Fake News e o totalitarismo

Bruno Oliveira
Revista Marginália
11 min readJul 10, 2019
Fake news também aparece em horário nobre

Fake News (tradução literal: notícias falsas) são publicações com conteúdo falso, divulgadas intencionalmente como se fossem informações reais e verdadeiras. O objetivo é reverberar um determinado ponto de vista e/ou difamar a reputação de outra pessoa ou grupo (geralmente figuras públicas). O que mais chama a atenção, nesse tipo de divulgação, é a sua capacidade de se espalhar exponencialmente e atingir diversos públicos, quase sempre utilizando de conteúdo emocional àqueles que consomem o material.

As fake news existem há muito tempo, e não é nenhuma novidade. Quando Armstrong pisou na Lua, houve uma série de boatos sobre o feito ter sido realizado dentro de algum estúdio de cinema [1]. O que a contemporaneidade trouxe foi uma forma de transmissão diferente, de maior alcance e impacto em massa — e o objetivo deste artigo é justamente entender um pouco desse “fenômeno”.

Isso [disseminação das fake news] acontece principalmente porque o capitalismo digital de hoje faz com que seja altamente rentável produzir e compartilhar narrativas falsas que atraem cliques — Evgeny Morozov, no livro Big Tech: ascensão dos dados e morte da política

Outro ponto importante é entender como as fake news possuem relação estreita com o totalitarismo. E, para isso, precisamos falar de Hannah Arendt. Ela entende que o domínio total no totalitarismo advém do controle do domínio de tempo[2] — domina-se o passado, para conquistar o presente e o futuro. O que Hannah informa como domínio do tempo está relacionado ao controle da história, isto é, como aquilo que já aconteceu é apresentado para as gerações subsequentes [3] — o que inclui o revisionismo histórico.

O marketing nazista utilizava-se do recurso desde aquela época como arma para estabelecer o totalitarismo

Mas, se antigamente os governos possuíam estruturas robustas de controle de imprensa e profissionais altamente capacitados (como Goebbels) para difundir essas notícias, porque hoje em dia qualquer pessoa no conforto de sua casa pode começar uma campanha maciça para difamar a imagem de uma pessoa? Bom, penso que houveram alguns fatores que corroboraram:

1. Modelo tradicional de imprensa não está preparado para o digital

O modelo de negócio dos principais jornais do mundo sempre foi baseado em credibilidade — não que as mídias tradicionais sejam imparciais, longe disso, não existe neutralidade mas pode existir sempre a transparência. E isso é significativo, pois boa parte dos veículos de imprensa sempre viram a Internet como uma ameaça, e não como uma oportunidade [4]. Enquanto o grande público migrou rapidamente para as mídias digitais, as mídias tradicionais fizeram movimentos tímidos, e o espaço que sobrou foram ocupados por grupos independentes e formadores de opinião, que frequentemente levanta as bandeiras ideológicas nas notícias que compartilham.

De uma certa forma, o boom das fake news representou uma entrada mais forte dessas mídias nas redes sociais [4], e até passaram a oferecer novos tipos de conteúdos (como fact checking). Ao mesmo tempo, encontram um público diferente de outrora: o que esse público define como verdade, já não está mais relacionado ao fato, mas aquilo que mais chega perto de suas convicções pessoais. O modelo tradicional baseado em credibilidade, sozinho, já não é mais suficiente no mercado atual de consumo de notícias.

Em estudo [7], com base em 21 páginas que postam “fake news” e 51 de jornalismo profissional. Para a primeira, o nível de engajamento foi aumento de 61,6% em relação ao último período; enquanto para o segundo, houve queda de 17% no mesmo período. O estudo faz uma distinção entre o antes e depois da mudança do algoritmo do Facebook, que basicamente definiu diminuir o alcance de publicações de jornalismo.

Comparação de engajamento [7]

2. Neutralidade da rede não é respeitada

A neutralidade da rede (garantida pelo Marco Civil da Internet) impõe a necessidade dos provedores dos serviços de Internet em não privilegiar determinados fluxos de dados na rede mundial de computadores, mantendo o acesso igualitário, independente do conteúdo. A questão é que isso nem sempre funciona. Um exemplo clássico são algumas operadores de celular que oferecem planos de celulares em que o consumo de banda de algumas redes sociais (ex: WhatsApp) seja gratuito. As pessoas recebem as informações por essas plataformas, mas não saem dali para ler a notícia inteira ou mesmo checar informações, pois fora da plataforma o serviço será cobrado.

“No Brasil, 60% dos celulares são pré-pagos e têm acesso grátis a essas redes sociais, oferecido pelas operadoras [que não descontam do pacote de dados o acesso a esses serviços]. Então, essas pessoas que usam pré-pago ficam rendidas a essas fontes de informação e interação.” — Yasodara Córdova, Digital Harvard Kennedy School

3. A legislação não está preparada

No Brasil não há uma lei específica que trate de fake news. No âmbito eleitoral, há o artigo 297 do Código Eleitoral (Lei n. 4.737/65) e o artigo 33, § 4º, da Lei das Eleições (Lei n. 9.504/97) criminalizam, respectivamente, as práticas de impedir ou embaraçar o exercício do sufrágio e divulgar pesquisas eleitorais fraudulentas [5] — mas para qualquer outro campo não há muitos caminhos que possam ser seguidos.

E a legislação ainda gera outro tópico de discussão: de quem é a responsabilidade pelo controle das fake news? As empresas de redes sociais e de mensageria instantânea sempre se abstém da responsabilidade, e a deixa a cargo dos usuários. O artigo 19, do Marco Civil da Internet, informa que “com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário”. Desse ponto de vista, a responsabilidade passa a ser dos usuários e não da plataforma, até que a justiça diga o contrário [5]. Ou seja, campo aberto para pessoas má intencionadas explorarem os espaços das redes sociais.

E não é só a legislação. A estrutura do Brasil, como um todo, é precária no combate as fake news. O escritor inglês Misha Glenny (especialista em assuntos de fraudes na Internet) diz: “ O país tem muitos usuários de internet competentes, muitos bons engenheiros de softwares, mas as estruturas governamentais do país são subdesenvolvidas” [10].

Evgeny Morozov (escritor do livro Net Desilusion) entende que é preciso multar as empresas de tecnologia que permitem a difusão de fake news — e que, em última instância, lucram com isso, já que sua lógica de negócios é manter o usuário ativo para vender anúncios e coletar seus dados pessoais [12].

“Um erro só se propaga e se amplifica, só ganha vida com uma condição: encontrar um caldo de cultivo favorável na sociedade onde se expande. Nele, de forma inconsciente, os homens expressam seus preconceitos, seus ódios, seus temores, todas as suas emoções” — Marc Bloch

Tecnologia a parte, há duas coisas que torna um fake news viral [8]: viés de confirmação e as câmaras de eco. O viés da confirmação refere-se a tendência de uma pessoa manter e reforçar sua crença inicial mesmo quando deparados com fatos e argumentos que demonstre exatamente o contrário. Em debates, as pessoas sempre tendem a manter suas posições iniciais — e isso é reforçado quando você já sabe qual são os viés de determinadas pessoas e passa a reforçá-los com mensagens direcionadas (independente do conteúdo ser verdadeiro ou não). As câmaras de eco são as pessoas / entidades reconhecidas como reverberadoras, ou seja, aqueles que possuem certa autoridade e reconhecimento sobre determinado público, e que são responsáveis por repassar as informações aumentando o alcance e relevância delas — nesse caso, a criação de perfis falsos e o patrocínio de personalidades chave passa a ser uma estratégia eficiente para difusão das informações.

O próprio mecanismo do Facebook (CrowdTangle) consegue filtrar os casos mais gritantes de fake news, eles poderiam agir mais ativamente nesses casos (mas a legislação não gera esse senso de urgência nos provedores de Internet e serviços web) [7]

O poder do viés de confirmação e das câmaras de confirmação podem ser utilizados para impulsionar várias narrativas, como nas eleições estadunidenses em que o Trump foi eleito. Baseado em alguns serviços de coleta de informações de usuários do Facebook, especialmente através do Cambridge Analytica. Era possível definir perfis de usuários e a partir disso encaminhar “propaganda” direcionada para reforçar o viés de confirmação daquelas pessoas e utilizar boa parte das páginas influenciadoras desses usuários para ecoar a notícia. Pronto! Você fidelizava parte do seu eleitorado dando a eles a convicção de que aquilo que eles estavam compartilhando era o correto a se fazer (e não necessariamente verdadeiro).

A religião é um dos grandes motivadores de fake news. Eles potencializam o viés de confirmação de seus fiéis e são câmaras de reverberação poderosas. O próprio Papa Francisco já fez uma auto-crítica sobre o tema.

Mercado de fake news

Boa parte dos partidos políticos entendem as estruturas que facilitam a difusão de fake news como se fosse um verdadeiro jornalismo, e isso criou toda uma indústria. O correio Brasiliense realizou reportagem interessantíssima sobre o que eles chamam de “Mercenários das fake news”, explicando todo o processo desde a contratação de profissionais até a divulgação dos conteúdos em si. Vale a leitura.

O produtor de fake news não busca que uma notícia falsa se transforme em verdadeira. Ele quer apenas legitimar a dúvida. [10]

O termo pós-verdade foi escolhido como o termo do ano pela Universidade de Oxford, em 2016 (ano da eleição de Trump e do Brexit) — fatos objetivos são menos importantes para a opinião pública do que o apelo emocional e as crenças pessoais [11] — também conhecido como dissonância cognitiva. Desde então, diversos estudos começaram a entender melhor os números por trás desses fenômenos.

A empresa Trend Micro, através de seu estudo “The Fake News Machine” nos entrega alguns números no mundo:

  • 30 sites públicos que prestam serviços específicos de fake news: 10 russos, 5 americanos, 2 indianos, 2 árabes e 1 peruano;
  • orçamentos de U$ 2,6 mil até U$ 400 mil — com possibilidade de (i) criação de web celebridades, com mais de 300 mil seguidores, até (ii) manipular opinião pública e, pasmem, organizar protestos nas ruas;

“Há toda uma rede de robôs que ajudam a elevar a reputação de um site ou uma empresa, colocando suas páginas ou aplicativos em posições melhores, seja no Google, ou na Apple Store.” — Trend Micro

Ciberutopia

E como essa situação está conectada com a implementação do totalitarismo?

Em 2011, o livro Net Delusion (sem versão brasileira) criticava o que chamava de ciberutopia: uma crença utópica de que o acesso à Internet iria fortalecer a democracia — na verdade, o autor (Evgeny Morozov) entendia que a tecnologia poderia servir muito bem ao totalitarismo [12].

Hoje, a comunicação não é como era antigamente, onde o ato de mandar uma carta continha o único objetivo de se comunicar. Hoje, o ato de comunicar tem valor econômico, as pessoas envolvidas na comunicação, o meio utilizado e o conteúdo da mensagem tornaram-se produtos. Morozov diz que a democracia está em perigo justamente por essa mudança radical na forma em que produzimos e consumimos informações — hoje, seguimos a lógica de negócios das empresas de tecnologia e comunicação: coletar dados. E isso muda tudo: os dados ajudam algoritmos extremamente sofisticados a tomar decisão e influenciar pessoas de forma mais efetiva — seja para te recomendar uma série no Netflix, recomendar páginas para seguir em redes sociais ou escolher seu novo presidente.

É um equívoco dizer que hoje estamos mais conectados [12]. O que existe hoje seria um capital global que se beneficia dessa troca de produtos mais baratos entre os países, entre outras vantagens econômicas. Um muçulmano na Arábia Saudita não está mais próximo de um brasileiro só porque ambos podem trocar e-mail entre eles de graça. Na prática, a Internet serve para tornar aparente aquilo que antes parecia ser invisível — como nossos preconceitos.

Nunca fomos tão exposto a diversidade. Mas se por um lado isso pode dar a impressão de que isso seria suficiente para nos aproximar e ter empatia pelas outras pessoas, na prática se mostra o contrário. Robert Puttman, em estudo, apresenta que a vivência com a diferença, ao invés de nos unir, incentiva-nos ao isolamento, em um processo contínuo de tribalização da sociedade [13] — e por conseguinte a ideia do eu contra eles. Pessoas em silos possuem idiossincrasias muito marcantes e fáceis de detectar na coleta de dados, o que torna alvos fáceis de manipulação.

Se em algum momento pensamos que a Internet iria nos trazer um acesso infinito a informação, na prática nos apresentou um mar de ruídos e algumas iscas para sermos usados em massas de manobras e sermos dominados por nossos preconceitos.

Não a toa, fortes campanhas na Internet forçam pessoas a fazerem coisas estúpidas

Combate a fake news

A maioria das pessoas devem imaginar que a melhor forma de combater as fake news é com educação. E não chega a estar errado. Mas só educação formal aparentemente não resolve. Primeiro, existe alguns questões estruturais e contemporâneas, que foram pinceladas nos tópicos acima, que precisam ser resolvidas. Segundo, países considerados desenvolvidos em relação a educação, como os EUA, sofrem tanto quanto sofremos por aqui. Em pesquisa conduzida pela Universidade de Stanford, indica que boa parte dos jovens norte-americanos (40%) não conseguem identificar uma fake news.

A primeira recomendação aqui é estar consciente quanto as aplicações e as permissões que elas terão sobre seus dados, tanto no Facebook, aplicativos de celulares e outras plataformas. Lembrando que, quando utiliza-se um produto que seja gratuito, muito provavelmente aquilo não é o produto, o produto é sempre os dados do usuário. A segunda recomendação é resistir a tentação de compartilhar as fake news, e aí não tem muito o que fazer, a melhor forma de resistir ao viés de confirmação e as câmaras de eco é (i) adotar o hábito de sempre sair de suas próprias bolhas sociais/intelectuais, (ii) estar aberto a novas ideias ao mesmo tempo em que se pratica o bom ceticismo e pensamento crítico, e principalmente, (iii) denunciar, combater e educar as pessoas que realizam essa propagação de fake news.

Referências (e sugestões de leituras):

[01] Ramon Brandão. “Fake News são antigas. Nova é a forma de disseminação”. Observatório da Imprensa.

[02] Vitor Emanuel Dias da Silva. “O totalitarismo em Hannah Arendt”. Dissertação para o Mestrado em Filosofia — Ética e Filosofia Política. Universidade do Porto, 2010.

[03] Araré Carvalho e Wladimir Miguel Rodrigues. “H. Arendt, Fake News e a Nova Política”. Jornal Estadão.

[04] Euler de França Belém. “Fake news devolveram os leitores aos jornais tradicionais”. Jornal Opção.

[05] Anderson Schreiber. “Verdades e mentiras sobre Fake News”. JOTA.

[06] BBC News. “Pensamento crítico não é copiar críticas dos outros: especialistas debatem meios de combate às fake news”.

[07] Natália Portinari e Raphael Hernandes. “Fake news ganha espaço no Facebook e jornalismo profissional perde”. Jornal Folha de São Paulo.

[08] Bruno Oliveira. “Como eram feitas as análises do Cambridge Analytica”. Medium 2018.

[09] Flavio Claudio Tropea. “Fake News, reflexão Final”. Jornal Nova Fronteira.

[10] Leonardo Cavalcanti. “Fake News — Memórias de Mercenários”

[11] Machado da Costa. “Estudo revela como funciona a industria de fake news no mundo”. Revista Istoé Dinheiro.

[12] Amanda Rossi. “Empresas que permitem disseminação de fake news devem ser multadas, diz um dos principais teóricos sobre a relação entre política e tecnologia”. BBC News Brasil.

[13] Richard Sennett. “Cooperação intelectual é o desafio das fronteiras do conhecimento”. Fronteiras do Pensamento.

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Bruno Oliveira
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Auditor, escritor, leitor e flanador. Mestrando em TI, tropecei na bolsa de valores. Acredito nas estrelas, não nos astros. Resenho pessoas e o tempo presente.