O Massacre de Altamira e o silenciamento do sujeito carcerário: um ensaio sobre o sistema prisional brasileiro

Marina Moreno de Farias
Revista Marginália
7 min readAug 19, 2019
Imagem: BBC

Situado em Altamira no Pará, o Centro de Recuperação Regional (CRRALT) foi palco de uma rebelião e um incêndio criminoso que deixou um saldo de 57 mortes na segunda-feira (29 de julho deste ano) e mais quatro mortes por asfixia em um caminhão-cela durante uma transferência para Belém. Do total de 62 prisioneiros, 26 aguardavam julgamento de seus casos, ou seja, eram presos provisórios. A causa mortis varia entre asfixia e decapitação. Desde o Massacre do Carandiru, onde uma incursão da Polícia militar de São Paulo resultou na morte de 111 detentos em 1992, Altamira é a maior chacina dentro de um mesmo complexo prisional no Brasil.

Diretamente, o início do conflito se deu por guerras entre facções rivais, mas não podemos nos escusar de pensar em como esta poderia ter sido evitada pelos agentes do Estado. Fruto de um acordo com a mesma concessionária responsável pela hidrelétrica de Belo Monte, a Norte Energia, a unidade foi construída em tempo recorde com restos de contêineres, possuía número reduzido de agentes penitenciários e caracterizava-se por sua superlotação. Além disso, há evidências de que o ataque era previsto (já que o Comando Vermelho estava atuando sobre as regiões do Sul do Pará, controladas pelo Primeiro Comando da Capital (PCC), que havia se aliado ao Comando Classe A).

Em muitas produções jornalísticas e acadêmico-científicas é possível encarar duras críticas ao sistema prisional brasileiro — que notoriamente se corrói a cada dia- mas é preciso ir além. Ir além no sentido de começarmos a entender de onde surge o descaso, de onde surge o ódio, de onde surge o silenciamento e a violência sistêmica nas quais o sistema carcerário brasileiro está fincado. Entendemos por falho sistema prisional a não eficiência e o fracasso em corrigir e recuperar indivíduos para que sejam recolocados na sociedade, mas está a falha somente no sistema que prende pessoas e as priva de suas liberdades individuais? Por mais que seja pertinente a discussão sociológica da lógica das prisões em si e por mais que sejam louváveis os esforços para tentar encontrar outras saídas que não o punitivismo para a resolução de crimes, é substancial nesse momento e espaço a discussão de como essas prisões ocorrem no Brasil e o que acontece com os sujeitos encarcerados.

Nesse caso específico, não só o incêndio criminoso realizado pra tentar atenuar o motim é importante, mas o silêncio post mortem por parte da sociedade civil e do governo vigente. O incêndio criminoso pois nos traz uma reflexão séria: quem é passível de morte? Todos acompanhamos os assassinatos, os latrocínios, as balas perdidas e o ciclo infindável de violência que parece eterno no Brasil, mas essas mortes são choradas. Com exceção de quando a bala perdida vem de policial. Com exceção de quando o assassinato é de vereadora negra defensora de Direitos Humanos. O que grita aqui é: as mortes corriqueiras são sujeitas a assunto na fila da padaria, a discussão nas salas de aula, a post de luto no Facebook e a política pública por parte do Governo. O cenário abruptamente muda quando quem morre é vida precária, é corpo dissidente, é desmerecedor de dor e de justiça na visão do outro. É aquele que é passível de violência, de morte e de silêncio.

É essa a imagem que a mulher ainda jovem, cabelos pretos e traços que marcam uma ascendência indígena e também negra tem na cabeça. Naquele momento, ela ainda não sabe se o seu irmão, de 20 anos, tem todos os membros no lugar. Ela ainda não sabe se a cabeça da pessoa que ama está no mesmo corpo que os braços. Também não sabe se os braços estão perto das pernas. Ou se não é nada disso. Se ele morreu queimado, se o corpo jovem do irmão com quem cresceu é uma massa carbonizada em meio a outros corpos de irmãos, pais, filhos. Gente.

Ela grita. Junto com ela está sua mãe. A mãe do jovem de 20 anos. Ela gerou e carregou no útero por nove meses aquele que agora ela não sabe se terá que procurar a cabeça ou adivinhar qual é a carne da sua carne em meio à massa de corpos incinerados. Ela é mãe e não sabe se o último suspiro do filho foi dado na dor excruciante de ter a cabeça decepada ou na dor excruciante de ser asfixiado enquanto o corpo incendiava. Ela não quer, mas não consegue evitar de pensar se ele demorou a morrer, e reza para que tenha sido rápido

(BRUM, ELIANE;EL PAÍS, 2019)

Nesse sentido, o Estado brasileiro executa um papel importante ao permitir que 62 homens, primeiro em um prédio do Estado e depois em um veículo do Estado, morram. E outro talvez mais importante ainda pois é ele que garante legitimidade à essas brutalidades: o de diminuir a figura do sujeito carcerário, do sujeito negro e favelado (como era a maioria dos mortos no morticínio de Altamira). Ao diminuir essas vidas humanas à meros “criminosos”, garante-se a dominação e por consequência, a violência. Só a desumanização permite a violência e o silenciamento do corpo e da vida, afinal, se o outro sujeito é um “animal”, um “bandido”, uma figura maldita que só pode me fazer mal, então está tudo bem que o Estado (que deveria, por princípio moral e por dever constitucional, proteger todos os cidadãos, sem exceção) o mate. E o faça sem anúncio, sem escândalo e sem culpa.

Será possível que algumas vidas sejam consideradas merecedoras de luto, e outras não? Matar é o ápice da desigualdade social.(BUTLER, JUDITH)

O processo de legalidade dessas prisões e mortes também se encontra no mecanismo de adaptação à ordem vigente, garantida por uma retórica de que quem não se enquadra nos nichos socialmente requeridos está inserido no crime, na condução de atividades ilegais e portanto, sua vida não tem validade alguma. É criada uma configuração na qual não existe respeito pela vida humana e sim pela figura que esta representa, sendo assim, as figuras representadas pelos corpos marginalizados não importam. As ferramentas do Estado, principalmente na gestão de Jair Bolsonaro na condução de posturas truculentas e bárbaras de força policial só dilatam a estrutura violenta que vivem os moradores de áreas periféricas, fazendo com que, já em uma conjuntura não propícia para construções de arte, de cultura, de lazer e até das necessidades mais basilares, a vida seja um fardo.

Dizer que uma vida é precária exige não apenas que uma vida seja apreendida como vida, mas também que a precariedade seja um aspecto daquilo que é apreendido no que é vivo. Construído de forma normativa, estou argumentando que deveria haver uma maneira mais inclusiva e igualitária de reconhecer a precariedade, e que isso deveria tomar forma como política social concreta em relação a questões como moradia, trabalho, alimentação, cuidados médicos e status legal.

(BUTLER,JUDITH)

Essas vidas, até agora sem nome (o que é bastante simbólico) são portanto, matáveis e não passíveis de luto. Não passíveis de luto a partir do momento que não se sabe informar qual corpo assassinado é de quem. A partir do momento que não se tem nome. A partir do momento que o Presidente da República faz chacota com essas mortes. A partir do momento que suas mães não conseguem identificar os corpos, não podem se despedir. A partir do momento que há a condução por parte do Estado de informações por estatísticas: assim se perde toda dignidade, toda humanidade da vida de quem se foi. A partir do momento que não são merecedoras nem de luto.

Dentre todas as violências possíveis, a omissão talvez seja a forma mais perturbadora, porque é silenciosa e permite que os estragos perdurem por anos.

(VELOSO, AMANDA;2016)

Por fim, o sistema carcerário brasileiro impede qualquer ser humano de se integrar novamente à sociedade, e desencadeia a remoção da humanidade à essas parcelas da população, além de lançar às sombras a verdade de episódios cruéis como esse. Em suma, talvez a normalização de operações violentas pelos agentes do Estado no Brasil seja a face mais insensível do nosso sistema prisional, onde os sujeitos carcerários temem por sua própria vida enquanto inseridos neste.

É bem claro a necessidade de “reaparecimento” do corpo e da memória desses sujeitos, para que possam ser garantidas os direitos mais elementares da vida. A morte dessas pessoas não é só da matéria, mas das formas mais variadas de existência, de diferentes caminhos que poderiam ter sido seguidos, de diferentes narrativas enquanto cidadãos e enquanto pais, filhos, amigos, amantes. Para esses 62 homens, independente do que tenham cometido ou deixado de cometer, nunca haverá a chance de novos horizontes, de novas escolhas, de perdão e de status de humanidade.

Que não esqueçamos a crueldade que o Estado brasileiro é capaz, que possamos lutar com todo o vigor para que se façam construções outras e para que esses corpos não sejam mais matáveis. Que possamos respeitar a vida humana em toda a sua forma e atuar para que o Estado possa empreender novos caminhos na façanha de proteger seus cidadãos — uma que não seja a morte, a violência e o silenciamento.

Referências

As crianças de Altamira: O massacre dos inocentes nos denuncia na mais violenta cidade amazônica(BRUM, ELIANE; EL PAÍS, disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/08/14/opinion/1565799016_403909.html)

O Holocausto Brasileiro e os estragos irreparáveis do silêncio.(VELOSO, AMANDA; HUFFPOST BRASIL, disponível em: https://www.huffpostbrasil.com/2016/11/09/o-holocausto-brasileiro-e-os-estragos-irreparaveis-do-silencio_a_21700120/?ncid=other_facebook_eucluwzme5k&utm_campaign=share_facebook&fbclid=IwAR1ISynHRAv4aPD2DuvU0fg6QrQs7qm3_XcJilpJlxM2fV4e0ygdsh353gw)

Bodies That Matter. (BUTLER, JUDITH,1993)

Judith Butler: Precariousness and Grievability — When Is Life Grievable?(VERSO 2015, disponível em: https://www.versobooks.com/blogs/2339-judith-butler-precariousness-and-grievability-when-is-life-grievable)

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