Malandragem dá um tempo — O samba e o direito

Gabriel Costa
Revista Marginália
5 min readFeb 21, 2021
Bezerra, o malando do Morro do Galo

Bezerra da Silva foi um dos maiores sambistas do Brasil. De família humilde, o pernambucano, que trabalhou por muitos anos na construção civil, despontou no samba.

Até hoje, sucessos como Malandragem dá um tempo, A semente, Malandro é malandro e mané é mané, Meu bom juiz, entre outros, são marcos da nossa cultura popular.

Uma das principais características do sambista é a abordagem dos dramas cotidianos da classe trabalhadora, principalmente no que se refere ao abandono do Estado e dos conflitos com as autoridades policiais.

No samba “Malandragem dá um tempo”, Bezerra mostra que além do seu talento musical, também levava jeito pro Direito — embora a letra tenha sido composta por Adelzonilton Barbosa da Silva, Moacir Bombeiro e Popular P, em 1986.

O clássico refrão nos apresenta o enredo desenhado:

Vou apertar
Mas não vou acender agora
Vou apertar
Mas não vou acender agora
Se segura malandro
Pra fazer a cabeça tem hora
Se segura malandro
Pra fazer a cabeça tem hora

O cantor se refere ao uso de maconha, até hoje criminalizada no Brasil, embora com algumas alterações legislativas.

Nesse trecho, Bezerra se refere ao ato de “apertar”, ou melhor dizendo, preparar o cigarro de maconha, porém sem fazer o consumo da substância, já que “pra fazer a cabeça tem hora”.

É, você não está vendo
Que a boca tá assim de corujão
Tem dedo de seta adoidado
Todos eles afim
De entregar os irmãos
Malandragem dá um tempo
Deixa essa pá de sujeira ir embora
É por isso que eu vou apertar
Mas não vou acender agora

Mais adiante, Bezerra explica suas razões.

A “boca”, local onde é comercializada a maconha, está cheia de “corujão” e “dado de seta”, ou em uma tradução do carioquês atualizado, X9.

Seriam pessoas que poderiam denunciar os usuários para as autoridades policiais, o que poderia causar um grande problema.

Alô Malandragem, Maloca o Flagrante! — Vinil de Bezerra da Silva

É que o 281 foi afastado
O 16 e o 12 no lugar ficou
E uma muvuca de espertos demais
Deu mole e o bicho pegou
Quando os home da lei grampeia
Coro come a toda hora
É por isso que eu vou apertar
Mas não vou acender agora

E após uma repetição do refrão, chegamos na parte da música que pretendia abordar de maneira mais efetiva.

Quando Bezerra fala que o 281 foi afastado, ele se refere ao antigo Art. 281 do Código Penal, revogado pela Lei nº 6.368, de 1976.

A redação do artigo na época era o seguinte:

Art. 281. Importar ou exportar, preparar, produzir, vender, expor à venda ou oferecer, fornecer, ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, ministrar ou entregar de qualquer forma, a consumo substância entorpecente, ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacôrdo com determinação legal ou regulamentar:

Pena — reclusão, de 1 (um) a 6 anos e multa de 50 (cinqüenta) a 100 (cem) vêzes o maior salário-mínimo vigente no País.

Essa mesma Lei nº 6.368, que revogou o Art. 281 do Código Penal, trouxe em sua redação os Arts. 12 e 16.

Art. 12. Importar ou exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda ou oferecer, fornecer ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a consumo substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar; (Vide Lei nº 7.960, de 1989)

Pena — Reclusão, de 3 (três) a 15 (quinze) anos, e pagamento de 50 (cinqüenta) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa.

Art. 16. Adquirir, guardar ou trazer consigo, para o uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena — Detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e pagamento de (vinte) a 50 (cinqüenta) dias-multa.

A ideia é basicamente a mesma. A diferença é que com essa nova lei, o ordenamento jurídico passava a diferenciar o traficante do usuário, reduzindo a pena. Para o traficante, a pena seria de reclusão, de 3 a 15 anos, enquanto para o usuário, a pena seria de detenção, de 6 meses a 2 anos. A multa também era menor para o usuário, que pagaria de 20 a 50 dias-multa, enquanto o traficante teria que arcar com valores entre 50 e 360 dias-multa.

Ocorre que, voluntária ou involuntariamente, Bezerra retratou um princípio do Direito, chamado Princípio da Continuidade Normativo-Típica.

Se trata da hipótese em que, embora o tipo penal anterior tenha sido revogado, a lei que o revogou trouxe uma nova tipificação para mesma conduta.

Ou seja, a tipificação, que em termos práticos é o texto legal que descreve a conduta proibida, se manteve com outra forma na lei que entrou em vigor.

Esse princípio se difere do Abolitio Criminis, que é hipótese onde o crime realmente deixa de existir em nosso ordenamento.

E, por fim, Bezerra finaliza o samba com o refrão.

Agora, jurista ou não, Bezerra foi um grande teórico popular. A partir de suas letras, podemos refletir em diversos textos como esse, para explicarmos um pouco do Brasil.

A temática das drogas era abordada de maneira recorrente, sempre de maneira crítica, onde o sambista entendia — assim como a gente — que o uso não deve ser criminalizado.

Viva o samba, e viva Bezerra da Silva.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Decreto n.° 2.848, de 7 de dezembro de 1940, aprova o Código Penal Brasileiro. Diário Oficial da Republica Federativa do Brasil, Brasília, DF.

BRASIL. Lei nº 5.726, de 20 de outubro de 1971, dispõe sobre medidas preventivas e repressivas ao tráfico e uso de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica e dá outras providências. Diário Oficial da Republica Federativa do Brasil, Brasília, DF.

BRASIL. Lei nº 6.368, de 21 de outubro de 1976, dispõe sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica, e dá outras providências. Diário Oficial da Republica Federativa do Brasil, Brasília, DF.

FERREIRA, Mauro. Compositor de ‘Malandragem dá um tempo’ deu voz ao morro via Bezerra. G1, 12 de agosto de 2016. Disponível em: <http://g1.globo.com/musica/blog/mauro-ferreira/post/compositor-de-malandragem-da-um-tempo-deu-voz-ao-morro-bezerra.html>. Acesso em: 09 de fevereiro de 2021.

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