Huxley, Deleuze e Vedder: a névoa da felicidade humana

Tayara Causanilhas
Revista Marginália
10 min readOct 12, 2019
Into the Wild (2008)

Oh, it’s a mystery to me
We have agreed with which we have a greed
And you think you have to want more than you need
Until you have it all you won’t be free
Society, you’re a crazy breed
Hope you’re not lonely without me

A música referenciada acima foi feita para o filme Into the Wild, que trouxe aos cinemas a história de Chris — Alexander Supertramp — , um jovem, filho de uma família rica, que após ter se formado com certo prestígio na universidade de Emory pega seu carro e pretende fugir da sociedade para encontrar a Verdade humana.

O jovem está incorfomado com os moldes que os pais cobram de vida: é preciso ter um carro mais novo, é preciso ter mais uma titulação para além da graduação já realizada. É preciso ter um emprego, uma família, estabilidade. É preciso construir uma vida na expectativa social do modelo pronto de felicidade.

Mas a graduação de curso não o deixou mais feliz ou triste. Ter um carro de segunda mão que lhe atende não o tornou pior. Principalmente: viver o barulho da sociedade o enlouquece.

E o que isso tem a ver com a linha crítica que esta Revista desenvolve? Talvez nada. Talvez tudo. A realidade é que a sociedade se formou nos moldes fordistas de vida… E que se tornou quase insuportável para encarar.

A sociedade imprime no ser humano a ideia de “um pouco mais”. Você precisa ser mais, fazer mais, entregar mais. Ser um pouco mais que os seus pais. Trabalhar mais para ter mais e fazer mais. Assim, a busca da felicidade tornou-se a busca desenfreada pela realização em bens materiais e conquistas passageiras. Em comprar e ter coisas. Em fazer e fazer e fazer para ter e ter e ter.

E, da mesma maneira, a sociedade acabou por adoecer… surtar. Somos a sociedade mais doente, em termos de depressão e ansiedade [1]. Somos quem mais tem, com menos felicidade.

Em última análise, estamos tão absortos nestas conquistas para a suposta felicidade e a cobrança quase invisível de termos mais para sermos mais felizes que acabamos adormecendo na ideia de que, nesse caminho, ter é ser.

Enquanto trabalho X horas por dia, estudo por Y horas por dia, me desloco de um local ao outro, demando de mim alguns minutos para refeições e as horas de sono, além de talvez ter 30 min de exercício, eu fui perdendo o mais simples contato comigo.

Eu fui adormecendo.

Se você já tentou desligar o celular e as mídias, se você já tentou sair dessa lógica de trabalho-redes sociais-casa-redes sociais-trabalho-tvenquantoestácomaredesocialnamão, e não conseguiu: bem vindo, você está adormecido.

A monotonia sempre existiu. Sentir-se amortizado, não.

Depois de perceber isso, a agonia começou a crescer em mim. E eu comecei a pensar: é completamente assustador ver que eu estou completamente doada ao que esperam de mim, mas não sei o que eu quero de mim.

E mais, não importa o que eu faça, não importa o quanto eu me doe — eu não posso fazer nada para controlar aquele “futuro bem sucedido” que todos me prometem se eu atender às expectativas. Porque, para a nossa sociedade, as expectativas, que refletem a felicidade, tem muito a ver com a materialidade, seja de bens ou de conquistas. Quanto mais eu tenho, mais feliz eu sou.

O problema é que talvez todas as coisas conquistadas não sejam propriamente pra mim e, por isso, não se tratam de nada além da mera conquista. E de tão banais, elas não constroem nada. Eu não as defendo, porque não faz sentido para mim.

Não me falta nada, mas não posso dizer que sou feliz.

E foi completamente perdida entre o que tem em mim e o que me faria feliz que busquei um dos meus autores preferidos, novamente, e achei uma obra prima.

Este texto trata da resenha de A Ilha (1962), de Aldous Huxley (1984–1963).

A Ilha é um livro para além de qualquer maniqueísmo. Último romance do autor, o livro busca, ao contrário de seu famoso Admirável Mundo Novo, uma sociedade perfeita, utópica, que uniria o melhor do mundo oriental com o melhor do mundo ocidental.

Um jornalista, que vive fora dessa lógica de união de dois mundos, acaba, de alguma maneira, chegando à Ilha de Pala. Encara sua primeira e inusitada experiência: “atenção”, lhe diz o Mainá. “Atenção”.

Trata-se de um pássaro ensinado, como um papagaio tranvestido de tucano, para lembrar-nos do fundamental. “Atenção”. “Aqui e agora”.

Quando se dava atenção ao Mainá, a dor não era tão forte.

Em Pala, todos parecem muito tranquilos. As perturbações parecem, apenas, sobrevoar sobre seu povo, sem que de fato lhes aflija qualquer sofrimento. A verdade é que o distanciamento acontece por uma série de verdades que carregam em sua criação, fundamentalmente budistas.

Desde a educação até a morte, o autor dá respostas que permeariam uma vida mais significativa. A felicidade não mora nos bens e o propósito não é a materialidade: o que se busca em Pala é o desenvolvimento da maior potencialidade daquele ser humano.

Honra-se a natureza, não são abolidos os temas da morte. Principalmente, a conexão consigo e a vivência das experiências para o momento presente marcam os moradores da Ilha. Todos, sem exceção, vivem naquele momento sem atormentarem-se pelo passado ou ansiarem ao futuro. A virtude está em conhecer-se tal como o momento presente, encontrando-se no que te faz, sobretudo, bem — basicamente, o que condiz com a sua realidade, com quem você é, realizando a sua humanidade a serviço do bem-estar social.

A felicidade mora na plena virtude humana.

Aldous Huxley

Para mim, às vezes a coisa certa a se fazer não está muito clara. Desde muito pequena, o ritmo frenético das coisas me incomodou e eu fico perturbada com o barulho incessante do mundo. É como que se os questionamentos viessem em ondas e se provassem, a cada dia, mais e mais intensos pela mera experiência do mundo.

Eu quero fazer o melhor da minha virtude humana, mas o que me foi ensinado é que a realização está na materialidade. O problema é que eu não me sinto realizada na materialidade. Ela me sufoca.

Então, eu não consigo viver nessa produtividade fordista em busca de materialidade para postar no instagram a felicidade forjada da minha vida. A sociedade me cobra que eu faça mais. Eu tenho que fazer uma faculdade e depois obter um título. Eu tenho que ter 100% de produtividade no trabalho. Eu tenho que fazer e realizar, tenho que melhorar de apartamento e viajar frequentemente. Eu tenho que trocar de carro e ter roupas suficientes que não se repitam por um mês.

Eu tenho que estar adormecida nessas preocupações e tudo isso se tornará mecânico até que cada conquista dessa não me importe mais, para que eu busque a próxima.

Eu tenho que me manter ocupada com todos os tipos de distrações, de televisão à redes sociais, para eu não perceber a sociedade que eu vivo.

Que ela está doente, e está adoecendo pessoas.

Em Pala, não existe a cobrança. Existe a atenção, o aqui e o agora. A morte não assusta e as ameaças são vistas com integridade por aqueles que ali vivem. Porque, uma vez que você é um ser humano inteiro e desperto, não existe desespero pelo que está por vir.

Existe apenas a certeza de que se faz o que se pode fazer.

O século XXI transformou completamente o tipo de cobrança que se faz do indivíduo. Agora, ela é sutil e constante. A isso, não estamos atentos. O filósofo Gilles Deleuze (1925–1995) recorda e aperfeiçoa alguns conceitos que parecem evidentes sintomas dessa sociedade atual.

Gilles Deleuze (1925–1995)

É assim que se debruça sobre os conceitos de disciplina, poder e sociedade de controle.

Para o filósofo, é possível perceber uma transição da sociedade disciplinar para a sociedade do controle. A primeira era a sociedade que, para obter o controle, operava pelo confinamento massivo — por exemplo, as sociedades com longas jornadas de trabalho.

Contudo, o que se percebeu é que, nessas sociedades, a disciplina ficava aquém do que se esperava justamente por esse excesso de controle. É mais desejável que a disciplina seja uma constante e, portanto, flua da vontade do ser humano.

A Disciplina é uma maneira de se exercer o Poder, sendo este uma relação de forças que só reprime em última instância. A vigilância permitia que a disciplina operasse com um custo reduzido o que, por sua vez, difundiu os mecanismos disciplinares socialmente. A formação da sociedade disciplinar se dava nesse processo de produção de individualidade onde cada um é vigia de si e dos outros.

A Disciplina, nesse pensamento, é visto como um tipo de captura para reduzir, mitigar ou mesmo aprisionar qualquer tipo de diferença. A diferença deve ser reduzida ao mínimo e regulamentada, transformando-na em Controle. E assim, surge a Sociedade do Controle.

A Sociedade do Controle surge quando toda a vida do indivíduo é determinada sem que ao menos ele perceba. Então, a delimitação do espaço e do tempo deste indivíduo é feita de maneira singular e, principalmente, tão agressiva que se torna sutil. Soma-se ao fenômeno o controle da criação e do acontecimento. A diferença vale tanto quanto vende. O conceito é um comercial na televisão.

A passagem da sociedade disciplinar à sociedade de controle se caracteriza, inicialmente, pelo desmoronamento dos muros que definiam as instituições. Haverá, portanto, cada vez menos distinções entre o dentro e o fora” (Hardt, A Sociedade Mundial de Controle)

O controle, nessa sociedade, se caracteriza como algo etéreo, abstrato. A angústia de estar sendo consumido por uma série de atividades que não são ativamente impostas, mas nos são impostas nas entrelinhas, é um dos sintomas dessa dominação enevoada.

Hoje, o controle é, sobretudo, virtual. Não existirá um tempo certo para que você se cerque de um ambiente controlado e depois seja livre. Nesse cenário, o controle também é oportunista. Buscará sempre os melhores ambientes e oportunidades para surgir.

É preciso falar também da mudança na produção de subjetividade. O Normal é produzido em espaço aberto. Não há mais passagem entre a escola, a faculdade e o trabalho. Há uma espécie de Conurbação Afetiva, bem monótona.

Não há mais espaços de não-controle. E, por isso, a ansiedade de corresponder a um ideal metafísico de disciplina e conquistas perfeitamente desenhado para um ser humano único, sem pluralidades ou peculiaridades.

A sociedade de controle funciona por redes flexíveis moduláveis, como uma moldagem auto deformante que mudasse continuamente, a cada instante, ou como uma peneira cujas malhas mudassem de um ponto a outro”

– Deleuze, Conversações

São muitos os momentos em que as sociedade do controle se veste em forças, como nas bolsas de valores, mídia, bancos, empresas, publicidades, redes sociais… Todos esses estão basicamente construindo o ideal único de ser humano sem diferenças.

E é precisamente neste momento que Huxley retoma ao texto: em Pala há, também, a captura de algumas diferenças — mas esta captura é realizada sob o pretexto de diminuir o nível de ingerência destas pessoas sobre as demais. Cuida-se dos indivíduos enquanto crianças para que eles não se tornem agressivos ou maníacos por poder.

Na vida adulta, no entanto, não há mais o controle social coercitivo. Cada um entende o "seu papel no mundo" e o realiza, aceitando que aquele papel lhe cabe justamente por estar conformado em suas distinções.

Na sociedade em que vivemos, o controle não será rompido. Mas o seu nível de influência talvez possa ser diminuído, ou, ainda, a ansiedade que o controle nos gera pode ser, também enevoada. Para Deleuze, passaria por uma questão de compreensão de algumas verdades:

Primeiro, é preciso que as pessoas acreditem que as demandas sociais são verdades inquestionáveis, que o país só cresce quando os bancos lucram, que o produto melhor é o mais novo, que o metrô é o melhor uso do dinheiro público. Segundo, é preciso capturar as palavras perigosas. Experiência, conceito, ação, invenção. Só através da captura das máquinas de expressão é que se captura da multiplicidade em espaço aberto. É por esse motivo que as instituições da grande Mídia tem tanto poder. Ao disputar a narrativa, elas disputam a produção de pensamento.

A sociedade de controle resultará apenas em uma vida triste. Isto pode ser comprovado ao compararmos o aumento de doenças psicológicas no século XXI com os demais.

Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos completamente o mundo, nos desapossaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfícies ou volume reduzidos”

– Deleuze em entrevista a Antonio Negri

E a tristeza estará pautada na ansiedade de ser quem não se é para atender ao metafísico que não se compreende. Obedecer aos comandos abstratos tornou-se hábito. Ser consumido pelo "mais, mais, mais" é o sintoma de uma sociedade de controle, ao que me parece inescapável.

O que se pode fazer é, nesse caso, não se manter são.

Referências Bibliográficas

[1] https://anadem.org.br/site/depressao-e-ansiedade-os-males-do-seculo-xxi/

Deluze, em entrevista. Disponível em: Gilles Deleuze — ENTREVISTA a Toni Negri (1990) — clinicandclinicand.com › 2018/04/28

DELEUZE, Gilles. Conversações.

LAURO, Rafael. Deleuze, sociedade de controle. Disponível em: https://razaoinadequada.com/2017/06/11/deleuze-sociedade-de-controle/

HUXLEY, Aldous. A Ilha. Biblioteca Azul, 2019.

VEDDER, Eddie. Society. Disponível em: Eddie Vedder — Society (HD) — YouTube

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Tayara Causanilhas
Revista Marginália

o caos acometeu e eu não deveria ficar acordada. aprende a viver agora, Tayara.