No Brasil, não existe consciência de classe sem consciência negra

Nassor Oliveira
Revista Marginália
5 min readNov 20, 2019
Ato reorganiza o movimento negro (1978) / Memorial da Democracia

É impossível tentar racionalizar a questão da base da pirâmide social brasileira sem entender que historicamente não somos um “proletariado industrial” , nem camponês, como os referenciados nas obras que inspiraram as grandes revoluções na Europa, mas que somos uma classe trabalhadora, ou ainda mais agravadamente uma classe trabalhadora marginalizada cujas raízes se encontram na história do país para onde convergiu o maior volume de negros escravizados por meio de tráfico, cujas conexões práticas com o contexto atual pode ser atestado por inúmeras estatísticas retiradas do último relatório do IBGE (2019):

  1. 64% dos desocupados são pretos ou pardos;
  2. Pretos ou pardos recebem menos do que os brancos independentemente do nível de instrução;
  3. Somente 29,9% dos cargos gerenciais são exercidos por pretos ou pardos;
  4. Pretos ou pardos representam 75,2% do grupo formado pelos 10% da população com os menores rendimentos;
  5. 44,5% dos pretos ou pardos vivem em domicílios com a ausência de pelo menos um serviço de saneamento básico;
  6. Pretos ou pardos têm 2,7 vezes mais chances de ser vítima de homicídio do que brancos;
  7. Mais da metade dos alunos pretos ou pardos estudavam em estabelecimentos localizados em área de risco em termos de violência;
  8. Apenas 24,4% dos deputados federais, 28,9% dos deputados estaduais e 42,1% dos vereadores eleitos são pretos ou pardos;

As pautas temáticas, identitárias, ou setoriais (chame como quiser) estão cada vez mais no centro dos debates em todo o campo progressista, seja sendo reconhecidas como centrais, seja como alvo de críticas que acreditam serem as questões econômicas acima de tudo o centro das lutas e que as pautas chamadas setoriais enquanto divisoras da classe trabalhadora. No dia 20 de novembro, desde 2003 é celebrado em território nacional o dia da consciência negra, e aproveitando o propósito original da data, observaremos a centralidade destas reflexões no avanço das lutas da classe trabalhadora brasileira.

Grande parte das organizações progressistas e da militância brasileira se organizam em torno de noções desenvolvidas há séculos, como as de classe social e consciência de classe. Essas noções, embasadas na teoria Marxista, reconhecem os diferentes lugares ocupados na estrutura social e na estrutura lógica de trabalho que envolve a exploração de mão-de-obra, o reconhecimento daqueles que atuariam enquanto exploradores, e o reconhecimento e unificação em luta dos que se situavam enquanto explorados.

Diante de todas estas constatações é impossível tolerar quem acredite sermos em qualquer circunstância “vitimistas”, mas também quem compõe o nosso campo não reconhecer diante de tamanha exposição a vulnerabilidade que falar em qualquer desigualdade sem considerar o racismo é não falar de Brasil, e sem encarar a nossa realidade, com suas peculiares particularidades, é impossível transformá-la.

As contradições entre o movimento negro brasileiro 2.0 e o marxismo

A frase de uma canção de Emicida, um dos grandes interlocutores em termos de representatividade midiática da população negra organizada, sintetiza a relação de suposto conflito entre o acúmulo tradicional que associa a luta do negro a luta de classes, representada na fala de Eduardo Taddeo, e a luta pela conquista individual de espaço, uma narrativa de ascensão individual no contexto do capitalismo, narrativa que encontra eco em iniciativas como o afroempreendedorismo, movimento black money, entre outros.

“Preto e dinheiro são palavras rivais”?

Fonte: Exibição Rock Content

Iniciativas que tentam inserir o negro no mercado de trabalho, que incentivam ou dão condições aos mesmos aquecerem o ecossistema das economias de suas regiões são constantemente comparados a iniciativas bilionárias e causadoras das disparidades que afligem surpreendentemente a própria população negra, por estarem associadas por muita das vezes a vertentes de inspiração no discurso do jamaicano Marcus Garvey.

Em 2019, 15 dos 2.064 bilionários do mundo são negros, mas quando negros periféricos assumem admiração por figuras de sucesso como Jay-Z que hoje alcançou essa marca, são severamente criticados, como uma lembrança de que “este não seria o lugar para ele”. É mais que notório que não é tornar poucos negros bilionários a solução para as desigualdades de raça no mundo, mas é perceptível o incômodo desproporcional que a existência de um negro nesses lugares de destaque causa, até mesmo na esquerda.

É impossível adotar uma postura que não enxerga raça quando nos debruçamos sobre a natureza da desigualdade do país, tendo em vista o fato de que o racismo não obedece ao dinheiro, e vai exigir que daqueles negros que ascendam socialmente o negligenciamento de suas origens, sua cultura e identidade, para que sejam assimilados. É importante salientar que representatividade importa sim, quando ela existe, nas palavras do baluarte do samba Jorge Aragão :

“Quem cede a vez não quer vitória

Somos herança da memória

Temos a cor da memória

Temos a cor da noite

Filhos de todo açoite

Fato real de nossa história

Se o preto de alma branca pra você

É o exemplo da dignidade

Não nos ajuda, só nos faz sofrer

Nem resgata nossa identidade”

(Jorge Aragão — Identidade)

Ter negros em posições de destaque no capitalismo não transforma a natureza excludente do mesmo, e ser “o único negro” dentro de um ambiente elitizado vai fazer diferença dependendo do papel exercido, se o de representação, hackeamento para compartilhamento com a comunidade de onde se saiu, ou apenas assimilação e silenciamento.

Ambas acepções são iniciativas legítimas e de agitação e disputa em um contexto desigual, mas para que possamos avançar é necessário adotarmos estratégias eficientes: Não é suficiente termos alguns destaques em um sistema projetado para esmagar a sua base, que ao mesmo tempo é sua maioria, assim como também não é possível exercemos a eterna “paciência negra” que senta sobre uma realidade que a oprime aguardando inertes por uma transformação organizada por grupos políticos que negligenciam a sua luta.

Referências

AGÊNCIA DE NOTÍCIAS DO IBGE. Pretos ou pardos estão mais escolarizados, mas desigualdade em relação aos brancos permanece. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/25989-pretos-ou-pardos-estao-mais-escolarizados-mas-desigualdade-em-relacao-aos-brancos-permanece>

BODART, Cristiano das Neves. O conceito de consciência de classe. Blog Café com Sociologia. 2018. Disponível em:<https://cafecomsociologia.com/consciencia-de-classe/ ‎>. Acesso em: 18/11/2019.

Meszáros, I. A teoria da alienação em Marx. Trad. de Isa Tavares. São Paulo: Boitempo, 2006.

Marx, K. Manuscritos econômico-filosóficos. Trad. de Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, [1844] 2004.

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Nassor Oliveira
Revista Marginália

Cientista Político I Colaborador na Revista Subjetiva e Editor na Revista Marginália. Instagram: @nassoroliveira