Gabinete orwelliano

Tayara Causanilhas
Revista Marginália
5 min readJul 14, 2020

Orwelliano: que descreve o engano oficial.

Reprodução: Google.

Conceitualmente (sim, vai ser um texto chato), a liberdade de expressão pode ser definida como o direito que permite as pessoas manifestarem suas opiniões e, de mesmo modo, o direito que autoriza que as informações sejam recebidas por diversos meios, de forma independente e sem censura.

Ainda assim, esse não é um conceito exaustivo. O direito à liberdade de expressão, no Brasil, deve ser entendido com duas dimensões básicas: a individual e a social.

Na individual, a liberdade de expressão não se esgota no reconhecimento do direito de falar e escrever, compreendendo, inseparavelmente, o direito de utilizar qualquer meio apropriado para difundir o pensamento e torná-lo público. Entende-se que a CADH, ao afirmar o direito de difundir ideias e informações por qualquer procedimento está perpetuando que a expressão e a difusão de pensamentos são indivisíveis; que o direito à liberdade de expressão compreende esses aspectos de forma paralela e concomitante.

Na social, a liberdade de expressão é um meio de intercâmbio de ideias e informações com finalidade social. Para a sociedade, é tão fundamental que a informação chegue e difunda-se quanto é para o particular o ato de difundi-la. O conhecimento, especificamente sua divulgação, é, portanto, protegido no aspecto da tutela do direito.

Com essa explicação básica, é possível até depreender certa legitimidade na existência de um gabinete proposto para disseminar fatos que tangenciam a verdade do governo — e não necessariamente fatos verdadeiros.

Existe realmente um problema no gabinete do ódio?

No livro 1984, de George Orwell, existe uma situação bastante similar a descrita. O romance, publicado em 1949, tem em sua narrativa: uma província de um superestado, em um mundo de guerra perpétua, vigilância governamental onipresente e manipulação pública e histórica.

Reprodução: Google.

Na distopia, lê-se sobre um mundo no qual os cidadãos são constantemente vigiados em um regime político totalitário. Uma das principais formas de controle desse regime é o controle da informação.

Logo nas primeiras cenas do livro, temos uma das personagens principais buscando, em sua casa, um canto de privacidade enquanto uma televisão — que é a maior forma de controle daquela população porque, ao mesmo tempo, vigia quem está no ambiente e empurra informações 24/7- faz sua vigilância: de ideias, de espaço e de vida.

Vale relembrar, aqui, que o grande veículo de informação à época do lançamento desse livro era a televisão, cujas pesquisas remontam a 1920, mas que se tornou o grande veículo de informação do século XX — em sendo assim, muito coerente que Orwell utilize desse parâmetro para demonstrar a manipulação da informação.

No mesmo romance distópico, tem-se um partido e um governo que perseguem o individualismo e a liberdade de expressão como “crime de pensamento”, que é aplicado pela “Polícia do Pensamento”.

A obra popularizou o adjetivo orwelliano, que descreve o engano oficial, a vigilância secreta e a manipulação da história registrada por um Estado totalitário ou autoritário.

Reprodução: Google.

O século XXI, no entanto, criou novas formas de relacionamento e informação. A internet e o uso das mídias sociais transformou completamente o fluxo da liberdade de expressão — elevando-a a extremos nos discursos mais variados.

O filósofo Gilles Deleuze (1925–1995) aperfeiçoa a conceito de sociedade do controle para aproximar-lhe ao que vive-se na era digital. Trata-se de um movimento em que, de forma sutil e constante, tenha-se a administração dos indivíduos, sem que eles percebam.

É quase como se existisse alguém sussurrando para você, via facebook, twitter e instagram, o que é realmente certo. Um controle sutil e constante ao qual não estamos atentos.

A Sociedade do Controle surge quando toda a vida do indivíduo é determinada sem que ao menos ele perceba. Então, a delimitação do espaço e do tempo deste indivíduo é feita de maneira singular e, principalmente, tão agressiva que se torna sutil. Soma-se ao fenômeno o controle da criação e do acontecimento.

Assim, as notícias falsas — fake news — começam a criar uma realidade manipulada, seja para o caos, seja para o controle dos indivíduos que as leem como se fossem verdadeiras.

Assim que, em julho de 2020, o então governo do presidente Jair Messias Bolsonaro é acusado de manter, desde 2018, um gabinete apenas com o intuito de disseminar notícias falsas.

Qualquer semelhança com 1984 é mera coincidência, afinal, nosso querido governo não tem qualquer traço de totalitarismo (sic, ironia).

Reprodução: Google.

O que eu quero desenhar aqui, para além da gravidade da manutenção, pelo governo, de uma postura completamente anti-democrática, é o seguinte:

Não é liberdade de expressão.

De novo, não é liberdade de expressão.

Ok? ok.

Prosseguindo: quando um governo dissemina notícias propositalmente falsas, seja com qual for o intuito, ele está ferindo a ordem democrática. E antes que você, defensor assíduo do nosso regime de imagens, venha evocar a liberdade de expressão, gostaria de comentar que isso NÃO faz parte do aspecto social da liberdade de expressão (é só subir a página).

Muito embora a liberdade de expressão compreenda, também, o direito de disseminar ideias e pensamentos de quaisquer tipos, existe um limitante muito grave a este pensamento. Uma restrição autorizada.

Integridade do bem público.

O que é isso? A integridade do bem público contempla tudo que possa ferir ao Estado, conforme previsto na Constituição. E na Convenção Americana de Direitos Humanos.

E no bom senso, também. Mas isso eu confio que você tenha.

Por exemplo (e apenas uma hipótese): digamos que a constituição fale em democracia.

A partir do momento em que o governo (ou um órgão governamental ou um gabinete cuja peça principal seja um deputado) veicula notícias que distorcem a verdade, como o número de mortos em uma pandemia, isso fere o bem público porque fere a democracia.

A transparência governamental é um ponto gritante na democracia, aos que não sabem.

Portanto, fica aqui o recado para o gabinete do ódio e aqueles que o defendem: pode ser muita coisa, mas liberdade de expressão não é.

Reprodução: Instagram

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Tayara Causanilhas
Revista Marginália

o caos acometeu e eu não deveria ficar acordada. aprende a viver agora, Tayara.