O Sétimo Continente: do fetichismo da mercadoria à decadência do consumo

Danilo Araujo
Revista Marginália
5 min readSep 30, 2019
O Sétimo Continente (1989)

O Sétimo Continente (1989) é um filme dirigido e produzido pelo diretor austríaco Michael Haneke, famoso por seus filmes de cunho extremamente realista, a ponto de nos permitir enxergar o horror predominante na realidade material e suas dinâmicas vazias. Neste filme em particular somos apresentados ao início de uma geração que já demonstra sinais de exaustão com as novas formas de consumo em massa.

A estória da família que protagoniza a trama é narrada por uma vida que se encontra cercada pela normalização da cultura de consumo em seus excessos.

O desconforto tem início quando a menina de oito anos finge que é cega na escola sem motivos aparentes, preocupando a mãe que pouco a pouco se afoga em um profundo vazio de maneira instantânea. O pai, após passar por algumas situações desconfortantes em seu trabalho, também chega a ser dominado por esse vazio.

Chega um momento em que eles decidem se mudar para a Austrália almejando uma vida nova, devido ao vazio angustiante que predomina naquela casa. Porém, nos momentos finais ante a viagem eles decidem quebrar todos os móveis e objetos da casa, de forma a se libertarem. Com efeito contrário, é como se a família se auto mutilasse psicologicamente ao destruí-los.

Em poucos diálogos a atmosfera do filme é permeada por uma frieza agonizante que é incorporada ao pano de fundo da vida dessa família. Pouco a pouco ela vai se desintegrando.

O longo e preciso enfoque nos objetos e o mergulho na densidade das mercadorias em algumas cenas foram elementos trazidos por Haneke para que pudéssemos captar a melancolia suprimida pelo consumo exacerbado e seus excessos, dentro de um sistema que funciona a base da obsolescência programada.

Essa questão da obsolescência é um ponto crucial para a manutenção da cultura de consumo no capitalismo moderno, ou seja, sempre vai haver a novidade, sendo o que nos faz comprar cada vez mais coisas sem sentido.

Um exemplo muito claro desses excessos de consumo no filme são os fartos cafés da manhã em família, chegando ao ponto de colocarem até garrafas de vinho para beberem junto ao café em uma das cenas. Isso acontece em um momento no qual a família está vivendo os prelúdios de uma crise depressiva.

O silêncio do filme é provocado por uma intensa sonoridade industrial através do barulho das máquinas, da produção, dos sons de caixas registradoras nos supermercados, etc.

Há sempre um vazio. O silêncio é ensurdecedor.

Estimulamos um sistema que nos explora e nos distancia cada vez mais do que achamos que queremos. Logo, fixamos nossas vontades em objetos de desejo, que retraem o verdadeiro desejo humano, fazendo com que nunca estejamos satisfeitos com esses objetos. Consequentemente, é o que acaba alimentando esse vazio até o tocante do filme: a depressão, rumo ao suicídio.

Essas relações de consumo resultam dos processos de alienação do trabalho, transformando as mercadorias em meros objetos. Esses objetos tornam-se signos sociais, ou seja, símbolos de consumo que por sua vez nos determinam e exercem controle sobre a decisão dos indivíduos.

Tudo isso já era estudado por Marx em sua obra teórica mais famosa (Das Kapital).

Karl Marx: O Capital

‘’…a impressão luminosa de um objeto sobre o nervo óptico não se apresenta como uma excitação subjetiva do próprio nervo, mas como a forma sensível de alguma coisa que existe fora do olho. Mas, no ato da visão, a luz é realmente projetada por um objeto exterior sobre um outro objeto, o olho; é uma relação física entre coisas físicas. Ao invés, a forma mercadoria e a relação de valor dos produtos do trabalho [na qual aquela se representa] não tem a ver absolutamente nada com a sua natureza física [nem com as relações materiais dela resultantes]. É somente uma relação social determinada entre os próprios homens que adquire aos olhos deles a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Para encontrar algo de análogo a este fenômeno, é necessário procurá-lo na região nebulosa do mundo religioso. Aí os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, entidades autônomas que mantêm relações entre si e com os homens. O mesmo se passa no mundo mercantil com os produtos da mão do homem. É o que se pode chamar o fetichismo que se aferra aos produtos do trabalho logo que se apresentam como mercadorias, sendo, portanto, inseparável deste modo-de-produção.’’

Certamente o filme de Haneke é sobre a depressão e o suicídio, condicionados por essa angústia presente na sociedade de consumo. Foi aí que eu cheguei em Marx: procurei mostrar como o seu pensamento ainda é atual quando falamos criticamente acerca das relações/condições materiais de vida.

Marx falava sobre o fetichismo da mercadoria, fenômeno resultante da desvinculação dos processos que a produzem. A coisificação da mercadoria faz com que ela assuma vida própria, uma forma fantasmagórica a ser percebida pelo ser social.

‘’O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente em que ela apresenta aos homens as características sociais do seu próprio trabalho como se fossem características objetivas dos próprios produtos do trabalho, como se fossem propriedades sociais inerentes a essas coisas’’

Todas as relações sociais existentes na produção das mercadorias precisam ser ocultadas. O poder de mistificar é o poder de alienar.

Preocupante e ao mesmo tempo curioso perceber no mundo do cinema e na cultura pop em geral como existem obras que exploram o universo das distopias no mundo capitalista ou pós-capitalista, seja de forma fantasiosa ou não. Curioso pelo fato de todos nós sabermos das mazelas de nosso mundo e como nos comportamos em relação a isso, considerando que o mercado neutraliza a crítica e transforma essas adaptações da cultura cinematográfica em meros objetos de entretenimento (novamente, reforço o conceito de alienação do trabalho e a forma fantasmagórica da mercadoria).

Preocupante é quando já não sabemos mais se estamos vivendo em uma distopia, ou não. O real é velado pela alienação dos processos produtivos, sustentados pela violência gerada através das injustiças e desigualdades sociais.

É por isso que O Sétimo Continente consegue nos derrubar de tal maneira a nos chocar tanto enquanto filme: A transparência dessa frieza presente em nossa realidade é o resultado dessa possível distopia.

Mas talvez, não seja uma distopia. Talvez não seja nada.

É o que faz a cultura de consumo no capitalismo: nos remete a uma imensidão de ciclos que nunca chegam a nada, nos deixando estáticos frente a essa inércia de proporções globais.

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Danilo Araujo
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