Os burgueses fanáticos pela ordem e a representação do Bolsonarismo

Marina Moreno de Farias
Revista Marginália
4 min readSep 1, 2019
30 de setembro de 2018, manifestação pró-Bolsonaro. Av Paulista. Foto: Reuters/Paulo Whitaker

Existe um ditado espanhol que diz “Crie corvos e eles te comerão os olhos”; não é preciso de muito arcabouço literário para compreender que o que se quer dizer aqui é, de uma forma talvez mais dramática, a máxima “o feitiço virou contra o feiticeiro”, ou até, suscitada no pós Golpe de 2016, “quem com golpe golpeia, com golpe será golpeado”, ou seja: a natureza dos eventos, ideias, atores, identidades e ações apoiadas por alguém irão, inevitavelmente, se voltar contra este. O Brasil de Jair Bolsonaro comprova tal ideia com veemência.

Recentemente, o humorista Marcelo Madureira, persona que atuou como proclamador da “nova política” de Jair Messias Bolsonaro, criando, juntamente com outros(como Maitê Proença, “ex-futura ministra”, que agora aparece em manifestações contra o governo) as bases para as atuações do Bolsonarismo, foi expulso a vaias e gritos de um carro de som em meio a protestos contra o projeto de Lei aprovado na Câmara dos Deputados que estabelece punições mais severas para crimes de abuso de autoridade. Esse evento nos traz três considerações principais, sendo todas correlacionadas e interdependentes:

(i) no Bolsonarismo não há espaço para crítica, (ii) qualquer reivindicação “da mais banal democracia” é caracterizada como uma investida contra à ordem e julgada de “comunismo” e por fim, (iii) a própria face desse Bolsonarismo é expulsa e escorraçada daquilo (e por aquilo) que com tanto fervor defendeu.

A primeira afirmação é só mais um lembrete daquilo que já sabíamos e que já foi atestado diante de ocasiões inúmeras (antes, durante e depois) da eleição de Jair Bolsonaro: não se pode questionar, debater, criticar nem propôr algo diferente daquilo escudado pelos defensores da “ordem, família, propriedade e religião”. A segunda explora que tudo o que diferir desses ideais(via de regra imbricados na identidade nacional, no imaginário coletivo e na ideia de Nação ¹ ) ou seja, “toda e qualquer reivindicação da mais elementar reforma financeira burguesa, do mais trivial liberalismo, do mais formal republicanismo, da mais banal democracia é simultaneamente punida como “atentado contra a sociedade” e estigmatizada como “socialismo”.”

Ideais não se dão em um vácuo, mas em um processo histórico e político, que formam uma estrutura, dessa forma, quando Madureira vai contra o proposto pelo símbolo tão aclamado pelo corpo eleitoreiro de Bolsonaro, ao criticar a postura de extermínio da Operação Lava-Jato, por meio de aliança entre Jair Bolsonaro e Gilmar Mendes(ministro do STF), o humorista foi caracterizado como inimigo, e inimigo não apenas de uma agenda específica, mas de todo o escopo das convicções tão caras para o Bolsonarismo. Nesse sentido, como observado aqui, qualquer ator, seja este um indivíduo, uma instituição, uma organização, um partido político, que se dispuser a pensar a partir de outras construções e criticar o que é colocado como regra, é rechaçado e tido como inimigo, mesmo que este ator demonstre apoio à esses grupos, mesmo que este ator seja um arauto da ideologia que agora critica.

Toda e qualquer reivindicação da mais elementar reforma financeira burguesa, do mais trivial liberalismo, do mais formal republicanismo, da mais banal democracia é simultaneamente punida como “atentado contra a sociedade” e estigmatizada como “socialismo”. E, por fi m, os próprios sumos sacerdotes da “religião e ordem” são escorraçados a pontapés dos seus trípodes pítios*, tirados das suas camas na calada da noite, enfiados em carruagens prisionais, jogados em cárceres ou mandados ao exílio, o seu templo é arrasado, a sua boca é selada, a sua pena quebrada, a sua lei rasgada, tudo em nome da religião, da propriedade, da família, da ordem. Burgueses fanáticos pela ordem são fuzilados nos balcões das suas casas por pelotões de soldados bêbados, as suas casas são bombardeadas por passatempo — em nome da propriedade, da família, da religião e da ordem. (MARX, KARL; O 18 Brumário de Luis Bonaparte. ed. Boitempo. 2011. p.36

Dessa maneira, o próprio conjunto de ideias(ordem, propriedade, família, religião) que garantiram o posicionamento do indivíduo em favor de uma ideologia, se vira contra este. Os próprios representantes desses ideais, antes considerados aliados, colegas e até mesmo amigos, se viram contra este indivíduo. A própria estrutura de sustentáculo irrestrito do movimento Bolsonarista se ataca, pela necessidade de “salvar a sociedade” dos “inimigos da sociedade”. Como explora Marx em 18 Brumário, “ Sempre que qualquer um dos numerosos partidos que haviam se conglomerado sob esse signo contra os insurgentes de junho tenta impor na arena revolucionária o interesse da sua própria classe, ele sucumbe diante do mote: “Propriedade, família, religião, ordem”. A sociedade é salva sempre que o círculo dos seus dominadores se estreita, sempre que um interesse mais exclusivo é imposto a um mais amplo.”

É nesse encalço que Madureira, aquele que fixou as bases de atuação e estendeu o tapete para o Bolsonarismo passar, se encontra: sendo escorraçado pelos monstros que ajudou a criar. Soa particularmente saboroso, simbólico e, cômico senão trágico, que precursores de um governo tenebroso como o de Jair Bolsonaro sejam rechaçados por tudo aquilo que defenderam. Sendo assim, só há uma afirmação possível e apropriada: Crie corvos e eles te comerão os olhos.

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¹ É possível perceber em momentos históricos que datam desde a Proclamação da República mas encontram maior respaldo e sua maior expressão durante o Regime Militar, ideais de Brasil potência, de correção de rumos (e por isso um combate interno ao comunismo como principal recomendação;que precede, no entanto, em muito a Ditadura.), a defesa da concepção da “família, da ordem, da propriedade”, levantados como identitários da nação brasileira, ações autoritárias sempre foram legitimadas pela noção de que qualquer expressão que fugia dos ideais de alguma forma considerados inerentes ao Brasil, era taxado de socialista, de comunista, eliminando assim todas as formas de oposição

Referências:

MARX, KARL; O 18 Brumário de Luis Bonaparte. ed. Boitempo. 2011. p.36

FICO, CARLOS; Versões e Controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar

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