Entre o sonho e o golpe: A fragilidade da democracia brasileira

Marina Moreno de Farias
Revista Marginália
9 min readJun 27, 2019

Não a muito tempo se deu a Redemocratização que pôs fim ao cruel e pífio Regime Militar a imperar por mais de 20 anos no Brasil. Não a muito tempo a República veio através de um golpe militar; Não a muito tempo a Revolução de 1930 que depôs Washington Luís e colocou fim à República Velha, dando início à protagonização Varguista veio através de um golpe. São inúmeros e substanciais os eventos e convenções que consumam rupturas com o jogo democrático. Não apenas, são muitos os motivos e cenários que nos permitem traçar paralelos entre a fragilidade da democracia tempos atrás e a vulnerabilidade da soberania popular conquistada e mantida desajeitadamente de lá até aqui.

Nesse sentido, é importante que se faça uma análise e construção de cenários para entender porquê a jovem democracia brasileira está sempre coberta de fragilidades, exposta e constantemente sendo golpeada.

Assim, pensaremos no princípio: De onde vem a democracia? A ciência política nos diz que o regime que temos hoje vem de um Contrato Social entre homem (cidadão da sociedade civil, a quem não concerne os processos decisórios) e Estado (governo, composto por pessoas jurídicas e instituições). O contrato social talvez seja uma das ideias mais antigas depois da ideia grega de democracia (demo=povo / kratos=governo) e estabelece que, para que haja integração, paz e coexistência entre os seres humanos (que vivem em sociedade mas diferem entre si e portanto, assumem os riscos e as consequências dessas divergências) e o fim do Estado anômico de natureza humana (egoísta, temerosa do próximo e sem impedimentos morais), haja um Pacto Social. Esse pacto seria garantido pelo Leviatã, a quem seria concedida soberania para atuar em razão da segurança (primordialmente) dos cidadãos que assinaram o Contrato. Como não é possível que cada homem lidere a si mesmo e se represente no escopo dos Estados, houve a necessidade da escolha de alguns homens e de instituições para que o resto do povo seja liderado. Dessa forma, a democracia representativa consolida o Estado como Leviatã, garantidor não apenas da segurança hobbesiana, mas de elementos básicos para a vida, educação, saúde, transporte e tantos outros. Como base do avanço da representatividade governamental institui-se os Três poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário. Tais poderes deveriam ser independente mas harmônicos, e assegurar que haja de uma representatividade para o povo e pelo povo, ao invés de um absolutismo que atendesse aos interesses de um monarca.

Talvez more aí o pilar do equilíbrio do regime democrático: Os três poderes, composto daquele que cria leis, aquele que executa e aquele que julga, deveriam ser igualmente fortes e não interferir um no outro. O que acontece muitas vezes em jovens democracias com pouco apreço por esse tipo de regime é a grande interferência de um no outro, criando incertezas e solidificando a ideia de que quando um poder enfraquece, o outro se fortalece. Em que sentido se dá referidas interferências? Como é possível que, em instituições como essas, interesses privados sejam levados a cabo em detrimento dos coletivos dos quais esses ministérios deveriam representar? A chave para essa resposta não se encontra em um momento histórico apenas e nem é simples de explicar, mas podemos começar a entender de onde surge essa interferência como um dos princípios para o enfraquecimento das regras democráticas em processos estruturais que, via de regra, acontecem no Brasil.

O Patrimonialismo é um conceito cujo muitos autores se debruçam e pode ser esmiuçado em várias facetas, e é tão ambíguo que mostra-se utilizado para defender ou reprimir interesses díspares, indo de ambições de extrema direita à de extrema esquerda. Mencionado para explicar a falta de desenvolvimento nacional, a ausência de revoluções burguesas e tantos outros movimentos, o Patrimonialismo (produto direto da concentração de poderes) se refere, a grosso modo, na interferência privada e pessoal nos interesses estatais que deveriam estar inclinados ao público. Para autores como Raymundo Faoro, o Estado patrimonialista configura-se como resquício da não emancipação de Portugal, pelo fraco Renascimento e portanto, reivindicações revolucionárias suprimidas, que são trazidas para o Brasil no processo de Colonização. O princípio de soberania popular proposto por essa “falha” revolução é esmagado pelo caduco sistema de crença na origem divina do poder.

“O Estado, promotor de favores e de riquezas, foi entregue, junto com a Igreja, às classes altas, à numerosa e empobrecida fidalguia”(FAORO, RAYMUNDO. 2007 p.52)

“O pensamento político brasileiro, na sua origem, é o pensamento político português” (p. 46), ou dito de outro modo, o pensamento político brasileiro foi suplantado pela ação do estado patrimonialista, de base portuguesa”(ROIZ, DIOGO. 2010 p.301)

Faoro também se atém a versar sobre as dificuldades de distribuição do poder no Brasil, que ele designa como um país capitalista porém orientado por um patrimonialismo estatal.

“Os detentores do poder governam para os detentores do poder, excluindo os cidadãos”(FAORO, RAYMUNDO. 1991 p.27)

Aspectos como a modernidade só seriam possíveis se houvesse harmonia entre os interesses privados dos cidadãos e os interesses públicos comuns. A falta de um Estado com consciência de si (que mantém e preserva o interesse público) acaba por desencadear o desequilíbrio entre os interesses públicos e privados. Ou seja, há um desmonte de todos os projetos que requerem distribuição de poder para se efetivar, os quais não ocorrem justamente pelo sistema absolutista que dá margem para o patrimonialismo. Para Faoro, o fundamental é que a natureza das relações estamentais não são alteradas. Reconhece portanto, que no Brasil as elites utilizam do discurso liberal para seus próprios fins.

‘“A peculiaridade do pensamento político brasileiro foi tentar agregar o liberalismo sem ser adequadamente liberal e manter uma estrutura hierárquica desfavorável a alternativas democráticas”.(ROIZ;DIOGO.p.301;2010)

Muitos são os juízos que procuram compreender de onde vem o Patrimonialismo, alguns outros autores se referem ao passado feudal ainda não superado com a criação de uma burguesia nacional ao reduzir o papel do Estado a mero executor dos interesses das classes dominantes. Para outros, o poder político é exercido em causa própria pelo grupo que dominava a máquina política e administrativo, e derivava deste domínio seu poderio e riqueza.

Sérgio Buarque de Holanda por exemplo, usa outras bases para construir sua reflexão. Um dos princípios mais fundamentais na bibliografia de Holanda é o conceito de Cordialidade do homem brasileiro. Aquele que age “pelo coração”, abrindo caminho para as relações pessoais e excluindo o cumprimento de leis objetivas e imparciais. Em suas próprias palavras

“a lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, 9 virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro” (HOLANDA, 1995, p. 146).

Observa-se que os autores concordam ao afirmar que o Patrimonialismo é um dos impeditivos para a Industrialização e Modernidade, mas se contrapõem quando Holanda afirma que essa característica é quase que inerente do povo brasileiro e para Faoro, o Patrimonialismo surge dos fragmentos de Portugal incorporados no Brasil.

No que tange a Colonização, os portugueses seriam desorganizados em suas colônias, daí a time caracterização deles por Sérgio como “semeadores”: porque que jogam as sementes ao acaso. Para ele, desde o início do século XIX, o Brasil passa por uma crise da ordem tradicional para ordem moderna, isto é, passagem de um antigo molde agrário e patriarcal para a industrialização e democratização. No entanto, assim como propõe Faoro, indica que esse processo foi dificultado pelas heranças coloniais. O Patrimonialismo presente desde o início da colonização e até o fim do processo de descolonização impede, segundo Holanda, que alarguem-se as bases da civilização urbana industrial (que era necessária como sustentáculo para o desenvolvimento).

“Porque não se constituía um padrão de organização social fundado em relações impessoais, democráticas e racionais”(LIMA;2012.MARTINS;2012)

“Mesmo com o surgimento de novas políticas e relações econômicas, não cessa de existir os “vínculos de pessoa a pessoa”(HOLANDA. 1987. p.30)

ou seja, explicita-se as marcas do sistema patriarcal nas políticas públicas e principalmente, na Economia. O Brasil organizou-se desde sua construção, para atender interesses particularistas. Essa organização impede o equilíbrio entre os interesses públicos e privados. Essa falta de equilíbrio é reconhecida como um empecilho ao desenvolvimento pelos dois autores, mas para Faoro é produto da ausência da consciência de si em um Estado, quando para Holanda é a organização que vem desde a construção social colonial.

A confluência de interesses privado versus público se faz presente como falha na aplicação da democracia no aparelho estatal brasileiro em momentos como o Golpe de 2016 com o Impeachment de Dilma Rousseff, onde há a substituição de todo o processo eleitoral(e logo, de escolha do povo) por um processo a partir de votos de partidos. Esses votos se moldam dominados pelos interesses dos partidos políticos e das oligarquias as quais os seus representantes(ministros, deputados estaduais e federais etc) devem accountability, e não pelos interesses de quem os elegeu. Não faremos aqui a discussão do rompimento ou não do governo Dilma com as elites oligárquicas, mas deve se levar em conta que os votos(contra ou a favor) de atitudes golpistas(em um processo de impeachment pautado por ações que não configuram crime de responsabilidade) se consolidaram a reboque das oligarquias que em grande medida, possuem o poder de governabilidade do país.O golpe demonstra mais uma das tantas atuações a derrubar a democracia e dobrá-la para encontrar os interesses daqueles que no momento, detém o poder.

“Por sua vez, se a vontade popular ampla de todos os eleitores foi restringida pela vontade dos políticos e estas mais ainda pela vontade dos partidos e bancadas, percebe-se com isto como a democracia se fragiliza deixando de ser a vontade do povo para ser a vontade dos representantes do povo, neste caso, a vontade de todas as pessoas que elegeram os políticos e que não necessariamente estiveram de acordo com suas ações favoráveis ao impeachment como representante delas.’’(ARKHEPHYLOSOPHIA; 2016)

Para além disso, aspectos como a eliminação de inimigos também caracteriza um ponto importante na resposta que propomo-nos a responder: Por quê a democracia brasileira não funciona? Não funciona, adiante de muitas dimensões estruturais como o Patrimonialismo intrincado na organização da vida política, porque não há respeito pelo dissenso. A vontade do extermínio de qualquer um que represente um grupo aquém dos interesses dominantes(aqueles que se dizem contra a “Velha política” mas que na verdade são a sua própria face) se manifesta desde o gênese da República. O objetivo final dos que compete o interesse de manutenção do poder é, e sempre foi, destruir os que estes consideram inimigos de suas convicções: “pátria, liberdade, religião e propriedade”.

A precariedade da democracia brasileira traduz-se, ademais, nas soluções autoritárias e paternalistas para os problemas que surgem no seio da democracia.

“No Brasil alteram-se regras essenciais ao sabor das conveniências.”(GUTERMAN;MARCOS; 2015)

Assim, essa visão empresta a ideia autoritária de soluções simples aos problemas de difícil construção; não há uma investigação de reformas e mudanças políticas(como ocorreu em todas as revoluções e golpes) que alicercem as instituições, essas são pensadas para satisfazer os interesses particulares daqueles que possuem o poder de governabilidade.

Danilo Araujo:

Cabe ressaltar o papel de extrema influência nos rumos políticos do país por parte de elites tradicionais como a família Setubal e Villela (Grupo Itaú), dentre outros bancos. O Brasil está cercado por aristocracias desde a monarquia, que foram se constituindo com o decorrer de sua formação sócio-histórica, sejam os grandes escritórios de advocacia, os executivos de empreiteiras (Odebrecht, OAS, Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez), o mercado financeiro e organizações empresariais, até os poderes institucionais como o judiciário, polícia federal e MPF.

O patrimonialismo é um reflexo dessas correntes aristocráticas que determinam o modus operandi e a organização social, de modo a terem uma visão exclusivista do Estado como supremacia ética e moral para a continuidade do sistema. Isso se reflete em inúmeras ações do Judiciário por exemplo em casos de julgamento de cunho político.

Quando observamos o senso comum permear o imaginário da sociedade brasileira com a ideia de que a corrupção é o principal obstáculo para o pleno funcionamento da democracia brasileira, nos apegamos a uma figura clientelista de depositar a confiança de nossos problemas nas mãos de um gestor. E para isso, procuramos nos basear em sentimentalismos fetichizados na ação de um ou poucos indivíduos da vida política institucional. Fica aqui bem claro que a corrupção é o menor dos problemas para a democracia brasileira. Afinal, ela nunca foi sólida. No máximo, uma aristocracia moderna e diluída, sustentada pelos pilares de um Estado centralizador de interesses econômicos e corporativos.

Referências:

A República Inacabada (FAORO;RAYMUNDO.2007.Livraria Cultura;SP)

Os donos do poder (FAORO;RAYMUNDO. 1989)

Uma história do pensamento político e social brasileiro: entre o “estado patrimonialista” e a “ação das massas” (ROIZ;DIOGO. UFPR.GOIÂNIA;2010)

Raízes do Brasil (BUARQUE DE HOLANDA;SERGIO. 1987. p.30)

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