O Golpe de 64 e a primordialidade de novas construções históricas

Marina Moreno de Farias
Revista Marginália
5 min readMay 31, 2019

Marina Moreno, nova redatora de artigos técnicos/de opinião da revista Marginália. Graduanda em Relações Internacionais, Pesquisadora de Projeto de Pesquisa Científica de Migração e Direitos Humanos, Auxiliar de Marketing e Eventos do Diretório Acadêmico Sérgio Vieira de Mello, Monitora de Teoria Política, Secretária Geral do Florescer Coletivo Feminista e instrutora de língua inglesa.

Foto: Evandro Costa/Passeata dos Cem Mil-Gov. Castelo Branco

Próximo a 1° de abril de 2019, data que marca os 55 anos do Golpe de 64, o Presidente da República determina ao Ministério da Defesa que sejam realizadas as ‘’comemorações devidas’’. Em uma época onde impera a ode à mediocridade e o crescimento das falsas informações, faz-se necessária uma releitura e uma construção da verdade do Regime Militar no Brasil.
Para entender os fatores que levaram ao golpe e todo seu desenrolar, é de fundamental importância um breve histórico e o esclarecimento de certos conceitos.

O primeiro deles sendo o Militarismo: Uma doutrina que acredita no melhor governo quando este é guiado por conceitos militares. Não é de 64, no entanto, que se origina o militarismo; há desde a Proclamação e de fato, da República Velha, uma longa tradição de tutela militar sobre o sistema político brasileiro, que vem delimitando os limites da experiência democrática cada vez que esta começa a alargar suas bases. Nasce com a proclamação da República por Deodoro da Fonseca uma rivalidade ao longo do Império entre os militares e a sociedade civil. As Forças Armadas, sobretudo o Exército, por participar da Guerra do Paraguai entendia-se como a grande detentora do Patriotismo e dos espaços em que se faz política. Contudo, esse episódio constrói apenas um capítulo de atuação do militarismo na história; o Golpe caracteriza-se como civil-militar: atende à burguesia, às grandes elites que
tinham interesse em sua articulação. O principal motivo para o caos conspiratório que culminou no Golpe foi o plano das Reformas de Base do então presidente, que pretendia mexer nas estruturas que há tanto comandavam o país, como a Reforma Agrária, que pretendia sacudir os pilares da tão aclamada sociedade brasileira que atendia às classes
dominantes.

‘’Toda e qualquer reivindicação da mais elementar reforma financeira burguesa, do mais trivial liberalismo, do mais formal republicanismo, da mais banal democracia é simultaneamente punida como ‘atentado contra a sociedade’ e estigmatizada como ‘socialismo’’ — Karl Marx.

Assim, sob o comando do general Olímpio Mourão Filho precipitam-se as tropas em Juiz de Fora (MG) e está dado, em 1° de abril de 1964, o Golpe Militar no Brasil. Deposto Jango, surge Castelo Branco para presidir o país; Entramos agora em uma das controvérsias da história: A “moderação” de Castelo Branco. A caracterização de Castelo de moderado e “legalista” traduz uma concepção de como as memórias são usadas como verdade absoluta em vez de apenas objeto de análise, já que, mesmo sem sujar suas próprias mãos de sangue, este e outros militares considerados “castelistas”, eram coniventes com a tortura e com o extermínio, sendo complacente com as arbitrariedades da “linha dura”; A tortura, a perseguição, a cassação de mandatos e o extermínio eram tidos como “maus menores”, necessidades conjunturais, quase como acidentes de percurso.

“No Brasil, a futura teoria do populismo, não obstante o eventual brilho de seus esforços, ocultará, por suas limitações analíticas, que não é Vargas e nem o nacionalismo que dão o “tom da política brasileira”. É a direita que tem esse papel: tergiversa sobre a legitimidade do regime, veta, golpeia, encerra-o em 64. Como não vê-lo!” — César Guimarães

No que tange outras acepções lugar-comum (como a idéia de que só após 1968 havia tortura e censura; a suposição de que os oficiais não tinham responsabilidade pelas torturas e assassinatos políticos, a classificação simplista dos militares em “duros” ou “moderados”), é líquido e certo que o projeto repressivo estava presente desde os primeiros momentos do Golpe, a violência sempre foi o sustentáculo do regime, documentos como o AI-5 (Ato
Institucional número 5, que fecha o Congresso, como represália ao discurso do deputado Márcio Moreira Alves, ao pedir ao povo brasileiro que as festividades de 7 de setembro de 1968 fossem boicotadas como protesto contra o governo militar) apenas enrijeciam e amadureciam um processo já iniciado, e não um “golpe dentro do golpe” como sugerem clichês.

‘’A Guerra está em nós, e permanecerá, com outros contendores e por outros meios, condicionando a vida política do Brasil no período que se encerra em 1964 e depois dele’’ — César Guimarães

A partir do AI-5 com o governo Médici, houve uma vitória definitiva da “linha dura”, a repressão já existente da censura da imprensa e das diversões públicas aumenta exponencialmente, sempre amparada pelo discurso de defesa da “moral e dos bons costumes”, pela necessidade de limpar e salvar a sociedade das ameaças ao Governo, um objetivo de Brasil potência, um combate interno a propaganda comunista (que precede, no entanto, em muito a Ditadura), a defesa da concepção da “família, da ordem, da propriedade”; a Doutrina de Segurança Nacional, que surgiu no cenário pós Guerra Fria, treinava militares brasileiros em cursos norte-americanos; a criação do Serviço Nacional de Informações (SNI) para eliminar os “inimigos do regime”, assegurando a segurança nacional; bem como a Escola Militar das Américas, que formava militares especialistas em técnicas de contra-guerrilha, tortura científica e interrogatório.

A partir desse amadurecimento do processo repressivo, surge o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) e o Destacamento de Operações de Informação — Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), responsáveis por inúmeras torturas e mortes. Sem escrúpulos, os militares envolvidos nestes sistemas, como o Coronel Brilhante Ustra, utilizavam-se das mais desumanas e degradantes formas de tortura. Não obstante, configura-se o desaparecimento e o exílio de milhares.

A ditadura militar no Brasil traduz-se na violência permitida e aprovada pelo Estado. No apoio dos Estados Unidos ao Golpe e ao combate contra o Comunismo. Na repressão da arte, da cultura, da sexualidade, da religião e dos valores que são intrínsecos de cada um e não devem estar sob a tutela estatal, e o Estado brasileiro falhou miseravelmente quando reprimiu, silenciou, torturou e executou a voz da oposição. E por isso torna-se tão basilar a criação de memórias para uma justiça de transição quanto aos assassinatos e perseguições políticas realizadas pelos agentes da repressão; tão inescusável a suscitação de uma narrativa com verdade histórica. Um povo que não conhece sua história vai invariavelmente, repeti-la. Só o acesso à informação e a construção de reflexões sobre o que foi, como foi e por quem se deu a Ditadura podem nos levar, a passos curtos, para mais perto de um país mais democrático, mais justo e mais pacífico. Sem memória, é impossível ter verdade e sem a verdade é impossível ter justiça.

Referências:
República no Catete; GUIMARÃES; César
Versões e Controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar; FICO; Carlos(UFRJ.Rev. Bras. Hist. vol.24 no.47; São Paulo; 2004)
18 Brumário de Luís Bonaparte; MARX; Karl

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