O trabalho doméstico

da família à escravidão

Leonardo Coreicha
Revista Marginália
6 min readAug 31, 2019

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Uma família brasileira do século XIX sendo servida por escravos. Jean-Baptiste Debret. 1839

A origem etimológica da palavra trabalho é tripalium (três paus), instrumento de tortura usado para subjugar animais e escravos. A palavra doméstico origina-se do latim domus (casa/domínio), significa, o mesmo que para os gregos era o oikos, além de um local de moradia, o domínio do patriarca sobre a família e os agregados, incluindo escravos. Nem sempre houve esta estrutura de família, muito menos de trabalho. Neste texto busca-se uma reflexão histórica sobre o trabalho doméstico e sua criação e desenvolvimento pela sociedade de classes.

A divisão sexual do trabalho já figurava no paleolítico, quando os primeiros hominídeos dividiam as tarefas de caça, masculina, e coleta e cuidados com a prole, feminina. Como os outros primatas, esta divisão moldou o corpo humano e dividiu homens e mulheres em algumas tarefas, mas não significava que havia hierarquia. Nos primórdios, a divisão era natural, assim como acontece com outros grandes primatas (chimpanzés, orangotangos e gorilas).

Nas sociedades primitivas não havia divisão de classes. As sociedades eram tribais e a propriedade era comunitária. Como o nomadismo era dominante, a territorialidade tribal era ampla e fluida. A guerra ou luta por território era existente, porém excepcional.

Com o surgimento da agricultura, da pecuária e da consequente sedentarização das populações humanas, o neolítico foi marcado por guerras e o surgimento das classes sociais, a partir da instituição da propriedade privada, da família e da escravidão.

O escravo doméstico surge na antiguidade. Nas sociedades orientais (Egito e Mesopotâmia, principalmente) a figura do escravo doméstico já existia entre as elites locais. A escravidão oriental era fruto das guerras, quando os perdedores, além de suas terras, perdiam a liberdade, tornando-se escravos do Estado vencedor. Neste contexto, seres humanos eram divididos em conjunto com os espólios de guerra, servindo, também, como escravos domésticos.

Mas na antiguidade ocidental que a escravidão se torna central, no modo de produção escravista. Grécia e Roma ergueram-se nos ombros de escravos, que partiram da escravidão doméstica ao extensivo uso de escravos como mão de obra nas terras da elite.

Quanto mais crescia a divisão social do trabalho e a expansão da propriedade privada, com o consequente aumento desigualdade social, mais escravos surgiam e os grandes proprietários sobrepujavam os camponeses (pequenos proprietários de terra).

A ideologia da sociedade escravista se baseava no Oikos (casa), origem da economia (οικονομία). Na Grécia antiga, o patriarca passa a ser o centro do oikos e todos que com ele viviam passavam a ser sua propriedade, incluindo mulheres, crianças e escravos, nesta ordem. O modelo grego se espalhou pelo mundo com Alexandre e com o helenismo, mas se consolidou no Império Romano. Assim, surge a ideologia patriarcal dominante na sociedade ocidental.

Com o fim do modo de produção escravista, nos feudos se reproduz as relações familiares romanas. O senhor feudal, como patriarca, dominava seu feudo e todos que a eles se submetiam. Muitos dos servos e, principalmente, servas, serviam no castelo do Senhor feudal fazendo o serviço doméstico, como parte de suas obrigações servis.

A ideologia feudal, promovida pela Igreja, na qual o patriarcalismo e o poder do senhor feudal eram divinos, não atingia toda a população uniformemente. Havia entre os camponeses o conceito de família ampliada, fruto das relações tribais das comunidades não-romanas dominadas pelo Império. Assim, até a revolução industrial formas comunitárias de solidariedade e uso comum da terra, dos bosques e de ferramentas de trabalho permaneciam entre artesãos e camponeses.

A revolução industrial tirou toda a possibilidade de vida comunitária. Transformou os trabalhadores em proletários, que não possuíam meios de produção, logo eram obrigados a vender sua força de trabalho aos burgueses. O antagonismo de classe chega ao auge.

A burguesia não subverte a moral cristã para seus subordinados. Assim, enquanto para o burguês os pecados, principalmente, o da usura e do lucro, foram transformados em virtudes, para os trabalhadores foi imposto à ética protestante e o modelo judaico-cristão de família, de submissão e de trabalho duro.

Apesar do capitalismo desumanizar as relações sociais, com o fomento da miséria, da prostituição e da pornografia massiva, a moral ideológica é puritana. Logo, os mais famintos dos facínoras sempre aparecem como homens de bem. Em nome da moral religiosa, criam-se guerras, destroem culturas e fomento a miséria de milhões para alimentar o luxo e a luxúria de pouco.

Parte essencial deste luxo da burguesia é provido pelo uso de empregados domésticos. Os trabalhadores domésticos suprem os desejos e necessidades da burguesia, sendo um artigo de luxo e de ostentação. Assim como joias, empregados são exibidos como objetos, uniformizados, calados, obedientes e solícitos.

No Brasil e em outros países coloniais, o trabalho doméstico herda o estigma da escravidão moderna. Se na Europa os trabalhadores doméstico são um luxo para poucos, no Brasil, a pequena-burguesia ostenta um número considerável de empregados domésticos.

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Entre o proletariado, as tarefas domésticas fica ao encargo, majoritariamente das mulheres, seguindo a ideologia patriarcalista predominante na sociedade ocidental e fomentada pela cultura religiosa. Na divisão social do trabalho, a mulher se sobrecarrega, pois, ao contrário das sociedades primitivas, nas quais a divisão sexual do trabalho equilibrava a vida social, no capitalismo o trabalho recaí nas costas das proletárias triplamente (assalariada, “do lar” e mãe). Faz-se mister diferenciar o trabalho doméstico para si do trabalho doméstico para outrem, assim, apesar da opressão sexista, o trabalho da dona de casa não é compulsório, mas parte da necessidade socialmente imposta. Assim, como diz Finley (1991):

O trabalho das mulheres e crianças dentro da família, não importa quão autoritária e patriarcal seja sua estrutura, não entra na categoria de trabalho para outrem (embora saiba que se possam levantar várias objeções a esta afirmativa), e tampouco a atividade cooperativa interfamiliar, como nos períodos de colheita. “Trabalho para outrem” implica não apenas que “outro’ se aproprie de uma parte do produto, mas também que costumeiramente controle, de forma direta, o trabalho a ser feito e o modelo de fazê-lo, seja pessoalmente ou por meio de seus agentes e administradores.

Quanto mais pobre a proletária, mais trabalho se acumula. E o trabalho doméstico nas casas da pequena-burguesia torna-se principal fonte de sobrevivência destas mulheres. Angela Davis já destacava que nos EUA (pode-se trazer a análise dela para a realidade brasileira), este trabalho doméstico era desempenhado predominante por mulheres negras, pois os postos de trabalho mais qualificado, que poderiam ser ocupados por mulheres, eram ocupados por proletárias brancas.

Mas, assim como os escravizados eram desprovidos da condição de cidadão, as relações entre eles tendiam a superar a ideologia patriarcalista e machistas nas relações no interior da senzala. Conforme Angela Davis (2016):

A questão que se destaca na vida doméstica nas senzalas é a da igualdade sexual. O trabalho que escravas e escravos realizavam para si mesmos, e não para o engrandecimento de seus senhores, era cumprido em termos de igualdade. Nos limites da vida familiar e comunitária, portanto, a população negra conseguia realizar um feito impressionante, transformando a igualdade negativa que emanava da opressão sofrida como escravas e escravos em uma qualidade positiva: o igualitarismo característico de suas relações sociais. (p. 32–33)

Entretanto, a emancipação da escravidão moderna, apenas tornou os escravos assalariados. As relações de trabalho doméstico mantiveram-se como relações abusivas. As trabalhadoras domésticas pouco puderam se organizar e lutar pelos seus direitos. E, hoje, entre as reivindicações dos movimentos fascistas da pequena-burguesia está a bandeira de desregulamentação do trabalho doméstico, para que as antigas relações de servidão doméstica ressurjam e se possa novamente ter serviçais mal remuneradas ou, simplesmente, escravas.

Abaixo a escravidão na cozinha! Grigóri Shegal, 1931.

A superação do trabalho doméstico passa pela superação do capitalismo e, com ele, a abolição das classes sociais. Dentro da atual sociedade, as lutas parciais não poderão destruir a ideologia patriarcal e escravagista, que nos é imposta como proteção à propriedade privada dos meios de produção e a reprodução das desigualdades.

REFERÊNCIAS:

FINLEY, Moses I. Escravidão antiga e ideologia moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1991

DAVIS, Angela. Mulher, Raça e Classe.

ENGELS, F., Anti-Düring, Lisboa: ed. Estampa, 1970.

ENGELS, F.. O papel do Trabalho na transformação do macaco em homem. Capturado in: http://www.marxists.org/portugues/marx/1876/mes/macaco.htm) em 23/05/2019.

ENGELS, F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Capturado em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1884/origem/index.htm em 18 de ago de 2019.

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Leonardo Coreicha
Revista Marginália

Educador, historiador, advogado e, principalmente, um proletário lutando contra a opressão capitalista.