O ovo da Serpente — atemporalidade do autoritarismo

Alberto Luiz
Revista Marginália
6 min readMar 11, 2021
The Serpent’s Egg by Ingmar Bergman

Quais os fatores sociais, políticos, econômicos e psicológicos pavimentam as ruas para a implementação de um regime totalitário? Quais os sintomas de uma sociedade que caminha para o autoritarismo? Há sintomas específicos ou é uma sombra tão sutil, que torna-se quase imperceptível antes de sua total realização? Não faltam teorias na filosofia, na sociologia e nas demais áreas do conhecimento humano contemporâneo para tentar classificar com base na experiência histórica essas características.

A arte também tem seu papel de denunciante dos sintomas, talvez ela seja a mais sensível a essas sutis variações do clima social. E, essa sensibilidade denota primordialmente de sua natureza simbiótica com a sociedade e seus humores. Um mesmo público que aplaude um espetáculo hoje pode ser seu detrator uma semana depois. E, penso que justamente a sensibilidade e as técnicas que são atributos do mecanismo artístico tem esse papel quase que didático em apontar a vertigem.

Ingmar Bergman diretor, escritor e produtor sueco

Em 1977, chegava as telas dos cinemas mundialmente uma colaboração estadunidense e alemã que tinha por título O ovo da serpente, filme roteirizado e dirigido pelo já consagrado diretor sueco Ingmar Bergman (1918–2007). Bergman que já tinham brilhado em produções como O sétimo selo (1957), Vergonha (1968) apresenta seu público um dos poucos filmes abertamente políticos e menos alegóricos de sua carreira. A materialidade da cena onde se desdobra o roteiro de O ovo da Serpente é a catástrofe econômica da Alemanha de 1923, a fome, a incapacidade política da República de Weimar de promover a dignidade básica para a população alemã. Em meio a esses elementos de instabilidade a uma sombra que se move por entre os becos, ainda sem símbolos claros, ainda em formação está o nazismo de Hitler.

O narrador e personagem que irá nos apresentar os quadros que montam a imagem da serpente é Abel Rosenberg é um trapezista judeu desempregado, e sua ex-cunhada Manuela, que trabalha em um bordel. Nas primeiras cenas, os primeiros recortes que o diretor promove é a completa falta de perspectiva para o povo. O vazio de um futuro e a presença constante de um “presente” de miséria ilustra ainda nos primeiros momentos a sutileza das ruas, miséria essa que se tornará ainda mais violenta e voraz a medida que os eventos se descortinam ao espectador.

Abel Rosenberg (David Carradine) e Manuela (Liv Ullmann) em O ovo da serpente

A noite de 03 de novembro de 1923 marca o início da narração e o primeiro evento que nos é mostrado sem muita cerimônia e de forma bastante crua é o suicídio do irmão de Abel. Ao abrir a porta do quarto onde eles moravam, o artista encontra o corpo do irmão suicidado e essa cena que se prolonga com o homem morto, o irmão atônito e uma feliz cantoria que subia do andar abaixo do quarto do protagonista, como uma tentativa de abafar a morte, dão ao espectador o clima do que lhe espera. Não há triunfo ou apoteose nessa história porque ainda não havia um vilão categórico a ser combatido, o verme estava no coração dos homens. O monstro estava sendo gestados nos corações e estômagos dos alemães. O ovo da serpente não foge de seu caráter embrionário. E, o que realmente importa questionar é o quanto de sofrimento e humilhação uma pessoa suporta até que ela perca suas moderações? Enquanto todo o ambiente ao redor degringola, Abel mergulha no alcoolismo e nós o sentimos sufocar com toda a violência que se alastra pelos becos. Jovens que espancam homens na rua, um grupo de famintos que mata um cavalo na rua para poder comer a carne crua. A exposição contínua a violência e a humilhação mergulha o indivíduo em um cinismo que está expresso na apatia.

Uma das cenas catárticas do longa se desenrola na delegacia Abel é interrogado pelo inspetor da polícia e enquanto dialogam sobre os crimes, o trapezista pergunta por que o inspetor se preocupa se amanhã tudo ira desaparecer? O inspetor reconhecendo toda a situação em que a sociedade se encontrava diz que a única coisa que poderia fazer é manter um mínimo de ordem antes que tudo desmorone.

[…] Sei que a catástrofe pode chegar em algumas horas. Dizem que o cambio por um dólar é de cinco bilhões de marcos. Os franceses ocuparam Ruhr, em todos os trabalhos há agitadores bolcheviques. Em Munique, Herr Hitler está preparando um golpe de estado. Todos tem medo. E eu também. O medo não me deixa dormir.

Abel Rosenberg (David Carradine)

“O medo é uma técnica” como já falou Albert Camus, em um de seus artigos ao jornal Combat, e Bergman faz questão de explorar esses cenários de caos. Nada é gratuito e o personagem Hans Vergerus, deixa isso muito claro. Em umas das mais densas cenas de dialogo, o estranho pesquisador descreve o futuro para Abel, descreve como as coisas iriam caminhar, como tudo seria subvertido em sangue nos próximos anos. E aqui o título do longa ganha sua significação nas palavras de Hans Vergerus em dez anos nos que tem dez terão vinte, os que tem vinte terão trinta e essas pessoas que hoje experimentam a fome, a degradação a constante humilhação elas terão força para a revolução pelo ódio herdado dos pais. E quando a hora chegar alguém lhes oferecerá um futuro, alguém porá suas insatisfações em palavras, falará de grandeza e lhe pedira um sacrifício. Afinal não era muito difícil observar a serpente em formação pela fina membrana do ovo.

[…] qualquer um que fizer o mínimo esforço poderá ver o que nos espera no futuro. É como um ovo de serpete. Através das membranas finas pode-se distinguir o réptil já perfeitamente formado. — Hans Vergerus

O Abel de Bergman, tem seu espelho ao Abel bíblico, ele está lá posto para ser o sacrifício no altar da violência. É o artista desamparado, é o homem que aos poucos se vê privado de tudo que antes lhe era familiar. O verme autoritário estava nas ruas, a violência estava e a degradação tinha sua marca. A frágil democracia da República de Weimar em sua rotina e horários não tinha muito o que fazer diante de tudo aquilo. E, esse Abel que desaparece em meio a multidão de desgraçados não nos tras uma mensagem otimista. Afinal, Putsch da Cervejaria tinha sido controlado, as forças golpistas de Hitler havia sido reprimidas. Entretanto, assim como garante Hans Vergerus tudo era só a forma do réptil se formando dentro da membrana.

Depois que a humanidade dá alguns passos em direção do abismo da barbárie, da degradação e do cinismo é certo que as consequências nos alcançaram. A mensagem final de Bergman, parece se assimilar bastante a que foi sacramentada por Brecht:

a cadela do fascismo sempre está no cio

— Bertolt Brecht

Assista O ovo da serpente:

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Alberto Luiz
Revista Marginália

Doutorando em filosofia pela UFU, ouvinte de música indie. Um colecionador de histórias cotidianas. Escrevendo sobre filosofia, arte, e outros devaneios.