A securitização como instrumento de poder no mundo global

Danilo Araujo
Revista Marginália
11 min readDec 10, 2019
Militarização da vida no Complexo da Maré, RJ

Incapazes de reduzir o ritmo estonteante da mudança, muito menos prever ou controlar sua direção, nos concentramos nas coisas que podemos, acreditamos poder ou somos assegurados de que podemos influenciar. tentamos calcular e reduzir o risco que nós, pessoalmente, ou aqueles que nos são mais próximos e queridos no momento, possamos nos tornar vítimas dos incontáveis perigos que o mundo opaco e seu futuro incerto supostamente têm guardado para nós. Nossa atenção é chamada para observar os setes sinais do câncer ou os cinco sintomas da depressão, ou para exorcizar o ‘espectro da pressão alta, do nível alto de colesterol, do estresse ou da obesidade. Em outras palavras, buscamos alvos substitutos sobre os quais possamos descarregar o medo existencial excedente que foi barrado de seus escoadouros naturais, e encontramos esses alvos paliativos ao tomarmos cuidadosas precauções contra a inalação da fumaça do cigarro de outra pessoa, a ingestão de comida gordurosa ou de más bactérias (ao mesmo tempo em que sorvemos os líquidos que prometem conter as boas), a exposição ao sol ou o sexo desprotegido. Aqueles que podem dar-se o luxo de se fortalecerem contra todos os perigos, visíveis ou invisíveis, atuais ou previstos, familiares ou ainda desconhecidos, difusos, porém ubíquos, protegendo-se por trás de muros, equipando os acessos a moradias com câmeras de TV, contratando seguranças armados, dirigindo carros blindados, usando trajes a prova de balas, etc. […]

— Tempos Líquidos, Zygmunt Bauman;

A modernidade enquanto representação do progresso humano, era o motor de um tempo.

Porém, acabou por se transformar em um aglomerado de inquietações submersas pela predominância da incerteza. Se nos debruçarmos sobre o que restou do Estado de bem-estar social no mundo, a probabilidade é que caiamos do precipício, completamente vulneráveis.

O neoliberalismo como ideologia dominante em meados de 1970 joga para escanteio as concepções e práticas sobre o estado de bem estar que rondavam a Europa, tendo como berço ideológico os Estados Unidos em meio a incessante corrida armamentista com a União Soviética.

Há um crescimento exponencial de teóricos neoliberais nesse período, como Friedrich Von Hayek e Milton Friedman. Esse último em especial foi conselheiro econômico dos presidentes Richard Nixon, Gerald Ford e Ronald Reagan. A consolidação dos valores neoliberais vinda com a dolarização da economia, a criação de organismos financeiros como o FMI e o Banco Mundial, as ideias de auto regulação do mercado, serviram como base fundamental para a onda do American Way of Life e sua difusão na cultura de massa moderna.

Com isso, o neoliberalismo se intensifica ideologicamente e a ideia de que o governo sempre atrapalha a vida do povo predomina, principalmente nos Estados Unidos. A ideia do empreendedor de si mesmo denota uma auto responsabilidade com a própria segurança. Dessa forma, o indivíduo moderno se reconstitui como detentor de sua própria vida.

O livro Tempos Líquidos de Zygmunt Bauman [1] nos chama atenção para o novo panorama empurrado pela globalização: o panorama da sociedade sem fronteiras, suposta indicativa da liberdade moderna.

De acordo com essa indicativa, as redes de proteção devem ser criadas pelo próprio indivíduo de forma a proteger sua saúde, sua segurança e seu bem-estar. O medo é uma arma desenvolvida para a manutenção de um consenso ideológico acerca do que devemos nos proteger hoje. Dessa forma, o inimigo não será a concentração de renda, os jogos de poder no mercado financeiro, a barganha política, os grandes conglomerados da indústria farmacêutica e alimentícia, mas sim, a figura do narcotraficante, do terrorista, do serial killer, do pedófilo, dos alimentos tóxicos, todos transformados em figuras descoladas da realidade material e suas variáveis, resultantes de processos de violenta desigualdade.

A vida social se altera quando as pessoas vivem atrás de muros, contratam seguranças, dirigem veículos blindados, portam porretes e revólveres, e frequentam aulas de artes marciais. O problema é que essas atividades reafirmam e ajudam a produzir o senso de desordem que nossas ações buscam evitar.

As sociedades abertas tornaram-se ansiosas e incompletas, devido aos impactos causados pelo que Bauman [1] chama de globalização negativa:

Uma globalização seletiva do comércio e do capital, da vigilância, da informação, da violência das armas, do crime e do terrorismo.

A sociedade aberta não condiz mais com a ideia de autodeterminação de uma sociedade livre que cultivava essa abertura. Tal sociedade encontra-se cada vez mais vulnerável e desamparada por essa globalização negativa, obcecada pelo controle de suas fronteiras e com a segurança de seus indivíduos.

O medo adquire um ímpeto e uma lógica de desenvolvimento próprios e precisa de poucos cuidados e praticamente nenhum investimento adicional para crescer e se espalhar.

Segundo Bauman, é a própria obsessão com a segurança que provoca o domínio e o controle, ambos ilusórios se observados por essa perspectiva, pois toma-se medidas unilaterais para problemas globais. No Brasil, podemos observar com muita clareza a militarização da vida nas grandes favelas como símbolo de securitização excessiva, de forma a proteger a ‘’vida civilizada’’ da barbárie.

O medo estimula as ações que fornecem motivação e energia para continuar se reproduzindo e se autoperpetuar. Os delírios globais produzidos pela ideologia dominante transformam-se em tática de controle político, começando pela condução das massas. Um dos maiores exemplos dessa produção de delírios foi a campanha antiterrorismo coordenada pelos Estados Unidos durante muitos anos.

Guerra ao terror

A campanha antiterrorismo ganhou um segundo corpo em 11 de setembro de 2001, quando ocorreu o choque provocado pelo ataque as torres gêmeas. Pudemos observar em todos os noticiários dos principais veículos de comunicação global na época, a exibição do acontecimento como uma tragédia histórica no mundo, sendo reprisado milhares de vezes.

Em torno da campanha de duro combate às forças terroristas, houve significativo aumento do aparato militar aliado a tentativa de consenso nacional junto a opinião pública para o favorecimento de um terreno fértil que permitisse a invasão ao Afeganistão.

De acordo com Noam Chomsky em Mídia [2], o terrorismo internacional começa oficialmente no ano de 1985, em meados do governo de Ronald Reagan. Nessa época, o terrorismo internacional era representado pelo mundo islâmico e pela América Central, em meio a um contexto de Guerra fria.

Nas palavras do Secretário de Estado da época, George Schultz, havia um câncer a ser extirpado do mundo: Um câncer similar a Hitler e o nazismo. [2]

Um fato curioso é que os inimigos afegãos do Talibã em 2001 eram, em meados dos anos 80, os guerreiros da liberdade organizados pela CIA e pelas mesmas forças especiais que os procuravam no Afeganistão no pós ataque às torres gêmeas.

Segundo a doutrina oficial, que é aceita quase por todo o mundo e descrita como justa e admirável, obviamente, os Estados Unidos têm o direito de conduzir uma guerra terrorista contra os afegãos até que eles entreguem os suspeitos aos Estados Unidos — que se recusam a apresentar provas ou solicitar sua extradição.

Atentado as torres gêmeas (2001)

Toda essa extração de energia retirada das ansiedades existenciais da população aumentou a popularidade e visibilidade dos terroristas. A população e a opinião pública precisavam se manter no campo da apatia, da obediência e da passividade diante dessas crises construídas pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos, para que essa energia extraída se transformasse em medo coletivo, resultando em um novo instrumento de cooptação política-ideológica.

Poucos anos depois, têm início a invasão ao Iraque, com Saddam Hussein sob a acusação de possuir armas nucleares preservadas no país. Essas armas nunca foram descobertas. Hoje em dia, o país é um estado falido por completo, sob domínio de saqueadores, organizações extremistas, etc.

O mundo islâmico tornou-se a personificação do mal na propaganda da guerra ao terror. Ele representava o homem bárbaro em ataque aos valores ocidentais, tentando ocupar seu espaço. Era necessário constituir fronteiras e se armar contra os bárbaros! Eis aqui a narrativa simbólica encontrada na síntese ideológica do movimento que sucedeu o ataque às torres gêmeas.

Redes de proteção, diásporas humanas

[…] o deslocamento do medo das fendas e fissuras da condição humana em que o destino é chocado e incubado para áreas de existência amplamente desconectadas da verdadeira fonte de ansiedade. Não é provável que qualquer quantidade de esforço investida nessas áreas consiga neutralizar ou bloquear a fonte, se mostrando assim impotente em aplacar a ansiedade, por mais cuidadoso e engenhoso que possa ser. É por essa razão que o círculo vicioso do medo e das ações por ele inspiradas segue em frente, sem perder nem um pouco de seu ímpeto, embora sem se aproximar de seu aparente objetivo.[1]

O novo inimigo, fruto dos efeitos causados pelas dissonâncias globais no século XXI, é o imigrante ilegal. Assim dizendo, ele é o refugiado.

Os refugiados, desprovidos de qualquer tipo de proteção estatal se encontram em constante situação de fuga, com dificuldade de encontrar pleno acolhimento. Suas vidas perpassam por estradas indefinidas de permanência em caminhos transitórios sem identidade, sem registro, sem visibilidade, dependentes de ajuda humanitária.

Podemos falar sobre as redes de proteção para exemplificar a relação neocolonial que Israel mantém com a Palestina desde sua fundação por exemplo, devido a ampliação do Estado de Israel após os conflitos pela independência daquela região dentre 1948–1949.

Após a vitória de Israel e a legitimação de seu estado, o povo árabe passa a não ter mais seu lugar, provocando uma série de dispersões para outras regiões, o que perdura até hoje. O símbolo crucial da soberania de Israel sobre a Palestina é o Muro da Cisjordânia, construído sobre territórios palestinos ocupados, delimitando fronteiras regionais.

Apesar das tentativas ocorridas de paz entre Israel e Palestina ao longo desses anos com o acordo de Oslo, os conflitos por Jerusalém se intensificam a cada ano que passa, e a luta pela reconquista da terra sagrada continua. O Estado sionista de Israel transformou a região da Cisjordânia em uma verdadeira zona de caos, com um forte complexo militar permeando-a por inteiro, reconhecido pelos Estados Unidos e Ocidente.

Muro construído na Cisjordânia para separar Israel da Palestina (foto: Davis Klavins)

Slavoj Zizek em Violência [3] é cirúrgico no tocante a questão palestina:

Por que seremos hoje mais sensíveis a essa violência? Precisamente porque, num universo global que se legitima através de uma moralidade global, os Estados soberanos deixaram de poder eximir-se a juízos de ordem moral, mas são tratados como agentes morais puníveis por seus crimes, apesar de continuar a ser discutível tanto aquele que exerce a justiça como o estatuto de quem julga o juiz. A soberania do Estado é assim severamente constrangida.

Em mais um capítulo da guerra ao terror implicada pelo ocidente, Israel representa os valores da modernidade ocidental com a democracia liberal e a Palestina ao longo do tempo tornou-se o símbolo do extremismo, do fundamentalismo religioso. Portanto, mais uma vez, é necessário que se mantenham políticas de proteção contra essa região (de acordo com a hipocrisia ocidental).

Zizek clareia nossas ideias quanto a questão palestina quando diz que o problema de Israel ainda é se considerar um estado pleno e vitorioso, apoiando-se na narrativa dos judeus como vítimas do Holocausto para legitimar uma política de potência.

Ao criarem seu próprio Estado, os judeus superariam a situação na qual a sua liberdade dependeria dos Estados da diáspora e da tolerância ou intolerância das respectivas maiorias nacionais. Embora esta linha de argumentação seja diferente da religiosa, tem de recorrer à tradição religiosa para justificar a localização geográfica do novo Estado. [3]

Dessa forma, o povo árabe expulso indiretamente de suas terras espalhou-se pelo ocidente em busca de refúgio, se transformando em um povo sem rosto, sem identidade, desesperados por permanência.

Como não se lembrar de Angela Merkel quando indagada por uma garota refugiada da Palestina que vivia a quatro anos na Alemanha sobre uma política de asilo concreta para refugiados, respondendo friamente que algumas pessoas teriam que voltar para seus países de origem devido a incapacidade de comportar todos que pedem asilo. A garota se debulhou em lágrimas e o vídeo tomou uma repercussão internacional.

Podemos lembrar também quanto ao caso dos refugiados afegãos em meados de 2001/2002 sendo levados por escolta da marinha australiana para uma ilha distante de qualquer tipo de sinal.

De acordo com uma matéria da BBC em 2002, o campo de Woomera era um dos cinco principais campos onde centenas de imigrantes esperavam que sua situação fosse definida pelo governo da Austrália.

Hoje, o governo australiano mantém campos de refúgio nas ilhas de Manus e Nauru. Até o final do ano passado, 541 pessoas foram reconhecidas como refugiadas dentro desses campos, que conseguiram estabelecer sua legitimidade a partir da declarada guerra ao terror em 2001 como forma de ação extraterritorial para comportar terroristas. Hoje, esses campos são utilizados como instrumento político de detenção para refugiados que pedem asilo, em sua maioria muçulmanos, revelando o caráter xenofóbico de uma política que viola os direitos humanos.

Quanto aos Estados Unidos, podemos observar uma política cada vez mais problemática de tolerância zero a imigração. O isolamento de imigrantes mexicanos em jaulas nas fronteiras com o país passou a ter grande repercussão em meados de 2018. Pais separados de seus filhos em condições degradantes como se fossem prisioneiros de guerra, foram reduzidos a um excesso de contingência para Donald Trump, que ainda luta pela construção de um muro para separar as fronteiras dos Estados Unidos com o México, assim como o muro que separa Israel da Palestina.

Em matéria recente do Globo (G1), tivemos acesso a um estudo da ONU que constatou o massivo número de 103 mil crianças retidas pela imigração dos Estados Unidos. De acordo com a matéria, os Estados Unidos foram o único país a não ter ratificado a Convenção dos Direitos da Criança (tratado da ONU), o que acaba dificultando a tentativa de denúncia e contenção de riscos em casos de violação de direitos humanos.

As políticas de securitização global são em seu caráter real, estratégias políticas de terra arrasada quando as observamos por uma perspectiva geopolítica. Depois de muitos anos, podemos enxergar o resultado disso com cerca de 70,8 bilhões de refugiados deslocados ao redor do mundo, sendo 5,5 milhões palestinos, fortalecimento de complexos militares por parte dos Estados Unidos, políticas unilaterais com fechamento de fronteiras, etc.

Os refugiados são indivíduos sem lugar, isolados do mundo ocidental, maior responsável pelas diásporas provocadas. Tornaram-se o novo alvo de ataques xenófobos por parte da extrema direita e do sistema neoliberal ao redor do mundo, são atacados como responsáveis pelas crises econômicas e sociais, responsáveis por tomar o lugar de cidadãos nativos no mercado de trabalho dentro dos países no qual encontram-se em situação de refúgio. Provocaram uma ‘’mancha’’ nas sociedades que acreditam viver sob a égide de uma identidade cultural superior, etc. Uma caça as bruxas repaginada.

Pela ótica interna dos estados, os indivíduos sentem-se cada vez mais desolados e com medo em relação ao estado e a política, sem esperança, sem perspectiva de futuro. Se o que a securitização como novo instrumento de poder ideológico queria era esse tipo de controle por amedrontamento e violação dos direitos humanos, o objetivo foi concretizado.

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