Globalização sobre Ruínas

Escassez do trabalho, democracia e subjetividades

Danilo Araujo
Revista Marginália
7 min readJul 29, 2019

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Cena inicial do filme ‘’Where is the Jungle?’’ (2015)

Um chileno vivendo na Amazônia e um índio vivenciando as mudanças tecnológicas e urbanas. A intersecção indireta entre a vida desses dois personagens no documentário ‘’Where is the Jungle?’’ (foto acima), representa os impactos da globalização no mundo pós moderno.

A desterritorialização do sujeito e a perda de identidade são características sutis que surgem como neutralizadoras do pertencimento humano a grupos, tribos, culturas, etc.

O sujeito enxerga-se diante de sua própria desterritorialização como um mero objeto cosmopolita, sofrendo os impactos de constantes colapsos semióticos caracterizados pela vida tecnológica, que destrincha fronteiras e aproxima a tudo e a todos.

A subjetividade no capitalismo global é como um rio que perde fluidez na correnteza e deságua em periódicos inócuos, das insanidades protocoladas aos corações sintetizados.

E quanto aos isolamentos? Da financeirização da vida à mercantilização dos corpos, são todos destoados pelo modo de funcionamento social nas sociedades capitalistas, da incompatibilidade dentro de valores dominantes e pressupostos de classe, ofuscados por uma mórbida manta de hierarquias.

Potências refreadas pelos excessos que geram ausências, uma permanente volatilidade, a flutuação do capital como entidade da desordem econômica.

O prolongamento da ação humana tornou-se tão eficaz que conseguimos produzir praticamente tudo em uma quantidade de tempo cada vez menor, transformando o modus operandi da vida social em uma máquina produtiva.

Porém, dentro de uma notória lógica de concentração de riqueza.

A globalização nada mais é que uma nova etapa de evolução do neoliberalismo no mundo ocidental, aquele velho travestido de novo. Afinal, a lógica capitalista permanece a mesma.

Frente a toda essa fragmentação de territórios, dolarização da economia, transnacionalização das empresas, planos de austeridade fiscal para os países do terceiro mundo, Milton Santos em seus trabalhos sobre globalização explicitava a importância de reconhecer a ‘’multiplicidade de fenômenos de baixo’’, ou seja, a utilização de instrumentos difundidos pela cultura de massa para a construção de formas de resistência pelas culturas populares..

Dessa forma, a ascensão do rap no Brasil nos anos 90, o reconhecimento cultural de identidades, a teoria da dependência e a busca de novos estudos almejando a emancipação da América Latina e Oriente frente ao mundo ocidental são alguns exemplos de micro e macro resistências dentro do sistema global.

Sobre a a situação concreta, é necessário falar um pouco sobre as condições do trabalho no mundo contemporâneo, a precarização da vida, e não obstante, a nova face do neoliberalismo no século XXI.

Fim do trabalho?

Os processos evolutivos do trabalho no capitalismo global tornam-se cada vez mais acelerados devido a criação de novas demandas, exigindo praticidade e eficiência, principalmente nos setores de serviços. No livro ‘’Os Sentidos do Trabalho’’, o professor Ricardo Antunes explica:

“O caráter transnacionalizado do capital e de seu sistema produtivo, a sua configuração local, regional e nacional se amplia em laços e conexões na cadeia produtiva, que é cada vez mais internacionalizada.[…]

[…] o mundo do trabalho e seus desafios são também cada vez mais transnacionais. Com a reconfiguração, tanto do espaço quanto do tempo de produção, dada pelo sistema global do capital, há um processo de re-territorialização e também de desterritorialização. Novas regiões industriais emergem e muitas vezes desaparecem, além de cada vez mais as fábricas serem mundializadas, como a indústria automotiva, onde os carros mundiais praticamente substituem o carro nacional.’’

A tecnologia do consumo que hoje alcança a todos através da propaganda com novos códigos semióticos, desenvolveu novas formas de atender seus consumidores, tendo hoje como seu maior expoente as empresas-aplicativo.

A demanda por consumo tornou-se tão alta que, empresas de telemarketing, do setor bancário, telefonia móvel, serviços para televisão paga, aplicativos como Uber, 99 Taxi, Ifood, Rappi, etc. passaram a ser indispensáveis para o consumidor global. Logo, os excessos por demanda exigem cada vez mais mão de obra.

Em países de terceiro mundo como o Brasil com o desemprego atingindo cerca de 13 milhões de pessoas, muitos estão optando por essa via de serviços, o que incide na precarização do trabalho devido a mão de obra barata.

No dia 08/05 foi possível observar em vários países do mundo uma poderosa reação às condições precárias de trabalho estabelecidas por parte dos aplicativos de transporte.

Estados Unidos, Reino Unido, França, Austrália, Nigéria, Quênia, Chile, Brasil, Panamá, Costa Rica e Uruguai foram palco de manifestações organizadas pelos trabalhadores protestando pela melhoria das condições de trabalho.

De acordo com uma matéria da Folha de São Paulo, os preços das corridas no dia das manifestações aumentaram, devido a paralisação geral. A ação foi vista como uma estratégia segundo os trabalhadores, visando persuadir os funcionários das empresas a não aderirem às greves. Essa flutuação de preços foi percebida em praticamente todas as cidades onde ocorreram os protestos.

Motoristas da Uber em concentração no Vale do Anhangabaú, São Paulo

As empresas globais de economia compartilhada são fruto das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTIC), baseadas no acesso à internet e a conexões em rede nos processos de trabalho. Com a crise econômica mundial de 2008, as empresas de aplicativo surgiram como uma forma de fomentar novas formas de lucro através das forças produtivas.

Com uma alta capacidade de armazenagem de dados e trabalho via algoritmos, os serviços passam a ser cada vez mais pressionados pelo atendimento rápido e eficiente, ao mesmo tempo em que atenuam-se pelas exaustivas rotinas de trabalho juntamente aos baixos salários.

‘’Segundo o IBGE, o Brasil tem cerca de 1 milhão de motoristas por aplicativos e 4 milhões de brasileiros prestam serviço utilizando plataformas como a iFood, Rappy, Loggi, dentre outras. Somadas, estas empresas seriam hoje as maiores empregadoras do país.’’

O aumento da informalidade resulta em uma escalada na quantidade de acidentes de trabalho. O acontecimento mais recente foi o falecimento do entregador do aplicativo Rappi Thiago de Jesus Dias, após passar mal enquanto fazia entrega em um bairro na zona oeste de São Paulo.

De acordo com o médico René Mendes, diretor científico da Associação Brasileira de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (ABRASTT):

‘’ As chamadas novas morfologias do trabalho, com a uberização da economia e com essas atividades hoje, é muito marcante e vai diluir e deixar invisível as gravidades do problema. As relações de trabalho vêm se modificando. E toda a estruturação da lógica do trabalho vem mudando. E todas essas iniciativas estão na contramão da lógica da saúde e da segurança do trabalho”

A globalização exerce uma dinâmica predatória sobre as relações de trabalho e a vida social, coberta por camadas de neutralidade quanto aos seus fluxos de atuação.

Ainda, segundo Ricardo Antunes, ocorre uma ‘’redução do trabalho vivo e ampliação do trabalho morto’’.

Inovação e Tecnologia

O empreendedorismo tornou-se a idealização da virtude humana em tempos de avanço tecnológico. O discurso empreendedor é sustentado pelo culto a excelência, a ideia de realização, eficiência e pensamento estratégico e inovador, que se manifestam em todos os campos da vida social, permeando os aparatos ideológicos (Estado, Igreja, Escolas, etc.), enaltecendo a individualização e os valores meritocráticos de superação e ‘’resiliência’’.

A construção de noções que resultem em uma visão administrativa e pragmática para que o Estado possa ser gerido, normaliza a concepção de política reduzindo-a a simples relações de eficiência e gestão, passando por permear o imaginário moderno das sociedades.

O discurso não é nada mais do que uma mera representação estética da ideologia neoliberal no mundo, propagada pelas grandes corporações por meio de palestras, vídeos, livros sobre ‘’metas para o sucesso’’, ‘’como se tornar um milionário’’, cursos online sobre investimentos e como operar em bolsas de valores, sustentados por plataformas de alta qualidade e muito bem desenvolvidas tecnologicamente.

Em relação a cultura de massa, a televisão exibe programas de reality show como Big Brother, MasterChef, Shark Tank, etc., que são exemplos de um tipo de entretenimento que normaliza a competição individual almejando chegar ao topo. E existe um topo a ser alcançado?

A aceleração dos processos econômicos e desenvolvimento de novas formas de comunicação muito mais rápidas e difusas facilitaram a capacidade de extensão da propaganda ideológica através da internet e televisão.

Os meios de comunicação digitais permitiram que fosse criado um verdadeiro mainstream hegemônico dos ‘’novos’’ valores da vida social, em simultâneo com os dispositivos de mercado e os mecanismos de atuação do poder financeiro, ampliados em uma escala global, livres de fronteiras.

Aonde está a democracia?

Um ponto no qual eu costumo tocar muito em diversos textos que escrevo, é a questão da despolitização das massas. As relações sociais mercantilizadas dificultam uma percepção cognitiva sobre o que busca a ser a política além de um mero modelo de gestão. Isso enfraquece as instituições públicas, que, acabam por ser pautar em relações patrimonialistas e utilitárias sobre o Estado e a sua atuação.

Já não se imagina mais outras formas de organização social participativa e coletiva além da ‘’gestão’’ e ‘’eficiência’’ que um Estado deve ter pela lógica empresarial. Todas as instituições, dessa forma, tornam-se empresas a serem administradas, seja na sua forma burocrática e ineficaz, seja no seu modelo privado e lucrativo.

Aqui nesse texto falo de forma mais crítica sobre os impactos da globalização sobre nós, que nos encontramos nas esferas do terceiro mundo. Acredito ser fundamental reconhecer a importância dos diversos atos de resistência frente a um projeto fracassado de modernidade, que está nos empurrando cada vez mais a uma condição distópica de vida.

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Danilo Araujo
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