Controle de narrativas e política: “Mera Coincidência” ?

Nassor Oliveira
Revista Marginália
5 min readAug 12, 2020

O filme “Mera Coincidência” (do inglês Wag The Dog), de 1997, soou de fato coincidência no período que se seguiu ao seu lançamento, pois gira em torno de como manobras midiáticas podem ser feitas para manipular o grande debate público em relação a percepção que temos da política e dos políticos, que se reproduziram de forma coincidente ao contundente escândalo Lewinsky, que envolveu o então presidente dos EUA, Bill Clinton e sua estagiária, supostamente envolvidos sexualmente e os ataques a bomba no Afeganistão e do Sudão. Mais que apenas esse fato, o filme captura nossa fragilidade diante das “grandes narrativas” que controlam a opinião pública.

Bill Clinton e Lewinsky Bill Clinton e Hillary (Reprodução)

Pode soar inapropriado pensar que o comportamento sexual de um presidente deva ser um critério relevante para considerar sua reeleição ou não, mas as experiências recentes da política nacional e internacional demonstram a relevância das pautas morais e éticas não só na esfera pública, mas também privada: O presidente, no filme se via diante do dilema de enfrentar a avalanche da imprensa, o avaliando negativamente, em um momento onde a reputação alcança o auge da relevância: As eleições.

O que fazer quando todas as atenções estão centralizadas em algo que você fez, mesmo isso não tendo muito a ver com sua função pública? Utilizar da sua função pública e dos recursos midiáticos para criar um fenômeno excepcional e que desvie a atenção do público para uma urgência que transfira os ataques a sua figura para a união em torno de uma pauta comum: Essa foi a saída encontrada por nosso presidente fictício, que contratou uma equipe diretamente de Hollywood para “fabricar” uma guerra, e assim unir a nação, e de quebra, restabelecer sua figura pública, novamente.

Política Mídia e Agenda — Setting

Fonte: Reprodução : MediaFocus

Em 1922, Walter Lippman propôs a tese segundo a qual as pessoas não respondiam a uma realidade objetiva, mas que sim viviam em um pseudo-ambiente criado por ‘’imagens em nossas cabeças” fomentadas pela mídia. Mais tarde, Bernard Cohen afirma “Na maior parte do tempo, [a imprensa] pode não ter êxito em dizer aos leitores como pensar, mas é expantosamente existosa em dizer aos leitores sobre o que pensar.” Quando governos, se colocam ativamente disputando narrativas, seja criando grandes fenômenos que reúnam a atenção e comoção nacional, em detrimento de outros assuntos, eles estão influenciando no fenômeno chamado “Agendamento”, do inglês agenda-setting, segundo o qual os veículos conseguem influenciar a atenção para determinados assuntos, em detrimento de outros.

Coincidência ?

Donald Trump, Helio Negão e Bolsonaro (Reprodução)

Nos dias de hoje, estamos submetidos a uma nova forma de fazer política, e também, de mobilizar a população, plataformas como o twitter são o “diário oficial” contemporâneo (risos) e cada vez mais estamos submetidos a algoritmos que por muitas vezes determinam o que é relevante para cada público, baseado na audiência prévia que o tema obteve.É nesse contexto que posturas como a do atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, e sua equipe entram em cena: Diversas declarações polêmicas, ataques difusos e atenção a temas secundários acabam por “desnortear” a atenção do público dos reais problemas, estratégia utilizada nas eleições e que é levada a cabo até os dias de hoje, muitas vezes intencionalmente.

Acompanhando a reprodução das minhas “verdades fabricadas” Fonte: Moma

Outro conceito é interessante para compreendermos esta realidade: “Balões de ensaio”, jargão jornalístico para caracterizar informação propositadamente vazada a fim de verificar de antemão possíveis efeitos de uma determinada medida. Bolsonaro utiliza deste recurso de forma recorrente, seja com “nomeações” de ministros que nunca chegam a acontecer, mas ainda assim ocupam o noticiário por semanas, seja por medidas polêmicas que não chegam a ser oficialmente publicadas, e quando desmentidas vem carregadas de duras críticas a manipulação midiática e indústria de fake news, sendo ele, o presidente, e sua rede de seguidores as únicas fontes confiáveis de informação.

Os reflexos da estratégia de tentativa de manipulação do debate público trazidos a tona pelo enredo do filme não se esgotam no mandato de Bill Clinton nos EUA : Em 2020, Donald Trump, recebendo diversas ameaças de impeachment e tendo seu comportamento questionado, concentrou energias em ataques ao Irã, seguindo a cartilha recorrente de desvio de foco, mobilizando a atenção de todo o mundo. No Brasil, Jair Bolsonaro e seus seguidores brincam com a atenção dos opositores criando e reproduzindo escândalos que funcionam como cortina de fumaça para o plano ardiloso de desmantelamento do Estado que segue sendo executado. Seria uma mera coincidência ?

Referências

  1. Da Silva Junior, José Afonso; Pedro Paulo Procópio e Mônica dos Santos Melo (2008). «Um panorama da Teoria do Agendamento, 35 anos depois de sua formulação.»(PDF). São Paulo. Intercom — Revista Brasileira de Ciências da Comunicação. 31 (2): 205–221. ISSN 1809–5844
  2. Cohen, Bernard (1963). The press and foreign policy. New York: Harcourt
  3. Folha de São Paulo (1996). Novo Manual de Redação. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/folha/circulo/manual_producao_b.htm?aff_source=56d95533a8284936a374e3a6da3d7996>. Acesso em 03/07/2020

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Nassor Oliveira
Revista Marginália

Cientista Político I Colaborador na Revista Subjetiva e Editor na Revista Marginália. Instagram: @nassoroliveira