Esclarecendo a ineficácia da hidroxicloroquina no tratamento precoce da Covid-19

O que dizem os estudos científicos sobre o uso desta medicação no tratamento de pacientes com a Covid-19

Bruno Oliveira
Revista Marginália
5 min readJan 20, 2021

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Desde o reconhecimento da Covid-19 como uma pandemia pela OMS, uma série de tratamentos começaram a ser testados, até que um famoso pesquisador francês, Didier Raoult, publicou um artigo que trouxe esperanças para aquele país e para o mundo (ao mesmo tempo que gerou desconfiança). O estudo fez com que países na Europa e na América (inclusive os EUA) começassem a apostar suas fichas no medicamento. Entretanto, o estudo de Didier foi altamente contestado, houve falhas metodológicas (pacientes que morreram e foram removidos da amostra), além de uma baixa base de teste. Posteriormente, outros estudos foram realizados e a maioria deles provaram que Raoult estava errado e que não havia ganhos contra a doença. O próprio Didier Raoult reconheceu o erro em novo artigo publicado e dizendo que “a necessidade de oxigenoterapia, transferência para UTI e óbito não diferiu significativamente entre os pacientes que receberam hidroxicloroquina (HCQ) com ou sem azitromicina (AZ) e nos controles com tratamento padrão apenas”. A partir disso, vários governos, inclusive governos negacionistas como o de Trump, deixaram de apostar no medicamento frente ao número crescente de casos. Mas teve alguns deles, em especial o Brasil, que teima em dizer que a hidroxocloroquina pode funcionar, mesmo sem comprovação científica.

A hidroxicloroquina e outros medicamentos (Zinco, Azitromicina, Ivermectina etc) foram propostas como tratamentos para a Covid-19 no Brasil, estimulado pelo governo bolsonarista e alguns órgãos sem grande credibilidade ou com interesses econômicos (como a Prevent Senior). Tudo isso na tentativa de criar uma esperança heroica na população e não reconhecer os diversos erros (como o alto investimento no medicamento em detrimento de comprar equipamentos e até oxigênio) — puro interesse político.

Os Simpsons também previram que a hidroxicloroquina não funciona

O relatório Scientific [Self] Isolation faz análises comparativas sobre padrões internacionais de desinformação com base em banco de dados internacional sobre checagem de fatos. Cruzando checagens de informações de 129 países diferentes e investigando as notícias falsas sobre os tratamentos farmacológicos ligados à Covid19, ele identifica e se aprofunda sobre especificidades do debate público brasileiro, que se distancia da discussão internacional.

Um dos gráficos gerados pela iniciativa é o que se segue abaixo. Quanto mais próximo são os países no gráfico, mais comum são os tipos de fake news que ocorrem naqueles países. Perceba que o Brasil é, de longe, o mais afastado dentre todos os países. Ou seja, as fake news que ocorrem aqui são exclusivas do país tupiniquim — nenhum outro país tem fake news como as que ocorrem aqui ou, em outras palavras, somos o país mais negacionista de todos (e não conseguimos aprender com nossos vizinhos).

Scientific [Self] Isolation

E adivinha quais são as fake news que são mais especificamente utilizadas no Brasil do que em outros países. Isso mesmo, as relacionadas a hidroxocloroquina, ivermectina e azitromicina. Praticamente somos os únicos países que ainda acredita nessa estória da carochinha.

Scientific [Self] Isolation

Lembrando que estratégias como essa não é algo novo. Em um dos artigos publicados por aqui fizemos uma análise das estratégias do governo Bolsonaro (até aqui). Não é algo novo, mas estratégia recorrente.

Em alguns artigos como o “Pathophysiological Basis and Rationale for Early Outpatient Treatment of SARS-CoV-2 (COVID-19) Infection” indica alguns resultados quando utilizados previamente, principalmente como sugestão de tratamentos domésticos antes da realização da hospitalização ou agravamento da doença. Entretanto, estes estudos não possuem o devido rigor científico. O estudo citado, por exemplo, não possui a divisão entre grupos de controle (com a existência de um grupo placebo) e nem utiliza-se ensaios clínicos randomizados, que garante a diminuição drástica de vieses nos resultados do artigo. O próprio estudo menciona que “futuros ensaios clínicos randomizados irão, sem dúvida, refinar e esclarecer o tratamento ambulatorial” e menciona que o artigo foi realizado sem o devido rigor porque “enfatizamos a necessidade imediata de orientação de gestão na crise atual de consumo generalizado de recursos hospitalares, morbidade e mortalidade”. Ou seja, deixou-se de lado o método científico só para dar uma (falsa) esperança para a sociedade. Há outros artigos, como o “Hydroxychloroquine as Postexposure Prophylaxis for Covid-19”, que carecem de evidências robustas, e que apesar de colocar a hidroxicloroquina como uma solução promissora apoia-se nisso com a máxima “a ausência de evidência não é evidência de ausência” — sem apresentar evidência devidamente robusta, e concluem que “um estudo maior envolvendo participantes com diagnóstico virológico deve ser conduzido para detectar um efeito significativo de tratamento precoce”. Ou seja, todos os estudos que indicam algum tipo de benefício da hidroxocloroquina possui sérias limitações e as evidências não são devidamente robustas — sempre recomendando realizar outros estudos mais robustos.

Os poucos estudos que apontam resultados da hidroxicloroquina não possuem evidências científicas altamente robustas e recomendam que outros estudos com menos limitações sejam realizados. E é justamente estes estudos mais robustos, com grupos de controles, duplo cego e randomizados (vou listar alguns deles no final deste texto), mostraram justamente o contrário — a hidroxocloroquina não possui qualquer efeito positivo no tratamento da covid-19, mesmo no chamado tratamento precoce.

A ANVISA já se posicionou (timidamente) sobre o assunto durante as aprovações do uso emergencial das vacinas no último dia 17/01/2021

O que alguns dos principais estudos controlados e randomizados sobre o uso de hidroxicloroquina dizem a respeito desta terapia segue na tabela abaixo, de forma resumida. Em sumo, não existem diferenças significativas entre os resultados do uso de hidroxicloroquina e o de uso de outros cuidados tradicionais. Um detalhe é que o uso desse medicamento costuma trazer um número de eventos adversos maior do que outros tratamentos — embora seja extremamente raro o número de eventos graves — apenas um estudo relatou 0,4% dos casos de morte por mortes cardíacas).

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Bruno Oliveira
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Auditor, escritor, leitor e flanador. Mestrando em TI, tropecei na bolsa de valores. Acredito nas estrelas, não nos astros. Resenho pessoas e o tempo presente.