O novo Coronavírus e a última crise do capitalismo? Alternativas para um mundo pós-pandemia e pós-capitalista.

Marina Moreno de Farias
Revista Marginália
9 min readMar 31, 2020
Imagem: REUTERS/Aly Song

Esta é uma coluna de opinião.

Coronavírus é uma família de vírus que causam infecções respiratórias. O novo agente do coronavírus foi descoberto em 31/12/19 após casos registrados na China. Provoca a doença chamada de coronavírus (COVID-19).

Os primeiros coronavírus humanos foram isolados pela primeira vez em 1937. No entanto, foi em 1965 que o vírus foi descrito como coronavírus, em decorrência do perfil na microscopia, parecendo uma coroa.

A transmissão acontece de uma pessoa doente para outra ou por contato próximo por meio de:

O toque do aperto de mão é a principal forma de contágio; Gotículas de saliva; Espirro; Tosse;Catarro; Objetos ou superfícies contaminadas como celulares, mesas, maçanetas, brinquedos e teclados de computador etc.(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2020)

Desde os primeiros casos na China, o Coronavírus vem adentrando nossas sociedades, primeiro com negligência por parte de autoridades governamentais mas sempre com seriedade por parte da comunidade científica e da pesquisa, que já vinha alertando as comunidades sobre as possibilidades de um novo vírus. Com o aumento do número de casos, o rápido contágio e a declaração do status de Pandemia pela Organização Mundial da Saúde, o tom ficou mais sério, fazendo com que o COVID-19 se tornasse além de uma crise sanitária e de saúde global, uma conjuntura de crise econômica e política internacional, de maneira que inúmeros líderes internacionais têm adotado medidas extremamente diferentes das usuais, tanto para tentar conter o contágio do vírus quanto para manter suas sociedades economicamente produtivas.Tais atitudes provocam um questionamento: estaria a ordem econômica internacional mudando?

A partir de uma análise marxista de economia política, pretendo argumentar que, apesar de claramente agravar as discrepâncias socioeconômicas da sociedade internacional e nos guiar a uma possível crise do capitalismo e sua globalização, o coronavírus não é o causador da crise. Com efeito, foi o capitalismo e sua estrutura de exploração do trabalhador e desigualdades que possibilitou o espalhamento em proporções pandêmicas do vírus.

É importante ressaltar, portanto, para o propósito deste texto, o caráter e algumas características do sistema capitalista, mesmo que de forma infinitamente mais básica do que o desejado. Em Marx, as organizações sociais do capitalismo se dão entre a acumulação material e as forças produtivas, onde os produtos do trabalho tomam forma de mercadoria. Mercadorias são feitas, como assinala Smith*, para serem trocadas no mercado. Nesse sistema, o burguês é dono da propriedade privada dos meios de produção e dono(enquanto durar o emprego/serviço) da força de trabalho do trabalhador. Esse trabalhador troca sua força de trabalho, que produz produtos ou serviços utilizando-se dos meios de produção do burguês. Ao utilizar-se do trabalho do proletário, o burguês adiciona um valor novo ao produto final. É este valor que é repartido entre burguês e trabalhador. O burguês transfere ao trabalhador parte do valor que este produziu, sob forma de salário, e se apropria do restante sob a forma de mais-valia. Se o sistema capitalista se dá a partir da exploração do trabalho do proletário, da sua alienação quanto ao que produz e tão logo ao enriquecimento do burguês, então o sistema capitalista depende da divisão e da exploração de classes. Essa estrutura nas últimas décadas se transformou em acumulação primitiva de capital para acumulação de capital, por meio de processos de financeirização, sempre sem deixar de ser capitalismo.

Dito isto, demos nosso pontapé inicial para entender como classe e capitalismo, e, portanto, as crises decorrentes desse sistema, estão diretamente envolvidos com o novo Coronavírus. Desde que o capitalismo é o sistema econômico, social e cultural predominante, e principalmente com a financeirização do capitalismo e a adoção do pacote Neoliberal, as condições de vida do proletário mundial se deterioraram. Podemos mencionar a falta do acesso à saneamento básico, à rede de abastecimento de água, à autonomia alimentar. Podemos falar de sucateamento dos serviços públicos: transporte, saúde, educação, formalização do trabalho. Pode-se mencionar a degeneração dos direitos previdenciários, dos direitos reprodutivos das mulheres. No espectro internacional, podemos mencionar o sistema privado de saúde norte-americano e a falta de acesso da maioria da população, a ausência de legislação trabalhista que permita o isolamento social e/ou o salário em caso da doença. Todas essas características, medidas, programas ou ausência destes existem muito antes da pandemia do COVID-19, e afetam trabalhadores no mundo todo muito antes do COVID-19, todos processos impostos pela manutenção do sistema capitalista que não pensa em Estado de bem-estar social, que não pensa em socialização dos meios de produção na mão dos trabalhadores, em sistemas de saúde universais gratuitos para todos, que não pensa em um mínimo de dignidade humana para a maior parte da população mundial.

Sem essas medidas e problemas já existentes nos nossos mais variados sistemas, seria muito mais simples lidar com um vírus, por mais contagioso que ele pudesse ser. Com segurança econômica, todos poderiam ficar em casa. Sem medo de esperar pela morte sem um teste porque a pesquisa é financiada, todos seriam testados. Com autonomia alimentar e quebra de um sistema de produção de animais em escalas industriais, talvez ninguém estivesse comendo carne ou não estivessem comendo carne mal produzida(de galinha, de boi, de peixe e não apenas animais exóticos usados para justificar o racismo com o povo chinês). Esse modelo de organização social que cria desigualdades sociais, baseado no modo de produção capitalista, é portanto, o sustentáculo para as diferentes formas pelas quais as pessoas são impactadas pelo vírus, e até pelo seu espalhamento.

Diante disso, existe uma narrativa reforçada nestes tempos, principalmente pela grande mídia e por celebridades (inter)nacionais de que o vírus é “democrático” e atinge todos da mesma forma. Quem ainda não leu “Estamos todos juntos nessa” de um influencer milionário no Instagram? No entanto, esse engodo só serve para corroborar o discurso fascista falacioso de que não existe divisão de classes nem diferenças entre nós; existem sim, a diferença é como o sistema capitalista opera: a roda não pode parar de girar, mas quem gira a roda?

“A economia política oculta a alienação na característica do trabalho enquanto não analisa a imediata relação entre o trabalhador (trabalho) e a produção.É evidente, o trabalho produz coisas boas para os ricos, mas produz a escassez para o trabalhador. Produz palácios, mas choupanas para o trabalhador. Produz beleza, mas deformidade para o trabalhador. Substitui o trabalho por máquinas, mas encaminha uma parte dos trabalhadores para um trabalho cruel e transforma os outros em máquinas. Produz inteligência, mas também produz estupidez e a cretinice para os trabalhadores.”(MARX, 2001, p.113)

Se existem claras e evidentes desigualdades nas condições de vida entre a classe trabalhadora e a burguesia, como o vírus e suas consequências seriam iguais para todos? ? O novo coronavírus, ou qualquer outra questão que abale o sistema capitalista trará óbvias consequências diferentes para quem está em classes diferentes — quem está mais propenso a se contagiar? O trabalhador que precisa pegar quatro ônibus lotados todos os dias ou um CEO de empresa privada que participa de reuniões online? A pandemia do Sars-Cov-2 e a estratégia de combate ao vírus não criou uma crise socioeconômica, mas exacerbou uma realidade já conhecida há muito tempo na política internacional: a luta de classes, a mais-valia, a exploração do trabalhador.

É importante ratificar, porquanto, que os abismos nas condições de vida entre Burguesia X Proletariado sempre existiu e sempre existirá enquanto existir capitalismo. O que crises globais e até fenômenos naturais como a chuva ilustrada pelo filme Parasita fazem é agravar ainda mais esse quadro de exploração e de desigualdade, gerado pela estrutura capitalista de exploração do trabalhador e luta de classes.

Diante da saturação do capitalismo aliada à crise sanitária e política do coronavírus, bancos contam com a mais veloz iniciativa de intervenção estatal para reerguer seus impérios. Grandes empresas pedem que seus funcionários continuem trabalhando enquanto se escondem em suas mansões, utilizando-se do valor acumulado da mais-valia do trabalhador para manter seu direito de ficar em casa diante de uma pandemia global: o trabalhador não tem o mesmo direito. Autônomos lutam e se mobilizam politicamente pra conseguir pequenas vitórias diante dessa conjuntura, já que, não saindo para vender o almoço de dia, à noite não podem jantar. Ministros, deputados e senadores podem se utilizar da tecnologia para trabalhar de forma remota, com seus salários pagos e no conforto de suas casas. Não se pode dizer o mesmo do presidente da República: este, com seu porte atlético anda por aí sem medo da “gripezinha” que já matou mais de 28 mil pessoas(alerta de sarcasmo). Quem pode trabalhar de casa, lava as mãos por vinte segundos e só sai às ruas para as compras essenciais. Para quem mora na favela e não recebe abastecimento de água por três semanas, o que resta é rezar. Hospitais sucumbem diante do número de pessoas e poucos recursos.

Ainda assim, há quem peça para voltar para as ruas: afinal, a economia não pode parar. Mas pedem fazendo carreatas, dentro do conforto de seus carros, de onde depois se locomovem para suas casas. Se a economia não pode parar, se os comércios não essenciais podem abrir e se os trabalhadores podem agir como se o mundo fosse agora o mesmo que era dois meses atrás, então por que não fazem seus protestos em formato de passeatas? Todos juntos, grudados uns nos outros? Se o isolamento vertical é a saída, então por que os milionários, os empresários, CEOs e o Presidente não colocam seus familiares idosos nas ruas? Se o COVID-19 é só uma “gripezinha”, por que quem defende o fim do isolamento social não deixa seus familiares e amigos com sistemas imunes fragilizados, pessoas asmáticas, diabéticas e hipertensas transitando pela cidade?O COVID-19 escancara desigualdades em sociedades do mundo todo e a necessidade de se adotar outros caminhos, demonstrando que o atual sistema capitalista não sustenta sociedades sem explorar e causar crises globais.

É por isso que, em face de certas medidas dos países mais afetados com o Coronavírus, é possível perceber um distanciamento da economia de mercado, do laissez-faire, do Neoliberalismo e do Consenso de Washington e uma guinada às políticas de Bem-estar social, de estatização de serviços e empresas privadas, de afrouxamento do sistema carcerário etc.

Nos Estados Unidos, também vimos a organização nas cidades e estados ganhar vitórias importantes para suspender os despejos durante a pandemia. A Irlanda anunciou seis semanas de pagamentos emergenciais de desemprego a todos os trabalhadores que, de repente, se vêem desempregados, incluindo trabalhadores independentes. E, apesar das alegações do candidato presidencial dos EUA Joe Biden durante o recente debate de que a pandemia não tem nada a ver com o Medicare for All, muitos americanos estão subitamente percebendo que a ausência de uma rede de segurança em funcionamento exacerba as vulnerabilidades ao vírus em muitas frentes.(The Intercept)

Esses governos não estão tomando medidas mais alinhadas à esquerda(mesmo que uma centro-esquerda)porque desejam e são benevolentes, mas porque uma pandemia global revelou o que marxistas e progressistas vêm dizendo há décadas: as economias de mercado, se deixadas para se autorregularem, vão colapsar. De um lado, a exposição do povo à doença, do outro o risco do desemprego. Essa combinação é fatal se deixada nas mãos do mercado que precisam explorar o trabalhador para sobreviver e fazer milhões para uma parcela ínfima da população mundial.

A resposta está na cooperação entre os povos, em escala internacional, na radicalização política do enfrentamento a esta ordem mundial, na ruptura com a exploração humana e ambiental no planeta(MINOWA, MARTINS, ALVES et al.)

Se o capitalismo revela que, ao parar por alguns meses, entra em ruínas, então é mesmo este um sistema que deve ser mantido? Marx também diz que o capitalismo cria as condições para sua própria destruição, por meio de crises cíclicas.

“Enquanto subsista o capitalismo, são inevitáveis as oscilações cíclicas; estas acompanharão sua agonia”(MARX,Tese da I. C., Terceiro Congresso, 1921).

Para além das crises cíclicas,Giovanni Arrighi também teoriza sobre as crises de hegemonia enfrentadas desde o início da sociedade moderna. Se pensarmos nos Estados Unidos como bastião do Neoliberalismo, hegemonia e mantenedor do capitalismo liberal globalizado e vermos a recessão que se coloca na frente da economia norte-americana, uma queda de hegemonia também permitira um declínio do sistema capitalista, possibilitando a criação de condições para a superação desse sistema?

A resposta virá com o tempo.O que se pode dizer agora é: A insatisfação com o capitalismo atingiu níveis globais e o mundo será outro depois do coronavírus.

REFERÊNCIAS

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