Operação Lava-Jato como mecanismo do Estado burguês: um panorama sociológico

Marina Moreno de Farias
Revista Marginália
9 min readAug 2, 2019

*É importante notar que, como artigo de opinião, não viso o convencimento nem pretendo que o que escrevo seja tido como verdade universal, mas serve apenas como minha concepção baseada em minha formação acadêmica até aqui. No entanto, é válido lembrar que muitos pensadores, sociólogos, juízes, advogados, professores e outros dos campos das ciências humanas e sociais aplicadas também compartilham do mesmo desprezo com o perfil da operação Lava-Jato

A Operação Lava Jato é a maior investigação sobre corrupção conduzida até hoje no Brasil. Ela teve início no Paraná, em 17 de março de 2014, unificando quatro ações que apuravam redes operadas por doleiros que praticavam crimes financeiros com recursos públicos. O nome Lava Jato era uma dessas frentes iniciais e fazia referência a uma rede de postos de combustíveis e lava a jato de veículos, em Brasília, usada para movimentação de dinheiro ilícito de uma das organizações investigadas inicialmente. Desde então, a operação descobriu a existência de um vasto esquema de corrupção na Petrobras, envolvendo políticos de vários partidos e algumas das maiores empresas públicas e privadas do país, principalmente empreiteiras. Os desdobramentos não ficaram restritos à estatal e às construtoras. As delações recentes da JBS e braços da operação espalhados pelo Brasil e exterior são exemplos das novas dimensões que a investigação ainda pode atingir. A duração permanece imprevisível.(Folha de S.Paulo)

Há uma simbologia quase poética na revelação das arbitrariedades e interesses particularistas por trás da força tarefa da Lava-Jato. A operação se gaba de suas investigações e prisões neutras(conta apenas com o argumento central de sede por justiça e o caduco discurso de ‘’acabar com a corrupção’’)mas no grande esquema das coisas, conduziu um conjunto de investigações e prisões coercitivas, polarizadas e partidárias. Nesse sentido, a Lava-Jato atua como ferramenta do Estado e das instituições do Judiciário para encavernar candidaturas, garantir eleições e minar o jogo democrático como têm sido feito, em grande medida, desde o Golpe de 2016.

Apesar do grande fuga das esquerdas quando se trata de corrupção e da importância de denúncias e julgamentos de crimes passivos e ativos de responsabilidade, o discurso no qual se alicerçou a operação Lava-Jato é problemático em alguns níveis e levanta a velha ideia de limpar a sociedade brasileira dos maus elementos, de acabar com a ‘’corrupção sistêmica’’ que vivemos enquanto corpo político para que assim possamos atingir a ‘’união’’ e ‘’felicidade geral da nação’’afinal, a corrupção é a mãe de todos os males.

Essa retórica trouxe desde o início um viés ideológico para uma operação que deveria possuir caráter apenas jurídico e portanto, neutro. Não apenas, a transformação e caracterização de seus integrantes(juízes, promotores etc) em super heróis a salvarem a pátria foram projetadas e permearam o imaginário das massas sedentas por mudança e limpeza em todo o escopo político brasileiro.

O uso da força, muitas vezes, deve ser justificada por ideias coletivamente aceitas; por esse motivo a classe dominante busca produzir e disseminar ideias que legitimem as ações do Estado em prol de seus interesses’’. (BODART, CRISTIANO;2016)

De maneira bastante fantasiosa, as transformações sociopolíticas trazidas pela operação suscitaram um entusiasmo coletivo em torno das figuras de Sérgio Moro e outras personalidades da Lava-Jato, celebrados em memes, camisetas, bonecos infláveis, desenhos de super heróis de quadrinhos(quem nunca viu a imagem de Sérgio Moro no corpo do Super-Homem?)O imaginário coletivo caracterizou tais personas como heróicas no momento que viu nelas e somente nelas a possibilidade de mudança no país, como se fossem os detentores da moralidade, da ética e de todos os atributos pessoais que eram necessários para uma quebra com o sistema corrente, aquele que essa massa tencionava para que ruísse.

“Seus superpoderes são as habilidades de lutar contra a corrupção, de derrotar os vermelhos (assim como o Caveira Vermelha, vilão de Capitão América) e impor um puro e limpo Brasil. Mesmo permeados pela retórica de “purificação”, os heróis de hoje em dia são mais vinculados a individualidades que coletividades. Eles glorificam juízes e procuradores por todo o Brasil. Dallagnol e Moro sentem-se ungidos. Exibem essa marca em eventos corporativos. Afinal, eles foram escolhidos, eles são especiais, eles são super humanos, super heróis nacionais”

Não obstante, a lógica por trás tanto da operação quanto do culto à figura de Moro se fixa na ascensão da extrema-direita e na atuação de antigos pólos de poder nas bancadas políticas(Bancada Evangélica, Bancada do Boi, Bancada da Bala). Eventos como as manifestações de 2013 levantam e fazem arder na face do povo tudo aquilo que vinha de alguma forma se acumulando como necessidades não atendidas; estas, no entanto, continuarão a ser mitigadas, mas agora abafadas pela expressão do anti-comunismo, da indignação popular e principalmente, de organizações de antipolítica que se dizem patriotas e exaltam a neutralidade.

Esse discurso vai de encontro estreito com a lógica da pós-política e a urgência da ruptura do sistema vigente e denuncia o pensamento brasileiro médio de soluções individualistas onde o Estado de Direito atua como artifício de uma espécie de justiça ética e moral(mesmo que de moralidade seus executores não entendam nada). É compreensível a indignação popular com os rumos que a política parecia seguir, mas essa repulsa à tudo que lembra de longe a palavra e o exercício da política fez com que se tornasse cada vez mais fácil usar do discurso anti-política para alcançar objetivos(pasmem)políticos.

De maneira bem clara, Deltan Dallagnol(procurador da República) e Sérgio Moro(ex juiz federal e agora Ministro da Justiça do governo Bolsonaro), ambos envolvidos no julgamento e condenação do ex-presidente Lula, representam, instigam e levantam um ódio ao Petismo e à toda oposição. Suas atuações como funcionários públicos a serviço do Estado brasileiro celebram um complexo higienista, demonstram um caráter heróico e canalizam a possibilidade da queda do que se acredita ser uma ascensão comunista(que nunca esteve perto de acontecer)

O discurso contra a “corrupção” – inicialmente uma demanda por saúde e educação, ao invés de estádios para a Copa do Mundo – foi colonizado por uma retórica moralista, típica de heróis, por exemplo, na proposta das “10 Medidas de Combate à Corrupção”. Policiais, promotores/procuradores e juízes invocaram seu comprometimento com a justiça acima de tudo, na linha de quem lhes legitimou para atuarem contra os políticos tradicionais e seus interesses pessoais. Eles, os heróis, salvariam o povo brasileiro dos seus representantes eleitos, os vilões.’’(KELLER,RENE; CAPELA,GUSTAVO; BELLO,ENZO)

Dessa maneira, uma operação que poderia fazer muito sentido e colocar em prática a verdadeira justiça baseada na Constituição que consolida nossa jovem democracia, tornou-se aparato de desejo numa caçada pessoal e objetiva de interesse ideológico do Estado burguês: a burguesia brasileira, ao exercer seu poder político pela dominação por grandes corporações e instituições mais uma vez se faz presente no aparelho estatal capitalista de base Patrimonial. Isso se dá, em suma, pela dominação burguesa sob o proletariado, visto a natureza de superestrutura para a perpetuação de domínio e poder.

Ora o uso da força, ora o uso da ideologia. É exatamente nesses padrões que opera a força-tarefa da Lava-Jato como forma de convencimento, extermínio da oposição e por fim, manutenção do próprio poder. Por estar a serviço do Estado, toda e qualquer ação vinda da operação é legitimada, usando da força e portanto, da ideologia.

As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes; isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios de produção material dispõe também dos meios de produção espiritual, de modo que a ela estão submetidos aproximadamente ao mesmo tempo os pensamentos daqueles aos quais faltam os meios de produção espiritual. As ideias dominantes nada mais são que a expressão ideal das relações materiais dominantes, são as relações materiais dominantes apreendidas como ideias; portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante, são as ideias de sua dominação” (MARX, 1993, p. 72).

Nesse sentido, podemos ver como o Estado burguês traz seus interesses sempre a reboque dos interesses da classe dominante, e isso fica explícito no caso das arbitrariedades cometidas pela Lava-Jato: como maior título de exemplo, a prisão do ex-presidente Lula, onde o uso do aparelho estatal burguês se estabelece com a condenação ilegítima mais famosa dos tempos modernos.

O que pretendo dizer com essa análise é mais do que uma crítica às operações que investigam corrupção e impunidade, é lançar um olhar sobre sua legalidade: a quem respondem? Como e as custas de quem estão sendo empreendidas? E por último, por quê estão sendo empreendidas?

Recentemente mensagens e ligações trazidas à tona pelo The Intercept Brasil mostram a falta de ética e ações corruptas de Sérgio Moro e de outros procuradores da força-tarefa, ou seja, a natureza da operação, que parecia questionável para a esquerda desde o início, agora sofre abalos visíveis para todo o espectro político. A revelação do conluio entre Moro e o Ministério Público parece particularmente saborosa, tendo em vista que o discurso glorificado desde o gênese da operação era o famigerado “vamos acabar com a corrupção”. Além do que se refere a Lava-Jato, o ex juiz foi responsável por arquivar o caso Banestado e deixar ilesos políticos ligados ao PSDB e grandes empresas como a Rede Globo. Sem mencionar que o mecanismo da Lava-Jato opera de maneira que o mesmo juiz considera provas e julga o réu, abrindo portas incontáveis para abusos, motivações pessoais e demonstra um caráter quase que despótico.

Há evidências e provavelmente provas de vícios insanáveis de nulidade absoluta, o que justifica a anulação dos processos e o cancelamento das condenações.

No plano jurídico, repercute a liberdade imediata para Lula e os demais condenados em processos maculados, além da investigação das condutas de Dallagnol e Moro pela possível prática de crimes de prevaricação, organização criminosa, abuso de autoridade, fraude processual. No campo político é insustentável a permanência de Moro no Ministério da Justiça e Segurança Pública, inclusive porque chefia a Polícia Federal, responsável pela apuração das denúncias. Comprovadas as irregularidades, a renúncia de Moro é um caminho sem volta.

O fenômeno Lava-Jato vem revigorando o punitivismo que se estabeleceu tempos atrás como forma de combate à corrupção(essa que é tida como individual e não sistêmica, ao ignorar a relação política versus capital).

Na pseudossanha de salvar o Brasil dos grilhões da corrupção, Moro e Dallagnol esqueceram-se de preservar mínimos aspectos de liturgia capazes de fazer sua atuação não apenas parecer louvável, mas blindada a quaisquer purgações.(MELO,GILNEY;FONSECA, MAURICIO)

É de se esperar, no entanto, na distopia que parecemos viver no Brasil, que a extrema-direita e a ultrapolítica que elegeu o atual presidente e que ainda em termos idolatra os ‘’heróis’’ da Lava-Jato, continue a defender o indefensável e continue a dobrar o Estado democrático de Direito toda vez que lhe convém, usando de demagogia e discursos populistas pra conseguir se manter no topo da cadeia da vida política e deixar bem sólidas as bases de uma ruptura com o jogo democrático(que nunca existiu por completo) no Brasil.

O STF terá o seu tempo e a sua oportunidade de ser taxado (equivocadamente) de amigo ou inimigo da Lava Jato. Por ora, o prenúncio, a boa nova, por ironia do destino veio apenas de fora (Glenn Greenwald). Portanto, resta àqueles quem tem apreço por democracia e por justiça sem justiçamento, apenas lutar, encorajar e defender sujeitos que vão engrossando diariamente a fileira de “inimigos” e defensores das liberdades.

Glossário

•Infraestrutura: Para Marx, a infraestrutura trata-se das forças de produção, compostas pelo conjunto formado pela matéria-prima, pelos meios de produção e pelos próprios trabalhadores (onde se dá as relações de produção: empregados-empregados, patrões-empregados). Trata-se da base econômica da sociedade, onde se dão, segundo Marx, as relações de trabalho; estas marcadas pela exploração da força de trabalho no interior do processo de acumulação capitalista.(BODART, Cristiano das Neves)

•Superestrutura: A superestrutura é fruto de estratégias dos grupos dominantes para a consolidação e perpetuação de seu domínio. Trata-se da estrutura jurídico-política e a estrutura ideológica (Estado, Religião, Artes, meios de comunicação, etc.)[BODART, Cristiano das Neves.]

•Estado Burguês: De acordo com Marx, aquele através do qual a burguesia exerce o poder político através de uma determinada combinação de instituições políticas, além de ser a classe dominante na sociedade.

Referências

BUONICORE, Augusto. A formação do Estado burguês no Brasil. 2003

SAES, DÉCIO. O Conceito do Estado Burguês in Estado e Democracia: Ensaios Teóricos.

DE MORAES, ANTONIO CARLOS. Reflexões sobre o Estado burguês no Brasil – quase uma década de política neoliberal. SP

GRAMSCI, A. Maquiavel, a política e o Estado moderno.

MARX, Karl. A ideologia alemã. 9ª ed. São Paulo: Hucitec, 1993.

BODART, Cristiano das Neves. Infraestrutura e superestrutura em Marx. Blog Café com Sociologia.com

Carta Maior: Ascensão e derrocada dos heróis da Lava Jato. Enzo Bello, Gustavo Capella e Rene Keller. 2019

MELO, GILNEY; FONSECA, MAURICIO: Lava- jato: uma produção de falsos heróis brasileiros. 2019

Folha Explica: Operação Lava-Jato (Disponível em: http://arte.folha.uol.com.br/poder/operacao-lava-jato/)

The Intercept Brasil: As Mensagens Secretas da Lava-Jato: (Disponível em: https://theintercept.com/2019/06/09/editorial-chats-telegram-lava-jato-moro))

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