Os idosos que queremos matar
“A regra é a masmôrra. Não resisto ao impulso da separação fúnebre, porém realista: mas-môrra. Aí está tudo: al-gemas! mas-môrras!” (LYRA, 1971, p. 101).
Na última quarta-feira morreu F., um homem de 73 anos. Sexta, a causa mortis não informada ganhou nome: COVID-19. Desde 2017, sua história é contada dentro dos muros de uma instituição total. Temos a dizer sobre sua vida apenas o que ocasionou sua morte: um conjunto de movimentações precárias pelo sistema penitenciário.
Afinal, essa é a morte com a qual não nos importamos. Um corpo classificado por periculosidade. Esses são os idosos que queremos matar.
Talvez amanhã surja uma história - como a de Suzy - que justifique à consciência porquê algumas (não) pessoas merecem o massacre nesse sistema de moer corpos. Há quem não mereça ser abraçado. Há quem não mereça estar vivo.
Enviamos à cova rasa aqueles cuja liberdade nos amedronta. Mas na fala do medo capturamos detritos: “sociedades rigidamente hierarquizadas precisam da cerimônia da morte como espetáculo de lei e ordem” (MALAGUTI, 2014, p. 32). A morte do outro nos traz alguma espécie de segurança.
As vidas que enviamos ao inferno não mais poderão romper com o contrato social que paira sobre nós. No silêncio eterno, ficam seguros os indivíduos empreendedores de si, com todos os seus predicados.
Essa é a retribuição que restaura o equilíbrio da justiça. Podemos, então, equacionar o valor da vida. Só estão em conflito com a lei penal aqueles que perderam o valor. “Nessa sociedade, nada pode reivindicar isenção à regra universal do descarte, e nada pode ter permissão de se tornar indesejável” (BAUMAN, 2007, p. 9).
No Brasil, mais de 800 mil pessoas são indesejáveis.
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
LYRA, Roberto. Nôvo Direito Penal. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, v. III.
MALAGUTI, Vera. O medo na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2014.