O Capital: Mulheres, acumulação primitiva e o desenvolvimento do sistema de capital.

Marina Moreno de Farias
Revista Marginália
7 min readJan 27, 2020
Imagem: Google

Em “O Capital: Crítica da Economia Política” de 1867, no Tomo I, Marx aborda os processos de produção do capital, explicando a fórmula(depois chamada Fórmula Marxiana DMD’¹) de acumulação infinita do capitalismo, as teorias da forma-valor e como se deu a “transição” da crises de acumulação no pós Feudalismo para a acumulação primitiva de capital. Esse volume é considerado por muitos o marco na teoria política marxista e portanto, da crítica ao capital. Muito embora não haja dubiedades da ciência e da compreensão de Marx quanto ao caráter violento do capitalismo, não foi até a construção e consolidação do Feminismo marxista que se fundamentaram as críticas à Marx por ter deixado de fora de sua análise o perfil das mulheres tanto no processo de acumulação primitiva de capital quanto nas estruturações e desenvolvimentos do capitalismo.

Já é claro, principalmente a partir de outros textos que escrevi aqui, como entendo como sujas as entranhas do capitalismo, das relações de trabalho e logicamente, de poder e dominação em que esse sistema se calcam. Para principiantes na teoria marxista, antes que passem à este texto, que se resume em uma crítica à falta da compreensão do ponto de vista das mulheres, suas posições sociais e suas liberdades na teoria marxiana, recomendo uma leitura mais simples para entender as relações socioeconômicas e a ótica do Materialismo Histórico sob o sistema capitalista(ver referências).

A exploração das mulheres no sentido do Feminismo marxista parte do princípio de que tanto as diferenças sexuais já existentes são utilizadas como forma de exploração dentro da lógica capitalista quanto como precisam ser reafirmadas e reconstruídas para que se possa legitimar as violências desse sistema. Para isso, é importante entender que mesmo as mulheres “donas de casa” não estão fora das relações capitalistas, e muito menos sua libertação poderia vir da ocupação de trabalhos fabris e industriais que eram abandonados pelos homens pelas baixas condições sanitárias e trabalhistas. As mulheres e sua subordinação às figuras patriarcais (quando essa era exercida pelo marido, o patriarca, e quando este homem criava um guarda-chuva patriarcal familiar, onde anos mais tarde quando morresse, o filho homem se tornaria o patriarca da casa. Nesse sentido, a mulher está sempre submissa à alguma figura e à autoridade de dominação e poder do Patriarcalismo).

Da mesma forma, o serviço de casa desempenhado por muitas mulheres, mesmo que encurtado pelos esforços do pós Guerra, continuavam desempenhando funções na lógica capitalista, na medida em que o capitalismo também depende do serviço doméstico para se consolidar. Por isso, não é a exclusão das mulheres da produção e do sistema de acumulação primitiva de capital que leva à submissão. A submissão, a violência e a exploração das mulheres estão intrinsecamente ligadas ao desenvolvimento do capitalismo em todas as suas fases; ela resulta deste sistema e não o contrário

Em um texto da Revista, nosso companheiro Leonardo Coreicha menciona esse processo de violência e dominação da mulher como resultantes da expansão do capitalismo, onde diz:

A propriedade privada da terra muda drasticamente a relação do homem com a terra. E, ainda mais, a relação do homem com a mulher. Onde prevaleceu a propriedade comunal ou tribal, a dominância masculina não foi preponderante, como entre Vikings ou Celtas, onde mulheres tinham participação política, clériga e militar.

Mas onde a propriedade privada da terra prevaleceu, tanto no Ocidente como no Oriente, as mulheres foram submetidas a um processo de reificação, se tornaram coisas anexas à propriedade, assim como seus filhos e os escravos (homens desprovidos de direitos).

Se as relações sociais entre homens e mulheres só se torna agressiva como hoje a partir da expansão da propriedade privada, da financeirização do capital, do fortalecimento de distinções naturais para a construção da dicotomia dos sexos, então é possível implicar que o capitalismo é responsável pela reafirmação e construção das divisões que causam e aumentam as violências de todo o tipo hoje empreendidas contra o sexo feminino.

A primeira oposição de classes que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher, na monogamia e que a primeira opressão de classe coincide com a opressão do sexo feminino pelo masculino. Engels (s/d, p. 72)

Diante disso, podemos começar a entender a necessidade de uma compreensão do ponto de vista feminino diante da realidade concreta tanto nos anos em que se começou a se preocupar com a violência do desenvolvimento (e aqui digo todas as suas fases) do capitalismo quanto agora, onde os processos de acumulação perpassam consumo e produtos, mas atingem seu auge por métodos de financeirização.(para mais sobre os ciclos de acumulação capitalista, existe na Revista um outro artigo meu discorrendo mais sobre essa lógica, e indicações mais profundas de leitura aqui).

Em “O Calibã e a Bruxa”, Silvia Federici nos convida a mergulhar mais fundo quando diz que não há natureza democrática no capitalismo porque o compromisso do livre mercado com o barateamento dos custos de produção “exige o uso da máxima violência e da guerra contra as mulheres, que são o sujeito primário dessa produção”. Essa afirmação serve para levantar, e em seguida responder aos questionamentos do porquê depois de anos de sistema capitalista, as divisões e violências de gênero aumentaram de maneira profunda. Por que o capitalismo promete riqueza e liberdade e entrega na bandeja miséria e múltiplas formas de violência de gênero, de raça e de classe?

Assim como a divisão internacional do trabalho, a divisão sexual foi, sobretudo, uma relação de poder, uma divisão dentro da força de trabalho, ao mesmo tempo que um imenso impulso à acumulação capitalista. […]As vantagens que a classe capitalista extraiu da diferenciação entre trabalho agrícola e industrial- celebrada na ode de Adam Smith à fabricação de alfinetes- atenuam-se em comparação às extraídas da degradação do trabalho e da posição social das mulheres.

É sempre vital reafirmar, no entanto, que essas violências e formas de controle do corpo da mulher são intensificadas nas mulheres negras, pobres e periféricas. É impossível fazer uma crítica séria e dura ao capitalismo sem perpassar raça e classe, portanto, temos que buscar entender que se quisermos atingir a libertação do sistema patriarcal e capitalista, só podemos fazê-lo ao discutir também-ou talvez principalmente- o papel da mulher negra nesses espaços e relações. Para isso, torna-se necessário pensar que o capitalismo e a exploração de classes é o denominador comum entre todas as violências estruturais vividas desde séculos atrás até hoje.

A acumulação primitiva foi, sobretudo, uma acumulação de diferenças, desigualdades, hierarquias e divisões que separam os trabalhadores.(FEDERICI, SILVIA)

Se a realidade material (Infraestrutura) é onde se constroem tais processos violentos, então só a superação do sistema de capital e portanto, da estrutura social do sistema econômico do capitalismo pode oferecer a tão desejada libertação às mulheres.

A superação do trabalho doméstico passa pela superação do capitalismo e, com ele, a abolição das classes sociais.(COREICHA, LEONARDO: O trabalho doméstico; da família à escravidão.)

O feminismo marxista nos diz então algo que Marx falhou em dizer: a emancipação da mulher vem da emancipação do capitalismo. Não com os ideais liberais de consciência de que é oprimida(embora essa premissa também seja verdadeira), mas com a consciência de que sua opressão é resultante de um sistema de opressão e luta de classes. Não apenas, essa consciência têm de ser coletiva e não individual.

Se é verdade que a produção de uma população sem direitos e a criação de divisões dentro da força de trabalho global são condições-chave para o processo de acumulação, então o horizonte de nossas lutas deve ser uma mudança sistêmica, já que precisamos excluir a possibilidade de um capitalismo com rosto humano.(FEDERICI, SILVIA)

Se a realidade material molda a consciência dos homens, como Marx disse que ocorria, então a realidade material da exploração de gênero gerada pelo desenvolvimento do sistema capitalista têm de criar a consciência de classe na classe proletária para que, com mudanças de processos estruturais e sistêmicos, seja possível transformar a realidade.

É, portanto, impossível associar o capitalismo com qualquer forma de libertação ou atribuir a longevidade do sistema à sua capacidade de satisfazer necessidades humanas. Se o capitalismo foi capaz de reproduzir-se, isso se deve somente à rede de desigualdades que foi construída no corpo do proletariado mundial e à sua capacidade de globalizar a exploração.(FEDERICI, SILVIA)

Referências:

ENGELS, F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Escala, s/d.

FEDERECI, S. O Calibã e a Bruxa. 2004.

(COREICHA, LEONARDO: O trabalho doméstico; da família à escravidão.)

A resistência da utopia nos séculos do capital — Revista Marginália

¹A expansão material e financeira geram juntas o ciclo sistêmico de acumulação (chamada na fórmula de Marx de DMD’)

Expansão financeira, na definição de Arrighi: Massa crescente de capital monetário “liberta-se” de sua forma de mercadoria e a acumulação prossegue através de acordos financeiros. Fórmula marxiana: DD’

Expansão Material, na definição de Arrighi: Capital monetários coloca em movimento uma massa crescente de produtos nas fases de expansão financeira; A ECM (Economia Mundial Capitalista) funciona em uma sequência sistêmica de acumulação (ver ARRIGHI, 1996), operando em fases de mudanças contínuas, que seguem via única, alternando-se com fases de mudanças descontínuas de uma via para a outra.

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