Xuxa e o higienismo político

Tayara Causanilhas
Revista Marginália
5 min readMar 31, 2021

Na semana passada, a ex-apresentadora Xuxa, em uma live realizada pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), comentou como seria interessante o teste de vacinas e produtos cosméticos em pessoas encarceradas.

Reprodução: Google — xuxa-e-vegana-desde-2018-por-amor-aos-animais-1616767189310_v2_1080x1080.jpg (1080×1080) (imguol.com.br)

Ao falar do assunto, a apresentadora disparou que seria criticada — e quiçá, cancelada — já que sabia que se tratava de um assunto polêmico. Que a galera dos direitos humanos se levantaria contra o que ela viria falar:

Vai vir um pessoal que é dos direitos humanos e dizer: ‘Não, eles não podem ser usados.”

Bem, prazer. Galera dos direitos humanos.

Vou deixar claro que não pretendo esclarecer ou exaurir todos os argumentos errados da fala: não vou entrar no mérito do encarceramento da população negra brasileira, das condenações em primeira instância da população pobre, do higienismo ou da leviandade da consideração com o ser humano que a fala retratou.

Vou apenas considerar o aspecto moral do direito à vida e as questões do uso das penas como método punitivo.

Assim, vamos verificar qual o problema da fala:

Na minha opinião, eu acho que existem muitas pessoas que fizeram muitas coisas erradas que estão aí pagando seus erros em ad eternum, para sempre em prisão, que poderiam ajudar nesses casos aí, de pessoas para experimentos.

Já tem texto na Marginália, do Gabriel, que vai servir de pontapé inicial para essa discussão. Você pode lê-lo aqui.

Última postagem do músico Marcelo Yuka (1965–2019) no Instagram.

Mas, basicamente: existem quatro teorias que justificariam a finalidade da prisão.

  • Teoria Absoluta ou da Retribuição — Para essa teoria, a pena é a retribuição do mal injusto praticado pelo criminoso. Essa teoria não é mais utilizada porque está ultrapassada.
  • Teoria Relativa, Finalista, Utilitária ou da Prevenção — Divide-se em prevenção especial e prevenção geral.
  1. A prevenção especial consiste na ameaça ou segregação imposta ao condenado face à sociedade, tentando a sua reeducação com vista ao não cometimento futuro de novos crimes.
  2. A prevenção geral é representada pela intimidação dirigida ao ambiente social em que o crime foi cometido, fazendo com que as pessoas não cometam crimes por receio de receber punição idêntica ou semelhante que viram aplicar ao condenado.
  • Teoria Mista, Eclética, Intermediária ou Conciliatória — A pena tem a dupla função: de punir o criminoso e prevenir a prática do crime pela reeducação e pela intimidação coletiva. Segundo esta teoria, portanto, a pena tem caráter retributivo e preventivo.

Contudo, é preciso verificar que Martinson (1974), ao testar as quatro hipóteses, em seu paper What Works, descobre que: nothing works. Ou seja, nada funciona. Nenhuma dessas teorias é plausível ou atinge seu objetivo primário quando observados os efeitos em sociedade. O crime não é diminuto em razão da pena aplicada e o ser humano não deixa de comportar-se como um desviante da norma social.

Quando Xuxa coloca à disposição de testes em prol do bem social prisioneiros que "fizeram coisas muito ruins", além de ser injustificado no direito penal, é bem próximo do que aconteceu no nazismo. Está se utilizando de um modelo penal ultrapassado, retroativo e, principalmente, de cunho punitivista: já que você cometeu um crime, vou te punir usando ao seu corpo para o bem estar social.

Em outras palavras, vou te punir cometendo outro crime. Por que não?

A detenção do uso da força pelo Estado existe justamente para garantir que a ordem seja mantida. Se o Estado começa a utilizar de sua prerrogativa para violar as normas que impõe aos seus cidadãos, as coisas começam a dar errado. Não existe mais justificativa para obedecer às leis.

E, vale lembrar: a punição e a intimidação não dão certo. Em 1974 verificou-se isso.

A ciência deve, sim, evoluir. Não necessariamente às custas de animais, não necessariamente às custas de vidas humanas. A época do regime nazista, nos campos de concentração, não era incomum que seres humanos (que, dentro daquele regime, tinham cometido horrores contra o povo alemão) fossem utilizados como cobaias de experimentos.

Houveram avanços científicos sem número: nenhum deles vale o retrocesso moral de utilizar um igual, um outro ser humano, ao bel prazer do que se considera certo.

Um primeiro ponto é que a questão do que é a moral varia ao longo do tempo: o que era amoral para os nazistas pode não ser visto como amoral para a sociedade atual. Ser judeu, cigano ou homossexual não é crime no Brasil do século XXI.

Mas, quando se fala em penas para crimes, é preciso considerar que o que é amoral atualmente pode não ser daqui a alguns anos. E, principalmente, que o senso da preservação da vida deve permanecer acima de qualquer punição.

Um segundo ponto é que o uso de seres humanos para testes vai contra a moral mais básica da sociedade ocidental atual: a preservação da vida.

A preservação da vida não é seletiva. Eu não garanto o direito à vida só aqueles que se comportaram bem. Eu garanto o direito a vida e ponto. Sem mais. O Estado não pode usar de suas prerrogativas para violar a vida de ninguém.

Parece que isso escapou à Xuxa, na sua bondade aos animais.

Se os testes em animais são ou devem ser permitidos, isso é um debate (igualmente moral) a ser feito. Mas, seres humanos não são passíveis de tornar-se cobaias no lugar de animais porque foge dos princípios mais básicos da sociedade.

Foge do que definimos como mínimo social.

É burro.

é burro.

Não se usa mais a teoria absolutista da pena porque já ultrapassamos a fase em que o Estado pode dispor de nossas vidas, punindo-nos ao bel seu prazer. Existem garantias mínimas que, após séculos de construção, foram consolidadas aos seres humanos.

Não é tão simples quanto "teste em quem está preso, afinal, já fizeram merda mesmo". É tão complexo quanto um arranjo social feito por seres humanos. E isso escapou à apresentadora de programas infantis.

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Tayara Causanilhas
Revista Marginália

o caos acometeu e eu não deveria ficar acordada. aprende a viver agora, Tayara.