estupro. culposo.

Tayara Causanilhas
Revista Marginália
3 min readNov 4, 2020

tem dias que a sociedade me obriga a escrever.

Imagem: https://sportbuzz.uol.com.br/noticias/futebol/clubes-se-unem-e-pedem-justica-por-mari-ferrer-nas-redes-sociais-estupro-culposo-nao-existe.phtml

Não importa quem: denúncia de estupro.

Sério, não importa. Ela tem provas. Provas substanciais, provas inclusive biológicas (digo: esperma).

Ela tem provas.

Sério, não importa.

Ela tem provas e, com base nisso, judicializa o estupro que sofreu. Não parece, mas a justiça brasileira tem um tipo penal para isso.

De acordo com o Código Penal Brasileiro em seu artigo 213 (na redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009), estupro é: constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.

O que quer dizer: dá cadeia.

Ou deveria. Pois é.

Um processo criminal não é simples — não tem como ser. São duas partes e, via de regra, um objeto lesado muito delicado.

Quando é um estupro, o objeto lesado é uma pessoa. Geralmente, uma mulher. A integridade física está em jogo, não existe mais.

É preciso manter em mente, sempre, que existem procedimentos em qualquer processo: a justiça não é feita da cabeça de um juiz, mas, antes, é realizada por meio de uma série de protocolos cuja maior pretensão é a isenção — ainda que de mentirinha — daquele que julga.

O Brasil ocupa o 5º lugar no ranking mundial de Feminicídio (ONU-Direitos Humanos) e as maiores vítimas do feminicídio são negras e jovens, com idade entre 18 e 30 anos (UOL Atualidades- 2020).

A denúncia de estupro, embasada por provas, dá ensejo a um processo judicial. No dia da audiência, alguém sofre assédio moral. Violência psicológica. Ninguém deveria sofrer desses males numa corte judicial — onde a JUSTIÇA é a ordem do dia.

Quem sofreu foi a vítima.

Mariana, estuprada, foi exposta, foi violada, foi acusada — na sala em que seu estuprador deveria, em tese, confrontar as provas da violação que fez ao corpo virgem.

“O conceito de virgindade foi criado por homens que pensam que seus penis são tão importantes que mudam quem a mulher é” — Tradução livre

A justiça brasileira é volúvel: ela está sempre do lado que atende aqueles que, invariavelmente, detém o poder político. Os direitos, a pretensão de isenção, os procedimentos foram todos violados a partir do momento em que o juiz ouve a acusação assumir o papel de inquisição e oferece, apenas,

um copo d'água.

O estupro, aquele com provas e tudo, acabou tendo uma excludente de tipificação — não é bem que o moço não teve intenção de estuprar, mas a moça não é uma vítima confiável, isto é, não se pode dizer que ela estava realmente fora de si ou sem condições para dar o "sim" necessário antes de qualquer relação sexual.

A história do estupro culposo, veiculada de forma errônea por um jornal, apaga a verdadeira questão que alimenta o absurdo desse caso: o descaso da justiça frente àquela que deveria ser, no mínimo, tratada com zelo e igualdade. Sem méritos morais.

O papel do juiz é garantir, também, a racionalidade que permite a boa aplicação de direitos fundamentais: como garantias judiciais, dignidade e direito ao bom processo.

Não importa o que aconteça, existem dois gritantes erros de premissa:

  1. Ninguém mete em ninguém sem um "sim" explícito. — coisa que não foi argumentada pela defesa do acusado em momento algum;
  2. O comportamento de qualquer juiz é além da decisão: é preciso garantir os direitos de todos os lados, durante e depois do processo, para que se tenha de fato a justiça. — e nisso, vale dizer, não cabe violência psicológica dentro de audiência.

A Revista Marginália repudia o que aconteceu, hoje, no Brasil. O que acontece todos os dias.

Eu, Tayara, autora desse texto, em choque, escrevo em linhas breves um sentimento indescritível de insegurança, revolta, desolação e medo.

"Estupro culposo" — eu disse ao meu pai, também formado em direito

Não — ele me respondeu, sem ter acompanhado as notícias do dia

Sim, quer ver a notícia?

Não. Eu tenho duas filhas.

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Tayara Causanilhas
Revista Marginália

o caos acometeu e eu não deveria ficar acordada. aprende a viver agora, Tayara.