Quem fala além da escala: a Constituição de 1988 — vista por mulheres

Tayara Causanilhas
Revista Marginália
6 min readMar 28, 2019
Benedita da Silva

De novo, vou explorar a cidadania feminina (ou a sua inexistência) no Brasil. Agora, caminhamos para a Assembleia Constituinte que resultou no texto constitucional de 1988, a retomada à democracia brasileira.

A última Assembleia Constituinte brasileira aconteceu em 1987 e teve como objetivo a redemocratização do Estado que saía de 20 anos de ditadura militar. No contexto, elegeram-se novamente parlamentares que integraram o poder originário constitucional, com intuito de traduzir a vontade popular para um documento que rege, até os dias de hoje, o povo brasileiro.

A eleição dos parlamentares constituintes ocorreu em 1986, definindo uma Assembleia composta por 559 parlamentares, dentre os quais 72 senadores e 487 deputados. Desses mais de 500 parlamentares, 26 deputadas foram eleitas para compor uma Bancada Feminina e defender direitos na Constituição Federal de 1988.

A Bancada Feminina, como ficou conhecida, era composta por Abigail Feitosa (PMDB/BA), Anna Maria Rattes (PMDB/PA), Benedita da Silva (PT/RJ), Bete Mendes (PMDB/SP), Beth Azize (PSB/AM), Cristina Tavares (PSDB/PE), Dirce Tutu Quadros (PSDB/SP)[4], Eunice Michiles (PFL/AM), Irma Passoni (PT/SP), Lídice da Mata (PCdoB/BA), Lúcia Braga (PFL/PB), Lúcia Vânia (PMDB/GO), Márcia Kubitschek (PMDB/DF), Maria de Lurdes Abadia (PFL/DF), Maria Lúcia (PMDB/AC), Marluce Pinto (PTB/RR), Moema São Thiago (PSDB/C), Myriam Portella (PDS/PI), Raquel Cândido (PDT/RO), Raquel Capiberibe (PSB/AP), Rita Camata (PMDB/ES), Rita Furtado (PFL/RO), Rose de Freitas (PMDB/RS), Sandra Cavalcanti (PFL/RJ), Sadie Hauache (PFL/AM) e Wilma Maia (PDT/RN). Embora 26 mulheres tenham sido eleitas, Bete Mendes licenciou o mandato de Deputada Federal Constituinte para exercer o cargo de Secretária da Cultura do Estado de São Paulo, de modo que não participou das articulações constituintes.

A todas essas mulheres, incumbia a representação das cerca de 70.000.000 cidadãs brasileiras da época e das que viriam a ser regidas por esta Carta. Para além da defesa dos direitos femininos, contudo, às 26 cabia o papel da representação e o exercício da cidadania e da isonomia, na medida do possível para a concretização de uma nova democracia igualitária.

Dentre os membros da Mesa Diretora da Assembleia Constituinte, entretanto, estavam seis homens. Nenhuma mulher. A igualdade se mantinha: era masculina. Repetia-se a tradição das Assembleias Constituintes Nacionais anteriores, nas quais mulheres anulavam-se até 1988.

A presença das mulheres aconteceu de forma diversificada. Embora tenha contribuído muito para o ingresso de mulheres na eleição, a maioria das eleitas não tinha vínculo com o movimento feminista. O conjunto de mulheres foi denominado a Bancada Feminina por interpor, majoritariamente, demandas sociais associadas ao movimento. Apenas Rose Freitas e Maria Abigail Freitas declararam-se feministas. Das demais, Benedita da Silva e Maria Cristina Tavares Correia, embora não declarassem apoio ao movimento, traziam discussões que suscitavam pautas do movimento, como o aborto e os direitos da mulher negra.

Embora não fossem — ou se proclamassem feministas — existiram muitos questionamentos sobre a credibilidade das constituintes. Isso acontecia na medida em que eram associadas frequentemente a seus pais ou parceiros que faziam parte do jogo político. Reproduzia-se o machismo institucional ao atribuir a elas o mérito da eleição no vínculo com os homens com os quais mantinham algum relacionamento, conferindo sua credibilidade e força a eles.

Pela mesma razão, a institucionalização do machismo, foram a princípio candidatas por meio de partidos políticos pequenos que viabilizavam sua participação pela reduzida influência masculina. Lúcia Navarro, Sandra Cavalcanti, Irma Passoni, Rita Camata, Maria Abigail Feitosa, Beth Azize, Eunice Michiles, Sadie Rodrigues, Raquel Cândido, Rita Gomes, Rita Capibaribe, Moema São Thiago, Lídice da Mata, Maria de Lourdes, Benedita da Silva e Miriam Portella não tinham companheiros ou familiares na política, embora já tivessem se candidatado e participado de movimentos e cargos políticos. Essas, aparentemente, não podiam ser alvo destes questionamentos — tampouco eram poupadas de outros.

A cultura política brasileira perpetuava um machismo estrutural, especialmente dentro das instituições de poder. A Bancada Feminina deparou-se com questões de gênero desde as eleições. Entretanto, os processos institucionais que compuseram a Constituinte não foram mais fáceis do que o desenhado na votação: desde a estrutura predial, havia supressão de direitos da mulher que tiveram que ser reivindicados, desde a ocupação com equidade dos espaços físicos até os espaços de fala, propostas e direitos propriamente ditos. Como narrou Maria de Lourdes Abadia:

Por conta da falta de banheiro [distinto para os gêneros], escutamos coisas do tipo ‘vocês querem ser iguais aos homens? Aprendam a fazer xixi de pé! Tivemos que nos impor. Enquanto os homens falavam à imprensa sobre os grandes temas da Constituinte, as mulheres eram questionadas sobre estilistas e perfumes [..]

As mulheres que buscavam legitimar sua cidadania foram ridicularizadas não só por seus colegas. A imprensa desqualificava repetidamente o desempenho das eleitas, denominando-as “Bancada do Batom”, “Lobby das Meninas”, dentre outros termos pejorativos. Os jornais as tratavam como “bibelôs do Congresso Nacional”, repercutindo ações de cunho misógino, como eleições para definir uma musa do Congresso, explorar questões como roupas e perfumes ao invés de perguntar sobre as pautas constituintes. Restringiam-se aos assuntos de mulher ao comentar sobre as mulheres que ocupavam o novo espaço.

É possível, ainda, ver relatos sobre a interrupção frequente diante da proposição de pautas, a incompreensão diante dos direitos propostos e a forma pejorativa com que eram tratadas na hipótese da discordância dos demais membros. Nota-se, por fim, que nenhuma das mulheres ocupava cargos de presidência ou relatoria.

O resultado final do texto constitucional foi o mais progressista dentre os textos constitucionais promulgados até então. Considera-se, sobretudo, que o descompasso ocorrera também pelo isolamento dentre os gêneros como demonstrado na história constitucional brasileira.

É importante ressaltar que, se, por um lado, as normas constitucionais tiveram uma redação final diferente e não correspondiam às demandas dos movimentos feministas, por outro lado, os caminhos trilhados nesses discursos apontam para o fato de a redação final da Constituição resultar em um texto muito farto em direitos e sem retrocessos, o que, nesse momento, é algo que deve ser valorizado.

É possível notar que a participação feminina na Constituinte tão logo se consolidou nas normas que garantiam direitos anteriormente omissos ou garantidos de forma imperfeita pelo texto constitucional, consagrando o aspecto do conteúdo a ser postulado pela nova norma, coincidindo os sentidos social e jurídico. Expandiu-se a participação feminina em cargos notáveis nos Poderes do Estado de forma expressiva, como é possível perceber da análise de dados proposta.

No Poder Judiciário, a primeira juíza brasileira, Thereza Grisólia Tang, assume a presidência do Tribunal do Estado de Santa Catarina entre 1989 e 1990. Além disso, em 1990, Zélia Cardoso de Mello é empossada como Ministra da Fazenda — a primeira e única até 2018. No Supremo Tribunal Federal, destacam-se Ellen Gracie, assumindo pela primeira vez em 2004, e Carmen Lúcia, cujo mandato foi de 2016 a 2018.

No Poder Legislativo, em 1990, foram eleitas como senadoras Maria Marluce Moreira Pinto e Júnia Marise. Para deputadas, seja estadual ou federal, foram eleitas 70 mulheres. Dentre elas, Irma Passoni e Benedita da Silva como deputadas federais e Maria de Lourdes como Deputada Distrital.

Já em 2018, foram eleitas 7 mulheres para o Senado: Leila do Vôlei, Eliziane Gama, Soraya Thronicke, Selma Arruda, Daniela Ribeiro, Zenaide Maia e Mara Gabrillo. Já como deputadas federais, 59 mulheres foram eleitas. Para deputadas estaduais, 21 mulheres eleitas.

No Poder Executivo, em 1989, a candidata Lívia Maria Pio, do Partido Nacional, torna-se a primeira mulher a concorrer à Presidência. Já em 2011, houve a eleição da Primeira Presidente da República, Dilma Rousseff, eleita por duas vezes, cujo exercício do mandato aconteceu entre 2011 e 2016, quando foi deposta — e é, até 2018, a única a ocupar o cargo.

Assim, aconteceu a participação das mulheres na nossa retomada democrática. Ainda que problemática, os efeitos repercutem até hoje. Mas esse, é tema de outro artigo.

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Tayara Causanilhas
Revista Marginália

o caos acometeu e eu não deveria ficar acordada. aprende a viver agora, Tayara.