital

Marina Moreno de Farias
Revista Marginália
8 min readOct 22, 2019
Mapa da terra da Utopia. 1563

Um panorama histórico

Que novas construções sociopolíticas são mitigadas na lógica capitalista de produção, consumo e trabalho que perpassa nossos dias, não é novidade. Esteve no cerne do capitalismo não o fim em si mesmo, mas meio para chegar ao poder de assegurar flexibilidades de mercado e “liberdade de escolha”. O capital, em suas mais variadas formas, atua como único regime econômico e político eficiente e possível desde seu gênese com o fim do regime feudal — mesmo que tenham havido organizações de luta antifeudal à época, como os movimentos milenaristas e heréticos — a ascensão desse pensamento de capitalismo como regime sui generis e superior, no entanto, se deu no pós Guerra Fria, quando foram ensejando-se novas articulações historiográficas, onde a história, marcada pelos embates e conflitos ideológicos entre URSS X EUA, ou alinhados e não alinhados ao comunismo da União Soviética ou à democracia liberal dos Estados Unidos, tinha chegado ao fim com a vitória incontestável do capitalismo ocidental do segundo bloco.

Essa ideia vem abarcada por Fukuyama com “O fim da História”, por Samuel Huntington com a teoria do Choque das Civilizações e tantos outros, levantando a perspectiva de hegemonia norte-americana que dominaria o cenário político internacional com um momento unipolar, a partir da universalização da democracia liberal como corrente dominante. Para além disso, as interpretações do pós Guerra Fria colocam em cena a profunda agenda liberal advinda do Consenso de Washington*, onde o eixo de poder (em todos os sentidos que essa palavra possa ter) é o Ocidente. Mais especificamente, os Estados Unidos da América — e tudo que este representa; a saber: o sonho americano, o modelo de democracia liberal que tentam exportar para o mundo a partir da lógica intervencionista, a globalização do capital.

O triunfo do capital e a Expansão Financeira

A partir de análises mais profundas sobre os ciclos sistêmicos, as alternâncias de épocas de expansão material e financeira, entendemos que mesmo o capitalismo se articulando como única forma de governo desde que é mecanismo vigente, novas articulações (na era do pós Guerra) para a transformação da sociedade foram abafadas com o grito do capital contemporâneo, onde as transformações do próprio capital são as únicas possíveis: este se porta como flexível, maleável às amarras do tempo e com o poder de se reinventar. Sempre sem deixar de ser capitalismo.

  • A expansão material e financeira¹ geram juntas o ciclo sistêmico de acumulação (chamada na fórmula de Marx de DMD’)

A financeirização do capital , a combinação de atividades laborais heterogêneas e regimes de acumulação, a concorrência interestatal (base de toda expansão financeira e material, a partir de alianças Estatais com as forças capitalistas) todas formam a expansão financeira onde o crescimento por via única de desenvolvimento (a partir de expansão material ²) atingiu seu limite, e assim, a economia capitalista mundial precisa se deslocar através de outras vias de organização.

Como entendemos em Braudel, o que começa a incorrer é a Expansão do Capital: Agora não mais a emergência do capitalismo é absolutamente dependente do poder estatal, mas sob a liderança de agentes e blocos específicos, por meio de redes (isso nos permite lembrar de Globalização na definição de Milton Santos como o “auge do sistema capitalista”, na quebra de barreiras entre os mercados interno e externo). É importante ressaltar que apesar disso, o capitalismo continua e principalmente é interestatal, sendo essa coalizão entre o Estado e as forças capitalistas a base de toda expansão financeira, na medida em que o Estado, no regime de democracia liberal serve aos interesses da grande burguesia

O capitalismo só triunfa quando se identifica com o Estado, quando é o Estado. (ARRIGHI, GIOVANNI.1996, p.11)

A grosso modo, é importante entender o modus operandi do capital: se expande de todas as formas e por meios vários, não se restringindo à acumulação primitiva de capital, e portanto as novas configurações (como a expansão e financeirização do capital) — vão se fixando no interior das antigas estruturas.

Cada fase da globalização capitalista, incluindo a atual, vem acompanhada de um retorno aos aspectos mais violentos da acumulação primitiva.

(FEDERICI, SILVIA)

O capitalismo, como sistema econômico e político (mesmo que os significados dessas palavras sejam indissociáveis) traz ao imaginário do povo proletário que só ele funciona, bem como mostra para a grande burguesia e aos agentes que controlam seus mecanismos, que pode se reinventar e se disfarçar para continuar sendo sistema vigente, mesmo que às custas de fome, suor e sangue de muitos.

A história do capitalismo está escrita nos anais da humanidade em letras de sangue e fogo

(MARX, KARL; O capital vol.1, p.962)

A resistência que mora na Utopia

A partir do momento que o que nos é dado é que um sistema (nesse caso, o capitalismo) falido e condenado à decadência a partir da criação das suas próprias bases de destruição (a partir de ciclos sistêmicos, por exemplo) é o único válido a ser perseguido e defendido, a utopia, capaz de imaginar outras formas de organização sociopolíticas, se torna recurso de resistência.

[…] Se a utopia presta-se a ser fonte de conscientização e ação, de crítica e de proposição, há que se supor também que ela coloca em xeque prática e consensos forjados em nome da normalidade e da imutabilidade das coisas, assim, os valores do capitalismo comprometem significativamente as funções da utopia, pois abafa o pensamento crítico, desestimula ações coletivas, e propaga a ideia de que são inócuas as projeções para um futuro melhor.

(KRAMER, JOSIANE)

A globalização neoliberal, como explicitada acima, a partir do pós Guerra Fria e das certezas do auge do sistema capitalista implicam em uma imutabilidade do sistema, trazendo o capitalismo contemporâneo como status quo. O que pretende a “utopia” é, por conseguinte, as projeções de transformações sociais de forma a refrear a lógica do capital.

Em primeiro lugar, é importante ressaltar o significado de utopia para o caminho que seguiremos a partir daqui. Utopia, para Thomas Morus, invoca a crítica da ordem social imbricada na exploração. Na ilha imaginada pelo autor, não há propriedade privada (dos meios de produção) e portanto, não há extração da mais-valia e nem exploração, e caracterizam-se a sobreposição dos interesses comuns aos interesses individuais. Além disso, outros teóricos, depois chamados de “socialistas utópicos”, como Robert Owen, Charles Fourier e Saint Simon, calcam sua visão de sociedade ideal a partir de ideais de transformação da sociedade.

É válido salientar que, se movimentos como a Utopia suscitam a transformação social, como as organizações socialistas, anarquistas e etc, a outra, o capitalismo, pretende nos manter sedentários e presos no sistema do capital. Assim, o que é pretendido aqui é levantar o conceito de Utopia não como a única alternativa viável ou como alternativa em quaisquer sentidos, mas apenas como caráter negacionista da ideia apática das formas de manutenção das organizações atuais.

Embora a utopia descrita por Thomas More de forma quase lúdica ao representar uma ilha, aponte para uma sociedade perfeita e, portanto, pode-se dizer que para alguns, impossível, os escritos sobre este lugar servem para orientar o significado (não um conceito) de Utopia. […] é preciso ter consciência a priori, de que o lugar em que estamos não é bom, em seguida, que pode ser melhor, que não será perfeito, mas que devemos caminhar em direção a este lugar. Que há uma utopia concreta, factível e possível a ser buscada.

[…]Permitindo saber onde está, possibilita dimensionar onde se quer chegar, e ainda, proporciona consciência do “ainda não”

(KRAMER, JOSIANE)

Isto é, esperar novas e/ou melhores formas de organização social não é do feitio do capitalismo, e então nos viramos para a utopia como dispositivo de fazer a forma mais basilar de resistência ao capital: imaginando um futuro possível além dele.

Essa perspectiva de futuro é também uma constatação do presente, e logo uma insatisfação com este.

(KRAMER, JOSIANE)

Se a realidade é insustentável, a utopia serve para construir novas ideias, “pois, ao buscar o impossível os seres humanos acabam por descobrir o possível, o factível, o realizável.” (KRAMER, JOSIANE; 2017)

Ela está no horizonte. […] Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para caminhar.

(GALEANO, EDUARDO)

Notas:

¹Expansão financeira, na definição de Arrighi: Massa crescente de capital monetário “liberta-se” de sua forma de mercadoria e a acumulação prossegue através de acordos financeiros. Fórmula marxiana: DD’

²Expansão Material, na definição de Arrighi: Capital monetários coloca em movimento uma massa crescente de produtos nas fases de expansão financeira.

  • A ECM (Economia Mundial Capitalista) funciona em uma sequência sistêmica de acumulação (ver ARRIGHI, 1996), operando em fases de mudanças contínuas, que seguem via única, alternando-se com fases de mudanças descontínuas de uma via para a outra.
  • *Consenso de Washington:

“ Durante a década de 1980, no contexto da ascensão do neoliberalismo e da crise da dívida latino-americana, os programas de reforma do Estado empreendidos pelo Banco Mundial (BM) incidiram sobre os âmbitos macroeconômico, fiscal e algumas áreas da política social. O aporte teórico neoclássico foi responsável por alicerçar as reformas, enfatizando o papel do mercado na promoção da boa economia. Nesse processo, o Estado foi tomado como um entrave ao desenvolvimento, sendo alvo de um processo de liberalização, que desagregou e privatizou os mecanismos de intervenção econômica, em prol de um “Estado mínimo”.No ocaso da década, os principais responsáveis pela reestruturação capitalista neoliberal reuniram-se, com intuito de avaliar o processo em curso e traçar as novas diretrizes. Este encontro contou com os principais grupos que formavam a rede de poder político, financeiro e intelectual do eixo Washington-Wall Street resultando no que ficou conhecido como Consenso de Washington (CW)

[…]

O decálogo reunia as seguintes medidas: 1º) Disciplina fiscal, através da priorização do superávit primário. 2º) Reorientação do gasto público, enfatizando áreas de “alto retorno econômico”. 3º) Reforma fiscal, com ampliação da base tributária. 4º) Taxa de juros determinada pelo mercado. 5º) Taxa de câmbio unificada e fixada de forma competitiva. 6º) Liberalização do comércio. 7º) Abertura ao investimento externo. 8º) Privatizações. 9º) Desregulação da economia. 10º) Garantia dos direitos de propriedade. (WILLIAMSOM, 1992).”

(MATEUS,RAFAEL)

Referências:

KRAMER, JOSIANE; 2017.A ECONOMIA COMPARTILHADA E A UBERIZAÇÃO DO TRABALHO: UTOPIAS DO NOSSO TEMPO? Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/47786/R%20-%20D%20-%20JOSIANE%20CALDAS%20KRAMER.pdf?sequence=1

ARRIGHI, GIOVANNI: O longo século XX

MEZZADRA, SANDRO;2013.Border as a Method. Disponível em: https://www.dukeupress.edu/border-as-method-or-the-multiplication-of-labor

RAFAEL DE PAULA FERNANDES MATEUS; O Consenso de Washington e as propostas do Banco Mundial para a reforma do Estado em perspectiva política (1989–1997)

Fernando Birri, citado por Eduardo Galeano in ‘Las palabras andantes?’ de Eduardo Galeano. publicado por Siglo XXI, 1994.

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